Faminto

Mais um conto que faz parte da antologia "2012".

William vagava pela terra devastada onde um dia fora uma próspera cidade. Por dois anos ininterruptos a população conseguiu sobreviver, de forma precária, à falta de energia. O pouco de carne que ainda jazia no mundo pós-apocalíptico tinha que ser consumida às pressas para não estragar. Para amenizar a fome, o exército trazia grãos cultivados nas terras intocadas do grande vale. Eis um lugar inacessível, controlado pelo que restou do governo que fechou os olhos ante a ameaça de conspiradores. Antes da grande catástrofe, sabia-se exatamente como ocorreria e quais seriam as consequências, porém o ceticismo desenfreado de uma minoria da ciência eliminou qualquer chance de salvaguardar um futuro menos caótico.

Ele usava restos de roupas costurados improvisadamente. Sua bota era conveniente para caminhar pelo chão abrasador em decorrência de meses de incêndios que penetraram até as mais longínquas profundezas. Sua figura esguia e afinada cruzava um extenso corredor escuro em plena tarde. Para sua sorte a antropofagia ainda não era uma prática comum, mesmo com o fato de a carne está cada vez mais escassa. Mas não se sentia seguro. A fome controla a mente, que por sua vez se deixa levar por alucinações algumas vezes perigosas. Andava por ali sempre armado com sua pistola. Se algum desavisado ou insano se atrevesse comer sua carne, teria que sobreviver aos tiros certeiros na testa.

Willian tinha a missão de encontrar um suprimento secreto de carne bovina congelada. Dizem que seria improvável encontrar carne congelada visto que os geradores haviam sido danificados pela emissão de prótons eletrizados, estes emitidos pelo Sol enquanto estava em plena atividade. Ele soube dessa possibilidade graças a uma informação passada pelo desprezível Greg, homem que venderia até a própria mãe para comprar comida fresca. Mesmo sendo desprezível, ainda trazia consigo uma qualidade pouco encontrada naquela época: não sabia mentir. Se fosse para vender sua própria mãe, usaria argumentos convincentes embasados por verdades inquestionáveis.

Quando se aproximava do final do extenso corredor, Willian sentia um frio terrível congelando seu corpo. Ele ficara assustado, afinal, como pode fazer frio num lugar daqueles, ainda mais que o inverno deixara de existir em decorrência da irregular órbita terrestre em torno do Sol? Ficou tenso diante de um portão de madeira trancada com correntes. Pensou em voltar, mas a fome já o derrubava várias vezes e sua mente estava cansada de viver situações ilusórias onde ele se fartava de comida.

Não poderia quebrar as correntes. O que ele poderia fazer era esperar que o portão se abrisse e assim infiltrar-se no local. Para aumentar sua tensão, não sabia o que iria encontrar do outro lado. Encolhia-se no canto da parede musgada por conta do frio e ruía as unhas para diminuir a sensação de fome. Esperou por várias horas, mas ninguém saia. Apenas ouvia o rangido do portão em decorrência dos inúmeros baques causados por inexplicáveis rajadas de vento. Do outro lado parecia que um novo mundo jazia incontrolável, vívido. Podia escutar sussurros agonizantes e respirações ofegantes, além de lamúrias abafadas pelas paredes de tijolos.

Tudo aquilo deixava Willian apreensivo. Jamais tinha ouvido algo parecido. Se não fosse a fome, sairia dali numa carreira desenfreada. Ficou prostrado ouvindo os sons inquietantes até o momento em que as dobradiças do portão incutiram um rangido ensurdecedor.

Quando o portão se abriu, uma escuridão ainda maior do que a noite sem lua se propagou pelo corredor. Willian, com o coração acelerado, esperou alguém sair. Pôs-se de pé atrás do portão e torceu para que este não o atingisse e o esmagasse contra a parede. Ficou aliviado quando percebeu que o gigante de madeira havia estagnado a alguns centímetros de seu corpo. Ali ficaria seguro, porém, não poderia ver nada que se passava lá dentro.

O cheiro de carne fresca era a fragrância que atingia as narinas de Willian de forma deliciosa. Há tempos que não sentia aquele cheiro, tão acolhedor quanto o jardim do éden. Inalava esse aroma como se estivesse degustando uma suculenta costela. Saiu detrás da porta e seguiu o cheiro pelo corredor escuro além dos limites dos muros. Ninguém saíra, apenas abriram a porta. Com que propósito? Foi uma pergunta que não oferecia resposta rápida e nem lógica.

