EM BUSCA DO BRAÇO PERDIDO- EPÍLOGO

EM BUSCA DO BRAÇO PERDIDO- EPÍLOGO

Restava saber ainda quem seria a alma corajosa e cheia de fé a quem caberia cumprir a derradeira tarefa de montar por fim o esqueleto de Tião sobre o antigo pátio da fazenda em ruínas.

Claro que não havia ninguém isento de medo, afinal o simples fato de ir até o Morro do Judas já havia afugentado boa parte dos envolvidos nas buscas até então.

A Questão era quem conseguiria superar o medo e cumprir a última parte da tarefa quando a meia noite se aproxima-se.

Durante todo esse período que antecedeu o encontro do braço do negro, Jeremias ( neto de João ) vinha buscando forças espirituais para levar a termo a macabra missão...ainda assim mantivera-se esperançoso de que alguém tomasse a pulso a derradeira empreitada. Como ninguém se manifestava de modo favorável à tarefa, Jeremias ,que nada tinha de herói, mas não era de deixar as coisas a meio, muito menos quando tão pouco faltava, assumiu a responsabilidade.

Após horas de trabalho as partes do braço de Tião foram finalmente montadas, de forma que nenhum osso se perdesse na hora da verdade.

As outras partes do esqueleto foram trazidas o tronco, a cabeça, o braço direito a bacia e as pernas...restava esperar a hora para que o esqueleto ganhasse sua forma original.

Tudo deveria acontecer próximo à meia-noite, hora da chegada do espectro do negro supliciado.

As pessoas foram saindo, cada qual a seu turno, e por fim Jeremias estava só para enfrentar seu destino.

Os demais observavam de uma certa distância movidos pela curiosidade e tentando dar forças a Jeremias através de suas orações silenciosas.

A Lua cheia parecia surreal, tal era o seu tamanho, bem além do que se vê costumeiramente...sobre o terreno previamente preparado Jeremias foi depositando as partes do esqueleto semi montado deixando algum espaço entre as partes para reuní-las apenas na hora devida.

O vento soprava entre as ruínas como que uivando um lúgubre lamento qual um banzo vindo do além túmulo.

Jeremias olhava o relógio em intervalos cada vez mais curtos, ansioso para que acabasse logo aquela expectativa que parecia devorá-lo por dentro.

Faltavam dez minutos para a meia-noite quando Jeremias foi pacientemente montando o esqueleto do negro penitente.

Quando faltava apenas um minuto o esqueleto estava quase montado, faltando apenas o braço esquerdo que João reservara para o instante final...

A igreja da cidade, fazendo sua parte iniciou o soar das doze badaladas...Jeremias sentiu o corpo gelar, seu corpo parecia não querer obedecer ao comando de seu cérebro, seus movimentos eram imprecisos e dolorosos.

Seis badaladas já se haviam ido e Jeremias lutava com todas as forças para juntar o braço ao resto do esqueleto...

Parecia que uma força demoníaca apossava-se de seus braços impedindo a conclusão da tarefa...Jeremias orava intensamente,

ao longe a angústia consumia aqueles que não entendiam o que estava se passando com Jeremias...por que não colocava logo o braço no negro no lugar?

Nove badaladas e Jeremias lutando, não iria fracassar justamente agora, não quando tudo parecia tão próximo do fim.

Dez badaladas...Jeremias reúne suas últimas forças físicas e espirituais...o braço está quase lá...

Onze badaladas...meio centímetro separa o braço do resto dos restos de Tião...

Num último esforço, que quase o faz desfalecer, Jeremias consegue, ao soar a décima segunda badalada colocar o braço em seu devido lugar.

Um raio de lua, semelhante a uma coluna de luz repousa sobre os ossos...quem via de longe tinha a impressão de um holofote a iluminar o local...

O vento gira em volta do local formando um redemoinho cada vez mais forte...

Jeremias congelado não sabe o que fazer, não consegue mover-se, exausto de hercúlea tarefa...

O esqueleto assume a posição ereta e o redemoinho continua cada vez mais acelerado...os ossos vão se recobrindo de matéria trazendo de volta a carne ao esqueleto de Tião...

A visão é por demais apavorante e os que ali estavam nas cercanias trataram de correr o mais rápido possível em busca de abrigo com medo de que o negro viesse em busca de mais braços apesar da tarefa cumprida.

Jeremias nada pode fazer...apenas olhar e rezar.

O negro finalmente ganha forma humana, se é que assim se poderia dizer diante destas circunstâncias...

O redemoinho diminui...e Jeremias pode ver Tião como havia de ter sido quando ainda habitava o mundo dos vivos.

Tião apalpa o corpo recém reconstituído, tão surpreso quanto o próprio Jeremias...demorou algum tempo até se dar conta de que seu braço estava no lugar....

Soltou um grito, misto de dor e alegria...que ecoou pelas paredes de toda a cidade espalhando mais uma vez o terror nos corações dos viventes.

Jeremias já caíra de joelhos, quase desfalecido...viu o negro aproximar-se e temeu pela própria vida por um instante.

Tião ajudou-o a por-se de pé, amparando-o com seus braços musculosos de quem passara a vida no serviço braçal escravo.

Tirou Jeremias das ruínas e deixou-o ao pé de uma árvore.

- Obrigado por libertar-me de minha maldição, agora posso enfim descansar em paz...não tenha medo...este lugar amaldiçoado nunca mais fará nenhum mal e logo será esquecido.

Dito isso Tião começou a entoar um cântico escravo e outros escravos e escravas foram aparecendo e unindo-se ao sinistro cântico... a terra tremeu...e quanto mais aumentava o cântico mais intenso se tornava o tremor...uma grande fenda se abriu no monte do Judas de forma que todas as ruínas malditas foram tragadas pela terra que, após isso fechou-se novamente sobre o lugar.

João desfaleceu, talvez de medo, talvez de exaustão...

No dia seguinte as pessoas reuniram alguma coragem e foram atrás de Jeremias...encontraram-no na mesma árvore...desfalecido...não entenderam o sumiço das ruínas pois na cidade o tremor não fora sentido...ficaram perplexos com a mudança da paisagem.

Levaram João para o hospital e tiveram de aguardar dois dias para que o mesmo retomasse a consciência e lhes relatasse o ocorrido.

Nunca mais a cidade sofreu o terror dos braços decepados, mas até hoje a história do negro Tião jamais foi esquecida.

Salvador,27 de fevereiro de 2012