Criando um monstro. Pt 3

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Meu encontro com o padre não foi um dos melhores possíveis, serviu-me de lição, desde já eu teria que aprender que existem limitações até mesmo para mim, e que todo cuidado era pouco. Quando eu dei um salto desesperado para trás, enquanto aquele maldito crucifixo me queimava a pele, eu não notei na hora, mas o padre apresentava um semblante digamos que “normal’’ para alguém que acabara de avistar um demônio, naquele instante eu não me importei, só pensei em fugir o mais rápido possível.

Meus problemas não acabaram por ali, eu estava ‘hospedado’ digamos que em um prostíbulo, no porão de um bar qualquer, não havia janelas, ninguém interrompia, era o lugar perfeito pra mim. No entanto, o semblante daquele padre não me saiu da cabeça, e eu tinha outro problema, ele me olhou nos olhos. Seria muito fácil encontrar um moleque que aparentava seus 18 anos, loiro e olhos avermelhados pela cidade, se você soubesse onde procurar. E o pior, eu percebi outra coisa que mudou minha vida permanentemente, logo após o incidente na Igreja, eu corri de volta para o meu ‘refúgio’, pela primeira vez tinha sentido medo depois de ser transformado.

Ao entrar no meu quarto eu fui direto para o banheiro – bom, não era exatamente um banheiro, mas tinha um espelho e um buraco para ‘descarregar’, por sorte eu não precisaria usar aquilo -, então eu pude ver, o ferimento da minha testa não havia se curado totalmente, e aquilo me incomodou bastante.

Fiquei encarando aquele machucado por algum tempo, me foquei completamente nele e tentei curar aquilo.. com muito esforço eu consegui. Mas já era tarde, o sol já estava quase nascendo e eu precisava dormir.

Na noite seguinte, eu acordei sentindo uma dor imensa no meu rosto, parecia que eu estava queimando, pulei da cama aterrorizado achando que estava sonhando – quem dera que eu estivesse -, fui ao ‘banheiro’ e novamente me deparei com aquilo. O ferimento voltara, agora eu tinha uma ‘tatuagem’ de uma cruz vermelha bem no meio da minha testa.

O quê aquele desgraçado daquele padre fez comigo? Por que eu não conseguia me livrar daquilo? – E pelas próximas 4 noites aconteceu exatamente a mesma coisa, eu fazia desaparecer, e na outra noite aparecia novamente.

Olhei para os céus e disse em voz alta: Outro ponto para você! – fui novamente amaldiçoado por ele, outro castigo por atacar seus filhos e destruir sua casa. E sinceramente, eu já estava me acostumando com a ideia de estar sempre em desvantagem. Como senão bastasse ter olhos semelhantes à dois rubis, eu também tinha uma maldita cruz vermelha na minha testa. Não havia como piorar.

Na verdade tinha sim, e piorou. Parece que ele não estava satisfeito apenas em cravar sua marca em mim, ele também mandou seus filhos me caçarem.

Tinha uma prostituta naquele bar que me achava atraente, mesmo com minha aparência um pouco incomum, e ela sempre vinha ao meu quarto para ser fodida quando eu estava por lá. Certa noite, ela me disse que apareceram uns sujeitos perguntando por alguém com minha exata aparência, e que eles pareciam ser bem agressivos. Ah, eu não me importava. Eu só tinha medo daquele padre estúpido – outro erro meu, minha vida pode se resumir facilmente com aquela frase: você só aprende errando. – Eu não queria me alimentar daquela prostituta, ela era legal comigo, e por mais que eu fosse um monstro que matava a sangue frio, eu tinha um certo receio em ferir mulheres, talvez fosse o pouco que me restara de humanidade não permitindo que eu fizesse isso, talvez fosse por causa de minha amada Anna, e de minha mãe. Não importa, eu preferia matar homens.

Eu precisava me alimentar, decidi sair a noite em busca de uma presa, as pessoas já me olhavam torto no bar e não era boa ideia dar motivos para mais desconfiança.

Pois bem, lá estava eu me esgueirando pelos becos escuros e fedorentos de Londres, a procura de uma pessoa burra o suficiente por andar por aqueles lugares. Eu não sabia ainda, mas a criatura burra o suficiente para estar por ali seria exatamente eu.

Escutei passos, parecia ser um mendigo qualquer revirando o lixo, era a presa perfeita. Lá estava ele, jogado na sarjeta como senão temesse a noite, e lá estava eu, ansioso por fazê-lo temer a noite.

Fui me aproximando aos poucos, ele percebeu minha presença, e eu não me importava com isso, ele jamais poderia saber o que eu era – outro engano -, assim que ele me viu, ele gritou: É ele! Cinco homens saíram de trás da porta de um bordel qualquer ali, empunhando bestas e sem cerimônias, atiraram em mim.

