Debaixo da Terra

Chamem-me de louco se quiserem, prendam-me em camisas de força e me joguem num cubículos fechado e acolchoado. Qualquer lugar é mais seguro do que naquela inóspita terra. Não posso comparar ao inferno, pois ainda não cheguei até lá, mas posso afirmar que é tão indesejada quanto. Difícil de acreditar que o solo rico de onde tirávamos o nosso sustento escondia algo tão aterrador, incomum e inexplicável.

Jamais deveria ter arado a terra à noite. Talvez seja o erro que cometi que fez tudo acontecer. Por Deus, nunca arava aquela terra depois das cinco horas da tarde... Por que resolvi mudar minha rotina? Maldito seja eu, um homem que conservava hábitos inalteráveis e que num lapso de loucura resolve agir diferente, resolve ser displicente. Claro! Não diria isso antes de acontecer aquilo, e se não ocorresse, estaria me vangloriando de conseguir fazer algo diferente do habitual. Agora não vou me vangloriar, vou me amaldiçoar eternamente, chamar todas as pragas e doença para o meu corpo; mas mesmo assim, mesmo me castigando furiosamente, não me sentiria satisfatoriamente castigado. Talvez nem a minha morte pudesse compensar o mal que permiti agir acima do solo úmido.

Nove horas da noite, que besteira. Passava um bom filme na TV. Poderia assisti-lo tomando uma bela garrafa de cerveja, e no dia seguinte arar a terra. Tinha suprimento suficiente para um mês, e a colheita de batata seria daqui a três dias. Tem gente que sobrevive com bem menos. Por que ser tão apressado? Apressado não, desesperado! Aposto que mesmo se estivesse chovendo naquela hora, cometeria a mesma burrice. Parece que não restou nada de genialidade na minha grande cabeça depois que me separei de Anete.

Quando souberem, ou pior, quando aquelas coisas começarem a agir nas terras vizinhas, deixarei de ser louco. Mas isso não me deixa aliviado, nem um pouco. Os outros vão querer o meu couro, tirar minha carne e pendurar minha carcaça como quem pendura um espantalho. Creio que seria justo, visto que encontrarão a morte em poucas horas por minha causa.

Mesmo de manhã, quando olho pela janela, sinto o pavor percorrer o meu corpo vendo aquela cena grotesca. Já perdi as contas de quantas vezes já vomitei, chorei, gritei... Ah! Por que o desconhecido é tão impiedoso? Como pode o profano se materializar e me enlouquecer dessa forma? Enquanto estiver preso em casa, estarei seguro, mas até quando?

Seria inteligente de minha parte ir até lá e enfrentar a realidade que se desabrochou tão medonhamente? Claro, posso pisar naquele solo contaminado e reivindicar a fonte do meu sustento. Faria isso se pelo menos um padre fosse capaz de realmente exorcizar alguém. Ficarei aqui até o momento em que minha loucura extrapole o bom senso. Creio que será em breve.

Nem consigo comer, e a sede abandonou meu corpo por conta da umidade que impregnou minha garganta. A névoa não se dissipava, nem os pássaros cantavam. O milharal estava morrendo, além de outras culturas que estavam sendo lentamente contaminadas. Queria quebrar a vidraça e queimar tudo! Era como se estivesse presenciando um massacre sangrento, cruel e impiedoso.

Agora que estava suficientemente louco, queria gritar para os quatro cantos. Dizer que a terra estava viva, não porque é capaz de manter uma plantação de batatas, mas sim porque respirava. Não encarem como uma personificação. A terra realmente estava respirando, e o gás que expelia era espesso e nauseante. Quero descrever a cena que vejo todos os dias desde aquela fatídica noite. Desejo que minhas palavras sejam imortalizadas para que outros não cometam o mesmo erro que eu cometi.

Ouçam, desconhecidos! Quando a terra começar a respirar, parem com a iniquidade e corram para um lugar seguro! A sua maldade lhe deu a vida, e agora ela pretende tirar a de vocês. Não adianta gritar quando virem cabeças vegetais sedentas de sangue brotarem da terra. Vão estranhar suas figuras grotescas aquiescendo numa dança macabra, e irão chorar ao perceberem que estão tentando sair de sua morada úmida e contaminada. Neste momento estou rezando; pois aquelas plantas humanoides já ganharam pernas e cuspiam sangue pela boca. Caminhavam em minha direção e sei que nada poderá impedi-las. Peço a Deus que me deixe morrer sem dor.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 06/03/2012
Reeditado em 06/03/2012
Código do texto: T3538304
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.