A Cidade dos Perdidos
A Cidade dos Perdidos
Jorge Linhaça
Em meio a uma longa viagem, já cansado de dirigir, resolvi entrar na cidade mais próxima para ali passar a noite.
Meus olhos mal paravam abertos e eu precisava urgentemente de um bom banho, uma refeição e descanso.
Cheguei à cidade que mais parecia uma vila, uma dessas muitas cidades que crescem em volta de uma igreja e que pouco mais tem do que algumas casas, um posto de gasolina, uma farmácia , um armazém e uma pequena pousada que sei lá como sobrevive ali no meio do nada.
Parecia que eu havia voltado décadas no tempo, os carros eram todos antigos apesar de terem a aparência de novos, modelos que eu não via há mais de 30/40 anos circulavam pela cidade como se tivessem acabado de sair da fábrica.
Talvez fosse uma maneira de atrair os turistas, sei lá, os móveis dos estabelecimentos seguiam a mesma tendência.
Fui direto a padaria que também era a lanchonete e a sorveteria do local, comi alguma coisa que me forrasse o estômago, sob os olhares curiosos dos habitantes do local.
Lá me indicaram a pequena pousada que tinha na verdade três quartos , denunciando que era mais um complemento de renda do que um negócio de família.
Já o sol se punha quando estacionei diante da pensão e requisitei um quarto para passar a noite.
A velha senhora dona do local, sem muita cerimônia logo me acomodou em um dos quartos simples porém limpos.
Uma cama, um criado mudo, um pequeno guarda roupas, um abajur e um rádio, era o que havia no quarto.
Tomei um banho rápido e deitei-me para descansar o velho saco de ossos.
O silêncio era tão profundo que me incomodava e portanto decidi ligar o rádio para servir-me de companhia até que pegasse no sono.
Depois de muita estática consegui sintonizar uma única rádio que tocava músicas dos anos 60 ou 70, sei lá...o que me importava era tentar dormir...
Adormeci minutos depois, mas meu sono não durou muito tempo, a cidade contrariando minhas expectativas mostrava-se estranhamente movimentada à noite.
Parecia que o número de habitantes dobrara de uma hora para outra, jovens de lambretas, isso mesmo, lambretas, vestindo jaquetas de couro circulavam em volta da praça da igreja acompanhados de moças vestidas com vestidos rodados e penteados que pareciam ter saído de filmes antigos.
A cena parecia-me tão surreal que não consegui mais dormir, fiquei ali observando o movimento de minha provisória janela.
Quando chegara à cidade me passar quase despercebido que não vira jovem algum...agora essa lembrança começava a me incomodar de uma maneira estranha.
Não havia sequer resquício de alguém com mais de 30 anos a circular pela cidade naquela hora...parecia que dois mundos se contrapunham entre o dia e a noite.
Havia algo de familiar nas feições de alguns dos jovens que via agora circulando em seu mundo peculiar.
Ouvi baterem à porta do quarto e após vestir-me rápida e desajeitadamente fui atender para saber do que se tratava...
Uma linda jovem adentrou o meu quarto trazendo o jantar, o que a princípio, por mais bem vinda que fosse a refeição, causou-me estranheza, até porquê não a havia visto na casa quando de minha chegada.
Tinha olhos lindos e brilhantes e um sorriso encantador, seus lábios rosados eram capazes de enfeitiçar o mais casto dos homens.
Seus cabelos estavam presos em um alto rabo-de-cavalo e suas roupas anos 50/60 marcavam suas formas sem quase nada mostrar mas despertavam o desejo de confirmar o que as roupas escondiam.
Devia ter pouco mais de 20 anos , talvez menos, sua beleza era aquela à moda antiga misturando ingenuidade e sedução em um único cálice.
Enquanto conversávamos sobre trivialidades seu corpo foi se aproximando do meu quase sem intenção e quando me dei conta nossos lábios se tocavam em um delicioso beijo.
Eu parecia enfeitiçado por seus encantos e custou-me resistir em seguir adiante ... o rubor em sua face denotava que ela estava envergonhada de sua investida, coisa que já não se vê nos dias de hoje.
Ainda assim ela insistia, queria conhecer comigo os segredos do amor...com muito custo fiz com que deixasse o meu quarto embora o desejo já estivesse estampado em meu corpo.
Continuei a assistir , pela janela, o movimento nas ruas da pequena cidade até que por fim, vencido pelo cansaço adormeci novamente.
Sonhei com a bela jovem , com nossos corpos se entregando, ao prazer que eu me havia negado receber quando de sua visita ao meu quarto. Acordei suado e os lençóis da cama marcados pela expressão do meu prazer solitário.
Olhei à minha volta e o quarto parecia em ruínas, a poeira tinha dedos de espessura, os móveis corroídos pelo tempo, a janela toda desconjuntada e a madeira apodrecida.
Minha bolsa jazia num canto onde havia o tal guarda-roupas
Confuso com a situação arrumei-me como pude e desci as escadas que rangiam sob meus pés...chamei por alguém...qualquer pessoa, mas nenhuma resposta veio de canto algum...dirigi-me à rua e só então percebi que para onde quer que eu olhasse a situação era a mesma.
Os carros que havia visto em minha chegada não passavam de carcaças enferrujadas pelo tempo, o vento soprava pelas ruas zunindo de uma maneira fantasmagórica , meu carro ali estava, onde o havia deixado, contrastando totalmente com o resto da cidade totalmente deserta.
Subi em meu carro tomado por um desconforto tamanho que me fazia acelerar cada vez mais para longe do lugarejo.
Voltei por fim à estrada principal e minha tensão era tão grande que tive de parar no primeiro posto de combustível que encontrei. Pedi um chocolate quente para tentar reanimar-me do susto e da aventura surreal pela qual passara.
Um velho senhor ao meu lado , percebendo a minha lividez, comentou:
- Desculpe me intrometer, mas o senhor não parece bem, na verdade parece que viu um fantasma.
Entre um gole e outro no meu chocolate contei-lhe que havia estado na tal cidade e o que me suceder, temendo que ele me julgasse um louco ou algo do gênero.
Após ouvir-me atentamente ele me disse que conhecia a cidade, que havia morado lá em sua juventude mas que ali pelo início dos anos sessenta uma doença estranha havia dizimado todos os seus habitantes. Ele mesmo se sentia com sorte pois havia se mudado meses antes para a cidade adiante.
Na época ele tinha lá seus 20 anos e a cidade havia se transformado em um local de pessoas com algumas posses muitos dos jovens todos tinham suas lambretas, motocicletas e carros. Eram os anos da rebeldia da juventude, da brilhantina e da liberação sexual...
Desde então a cidade permaneceu desabitada e ninguém mais ousou morar lá devido à estranha doença que levara todas as almas . Muitos dizem que a cidade é assombrada por aqueles que ali morreram e volta e meia algum viajante conta causos semelhantes ao meu.
A cidade ficou conhecida como a cidade dos perdidos pois só quem lá vai é porque perdeu-se no caminho.
Ao longo dos anos alguns viajantes desapareceram na tal cidade e só se sabe que ali estiveram porque seus carros foram encontrados naquele local, sem que no entanto seus corpos jamais tenham sido localizados.
Como escapei não sei , mas talvez tenha sido por resistir aos encantos da tal jovem que aparentemente há muito não está mais no mundo dos vivos.
Salvador, 6 de março de 2012