Eu pude enxergar as flechas vindo na minha direção, eu estava caçando, meus sentidos estavam bem aguçados, e por instinto eu saltei para o lado rebolando várias vezes no chão – consegui me livrar das flechas, pensei - Errado. Uma havia me acertado a perna direita, o quê me causou uma dorzinha, nada capaz de me derrubar. Arranquei aquela flecha da minha perna, mostrei minhas presas e tentei assustá-los – sem sucesso. –

De trás daqueles homens eu o vi surgir, aquele padre novamente, o responsável por essa cruz na minha cara, eu desejei estraçalhar seu corpo ali mesmo, mas eu não podia.

O quê vocês querem comigo? – Perguntei – Ora, ora, você invade a casa sagrada do senhor e profana seu templo sagrado, e tenta matar um santo padre e não sabe porquê está sendo caçado? Não me faça rir, demônio.

Bom, vendo por esse lado, eles estavam totalmente certos em me caçar.

Existe algum modo de eu reparar o que eu fiz e me desculpar? – Perguntei em tom sarcástico – Outro erro meu, eu tinha que aprender a segurar minha língua..

Mas é claro que tem meu jovem.. – Mais disparos em minha direção, desta vez eu fui perfurado no peito, no ombro e na barriga, a coisa estava começando a ficar séria pro meu lado.

E como doía, perdi algum sangue devido as flechas e fui arremessado para trás com o impacto dos disparos. Eu gritei como um demônio de verdade – mais disparos, agora quase me acertam o coração, meu corpo mais parecia um pedaço de madeira que servira de alvo para arqueiros.

Eu já estava ficando fraco de verdade, eu não estava conseguindo me livrar da dor e retirar as flechas do meu corpo estava me causando mais dor ainda, era melhor deixa-las ali mesmo.

Acho que meus gritos acordaram metade da cidade, minha movimentação estava difícil, tentei me esconder naquele beco, mas eles me seguiram, pareciam realmente determinados em me matar, e seus semblantes eram de pessoas que estavam realmente limpando o mundo de uma escória. Eu era tão diabólico assim?

Eu estava cercado, não tinha mais pra onde fugir, só tinha uma parede atrás de mim e na frente 5 homens com mantos marrons empunhando bestas em minha direção, e aquele maldito padre dando ordens para eles.

Eu já estava perdendo a consciência, minha visão estava turva, cansada e eu estava lutando para não desmaiar, seria meu fim. Mas eu pude ver uma criatura surgindo atrás deles, houve gritos, sangue, disparos, muitos disparos, e eu só me lembro disso.

Acordei algumas horas depois, estava em um quarto desconhecido, era bem luxuoso por sinal, era a primeira vez que eu estava em um quarto daqueles. Móveis de madeira, muito bem feitos, quadros de artistas famosos daquela época, e pela primeira vez não senti um cheiro de merda e mijo em uma cama.

Eu estava sendo observado por um rapaz, parecia ser o mesmo que matou aqueles caras.

Então você acordou, forasteiro. – Disse o homem, tinha uma voz grossa e imponente. – Acho que você deve explicações à minha senhora, você criou uma bagunça e tanto na nossa cidade..

Eu não entendi absolutamente nada.. Nossa cidade? Quem ele pensa que é, um rei?

Eu fiquei em silêncio, ele levantou-se e saiu do quarto, voltou alguns minutos depois na companhia de uma mulher..

E que mulher magnífica, era branca como a neve, seus cabelos ruivos lhe caiam até abaixo do ombro, tinha olhos verdes que mais pareciam duas esmeraldas, seu corpo era recheado de joias, ela tinha realmente uma presença imponente, me senti minimizado por aquela mulher, como poderia existir tamanha perfeição? Era linda, sua beleza superava qualquer mulher que eu já havia visto, superara até Anna! Fiquei hipnotizado por ela.

Não vai saudar nossa senhora? Príncipe de Londres e de todo Principado de Londres ?

Eu não tive reação, eu não sabia quem era aquela mulher e estava pouco me lixando para essa história de príncipes e principados, eu só queria observá-la mais um pouco.

Ela me olhou nos olhos, parecia que ela estava se alimentando da minha alma, como se me conhecesse desde sempre, como se soubesse meus segredos mais sombrios, naquele momento eu me senti assustado.

Então você é uma criança ainda. E você não faz ideia de quem eu seja, não é verdade? – concordei com a cabeça – Pois bem, eu me chamo Meredith Reinalds, eu comando toda a cidade de Londres e também toda Inglaterra.

Eu me chamo Johan Liebert e eu.. eu não sou ninguém, não sei quem eu sou muito menos o que eu sou. – arranquei um sorriso dela, e que sorriso perfeito! – Então era você quem estava causando problemas em minha cidade.. Eu normalmente mandaria você ao sol, mas como eu sei que você não sabe nem o que é, vou te dar uma segunda chance. Você servirá a mim e será educado novamente.

