Quando os Sinos Tocam

Os pescadores voltavam de mais um dia cansativo de trabalho. Quando ouviram o som estridente dos sinos, imediatamente armazenaram os pescados e guardaram as redes. Montados em suas bicicletas, voltaram às pressas para casa e se trancaram, esperando o próximo sinal. Um procedimento não muito diferente do efetuado por todos daquela pequena cidade, esquecida por Deus. Os comerciantes fechavam as portas de seus estabelecimentos; os feirantes desmontavam as barracas e até a policiais se recolhiam ao batalhão. Tal hábito, já enraizado naquele povo, era religiosamente seguido, nas minúcias que eram passadas de geração para geração. Quando um novo sinal era dado, todos saiam de suas casas e seguiam a vida normalmente.

A religião deles era algo discutível, nada organizado doutrinariamente. Tinham templos, mas os cultos eram realizados secretamente. Desse modo, atraíram curiosos e estudiosos, que logo perceberam que não valia a pena estudar um povo que não queria ser desvendado.

Certo dia um turista se perdeu por aquelas bandas. Era um francês cheio de sotaque e de manias, que se chamava Pierre. Evitava olhar fixamente para os moradores, que tinham na expressão facial algo de assustador. Hospedou-se numa pousada rústica que ficava à beira de um extenso rio, fonte de sustento daquele povo. A hospedaria toda feita em madeira não envernizada rugia a cada passo dado, como se estivesse na iminência de desabar. O francês já havia se hospedado em lugares semelhantes, porém indiscutivelmente mais seguros.

Os ingleses eram esnobes, mas Pierre conseguia superá-los. Não aceitava sair de sandália ou bermudão. Em um dia terrivelmente quente, saíra com um traje social. Evidentemente que chamava a atenção dos moradores da região, que o fitavam com mórbida curiosidade. Ele, porém, não ligava. Seu caminhado estilizado era minuciosamente calculado durante todo o trajeto. Percorreu um estradão de chão até o centro da cidade. Observou a prefeitura, única construção de alvenaria. Estranhou o fato de haver um sino no alto de uma torre que ficava ao lado. Viu os enormes templos de madeira, com pinturas estranhas, algo parecido com a capela cistina, porém distorcida e quase medonha. Estremeceu-se ao ver aquilo, e apressou os passos até a feira. O cheiro de peixe era nauseante, e ele não fazia questão de esconder seu descontentamento. Caminhava por entre as barracas com o olhar criterioso, quase indiferente. Uma senhora oferecera a ele um peixe fresco, que foi rispidamente rejeitado.

Quando eram exatamente cinco horas, os sinos tocaram. Nesse momento Pierre se encontrava à beira do rio observando os pescadores. Percebeu a pressa deles, puxando as redes calejadamente e remando para a beirada. Voltou para feira e viu que as barracas estavam desmontadas e os feirantes haviam se retirado. Não havia ninguém nas ruas e calçadas. Ele esnobou o ato coletivo, dando de ombros. Caminhou pela estrada barrenta e notou que olhos curiosos o observavam pelas frestas das janelas.

Pierre se perguntava o porquê daquele povo se esconder por causa do som dos sinos. Sua curiosidade era tamanha que perguntaria ao primeiro estranho que encontrasse na rua. Mas não havia ninguém, nem policiais, tão menos moradores de rua. Estes, milagrosamente, encontravam abrigo quando os sinos tocavam. O imenso vazio daquela cidade, aliado ao silêncio perturbador, deixava Pierre apreensivo e aterrorizado. Apertou os passos para voltar à hospedaria. Não queria ser abordado por um bandido, afinal, nem a polícia estava nas ruas para fazer a segurança. Depois dos passos largos, correu com certa dificuldade em decorrência dos sapatos que usava. O som do barro sendo batido pela sola do sapato era acentuado por conta do silêncio. Esse barulho penetrava o ouvido de Pierre inquietamente. Olhava para trás e via as ruas desertas. Parecia que os moradores haviam sido dizimados.

Quando se aproximou da hospedaria, Pierre viu o dono observando pela janela a sua corrida interminável. Fechou a janela abruptamente e trancou a porta. Pierre pode ouvir o som característico da tranca enferrujada, que fez seu coração parar por alguns segundos. Sem sangue circulando pelo seu corpo, deu um salto cego e se deixou cair na estrada. Estava sozinho no meio do vazio, sem presença humana. Não tinha para onde ir, nem ninguém para acudi-lo. Restava apenas adormecer e esperar aquele pesadelo acabar.

Ouviu o sino tocar mais uma vez, mas continuou encolhido no chão esperando as pessoas saírem de suas casas. O simples fato de estarem escondidas já o deixava perturbado e amedrontado. Acabara adormecendo.

No dia seguinte Pierre foi despertado por um policial. Ele percebeu que seu corpo estava banhado de suor e ardendo em febre. O policial, já ciente da situação, disse:

- Você ignorou os sinos, não é senhor?

- Ouvi os sinos e vi as pessoas se escondendo. Mas não entendi o motivo. Quando me dei conta, estava sozinho na cidade. O que esses toques querem dizer?

- Não há tempo para maiores explicações. Se você não for levado imediatamente a um curandeiro, não sobreviverá.

- Por Deus, homem! Diga o que houve comigo?

O policial, ofegante e com os olhos esbugalhados, respondeu:

- Às cinco horas da tarde ninguém pode ficar fora de suas casas. Quem sair, pode pegar uma terrível doença!

- Que doença?

Antes que o policial pudesse responder, o corpo de Pierre fora tomado por erupções pútridas e o rosto estava se descamando com enorme velocidade. Seus olhos saltaram das órbitas e sua pele se desmanchou como areia. O policial, aterrorizado, viu quando os ossos de Pierre cariam ruidosamente no chão.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 29/02/2012
Reeditado em 29/02/2012
Código do texto: T3527990
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