Educado novamente? Pensei que eu fosse bem educado.. – Ela riu, e disse - Você não sabe absolutamente nada desse novo mundo, é uma criança e precisa de orientação. Ela olhou para o homem que estava ao seu lado e disse

James, ensine tudo que ele precisa saber e mande-o de volta as ruas quando ele aprender tudo.

Ele apenas concordou com a cabeça.

Não vou detalhar as conversas que tive com o homem que salvou minha vida, mas preciso dizer, a sociedade vampírica é muito bem organizada, tem sua própria hierarquia e regras de convivência, bem parecida com a dos homens, senão fosse pelos nossos hábitos incomuns.

Foi-me ensinado que em cada cidade, havia seu governante próprio.. Príncipes, era como eles eram chamados. E em cada país existia um príncipe maior, que estava acima dos príncipes das cidades. Acima desses príncipes de país, existiam os seis anciões. Ditos os vampiros mais velhos e mais poderosos dentre todos, e acima desses seis estavam os três anciões maiores, enquanto um governava, os outros dois dormiam. E assim se mantinha a ordem dentre os séculos. Também foi-me dito que acima desses três anciões, estava a responsável por tudo, pela hierarquia, pelos principados, pelos anciões, pelas leis, a lendária Camile! Muitas histórias e muitas lendas cercavam esse nome, em outra oportunidade eu cito algumas.

Tínhamos leis contra invasão de território, descobri que existiam zonas que nós não poderíamos caçar, e acima de tudo, tínhamos que esconder nossa existência. Essa era a lei maior, e era a mais difícil para mim.

É difícil manter-se discreto quando se tem uma maldita cruz no meio da testa e olhos da cor do sangue, não é?

Eles me deram abrigo, e comida. Também me falaram sobre essa ‘organização’ secreta, eram humanos que sabiam da nossa existência e tinham como objetivo nos caçar, eram os mesmos caras que me caçavam, eles respondiam a um caçador de vampiros muito famoso chamado Holtz, as histórias diziam que muitos príncipes já tombaram perante a força de seus caça vampiros.

E agora eu estava sendo caçado, permaneci morando naquela residência luxuosa por 1 mês, até resolver que era hora de sair.

As pessoas superestimam muito a imortalidade, as vezes é tedioso, o exemplo disso é eu atualmente ter 150 anos e estar escrevendo relatos da minha vida..

Voltando ao que interessa.. Imortalidade. Muitos aproveitam ela da melhor forma possível, bebem, fazem orgias, matam.. Eu era um curioso por natureza, eu precisava usar o meu tempo para conhecer novos lugares, destruir novas Igrejas, assassinar novos padres.. – a partir de agora eu estava bem mais cuidadoso –.

Decidi então voltar para minha terra.. Foram meses até conseguir retornar para a Alemanha, até descobrir que eu tinha sido responsabilizado pelo desaparecimento de todo um vilarejo, e de fato era verdade. Fugi então para a Austria, minha estadia em Viena foi fantástica, conheci outros como eu, fiz amizades, assassinei o clero, participei de orgias de sangue, sexo e álcool, mas eu estava sendo caçado ainda, parecia que em todo lugar que eu ia haviam homens do Holtz que me reconheciam a distância, fui obrigado novamente a fugir, fui parar em Budapeste, já eram meados de 1890, e eu já completava meus 10 anos como vampiro, 10 anos com a mesma aparência jovial, 10 anos com uma cruz estúpida desenhada na minha testa. E era assim que eu era reconhecido, jovem bonito com um olhar assustador e uma cruz na testa. Meu jeito de se vestir estava diferente, agora eu usava dois brincos de ouro em cada orelha que eu havia roubado de uns riquinhos que eu matei em Viena, juntamente com um colar em ouro maciço, estava usando uma blusa de pano branco, bem solta e confortável, ficava em contraste com minhas novas joias, usava uma calça marrom qualquer e estava mais perigoso do que nunca. Já dominava grande parte de minhas habilidades, mas havia mais.. muito mais! Eu era uma ‘criança’ ainda, tinha muito o que aprender.

A coisa começa a ficar bem mais interessante em Budapeste, as pessoas comentavam da lenda de dois vampiros sanguinários que fizeram o terror na Idade Média, uns diziam que eles ainda viviam até os dias de hoje, e que fora relatado o desaparecimento de pessoas em uma cidade inteira na Romênia, e era disso que eu precisava. Precisava conhece-los, mesmo sabendo que era impossível, de acordo com as histórias era bem mais fácil eles me matarem antes de eu conseguir soltar uma palavra. Mas era isso, meu sangue fervia em saber que eu poderia encontrar gente tão poderosa, quem sabe o que eu poderia aprender com eles? – Que pensamento infantil, mais tarde eu iria me arrepender muito da minha ingenuidade. –

Johan Liebert, 14 de Julho de 2010.