Willian sentia o chão bloqueteado tão frio quanto uma pista de gelo, mesmo estando de bota. Sua vestimenta improvisada tornara-se desconfortável e deixava seu corpo praticamente nu sofrendo as consequentes rajadas de vento gelado. O corredor, embora estreito, perceptível de forma instintiva, parecia tão largo que poderia se perder em qualquer direção. Ilusão? Talvez, mas uma pessoa faminta precisava pelo menos de um momento de sobriedade para encontrar comida, e Willian ansiava por esse momento. Seria uma tarefa difícil, pois ainda ouvia sons macabros e sentia baforadas fedorentas atrás de si. À medida que caminhava, sentia o cheiro de carne fresca de forma mais intensa. Definitivamente concluíra que estava em outro mundo.

Cochichos decifráveis eram ouvidos alguns metros a sua frente. Alguém estava à espera dele, e demonstrava apreensão. Uma discussão quase silenciosa se desenrolava na escuridão gélida. O lugar era praticamente um descampado, mas sem ruinas ou casas em chamas, o que o tornava mais incomum e aterrorizador. Um lugar gelado em meio ao território quente de pessoas famintas. Um pedaço de carne poderia ser conservado ali por anos sem se estragar. Mas de onde provinha a carne? Willian fez a si mesmo essa pergunta. Não esperava tão cedo encontrar a resposta, quando viu um vulto correr ao seu lado segurando uma sacola com carne dentro. Gritos enfurecidos ecoaram da escuridão a sua frente e um grupo de homens fortes correu em direção ao vulto. Tochas se acenderam e a visão fora ficando mais clara. Era um homem igualmente magro que corria com várias costelas gordas debaixo do braço, embaladas com saco plástico. Os estranhos que corriam atrás dele estavam enfurecidos com a audácia do ladrão de carne.

Willian ficou estupefato. Não com a atitude do ladrão, mas com a fúria dos possíveis donos da mercadoria tão preciosa. A quantidade era pequena e decerto haveria mais. Por que não dividir? Inocência de um homem faminto. Naquela terra sem lei e sem comida, quem detivesse quantidade razoável era rei. Sabia que sua hora poderia chegar; que poderia conseguir um suprimento mesmo que temporário de carne. Seguiu o cheiro até um barracão de paredes negras.

Entrou no barracão com certa hesitação. Não havia ninguém e estava bastante escuro. O cheiro de carne era tão intenso que causa náuseas. Mas de longe estava estragada. Permanecia fresca como se estivesse recém-tratada. Willian viu as sombras do que pareciam ser grandes peças de carne estendidas. Quase babando ele se aproximou da volumosa mercadoria. Quando finalmente pode tocar a carne, tochas foram acesas quase que instantaneamente. Uma fileira interminável de tochas formava um corredor estreito, revelando corpos humanos suspensos por arames, com partes do corpo cortadas. A visão grotesca de um abatedouro humano fez Willian dar um urro de medo. Atrás de si uma voz rouca e imponente rompia o silêncio.

- Veio atrás da nossa carne, então!

Willian estava estarrecido. As pessoas que o fitavam estavam incrivelmente furiosas. Não pareciam estar satisfeitas com a ideia de dividir sua carne de procedência questionável. Ele não queria, mesmo que a fome tentasse convencê-lo, comer carne humana. Porém suas intenções eram facilmente absolvidas pelos estranhos.

- Vai experimentar nossa carne, agora que está aqui. Se gostar, deixaremos que saia com uma quantidade considerável. Mas se não gostar, ficaremos felizes em tê-lo como refeição principal dessa noite.

Era muito fácil escapar de uma situação tão grotesca. Poderia experimentar a carne e fingir que gostou. Assim poderia sair daquele lugar medonho e nunca mais voltar.

Sentou-se à mesa com os estranhos e degustou um pedaço de costela. A carne era horrível, mas tinha que mostrar que era gostoso. Por isso deu um sorriso de satisfação quando um pedaço desceu pela goela.

- Uma delicia! É a melhor carne que já comi na minha vida!

O homem enfurecido levantou-se e ordenou que Willian fosse levado ao abatedouro. Sem entender o que estava acontecendo, ele questionou:

- Ora! Você disse que se eu gostasse, poderia sair daqui com a carne. O que houve? Eu gostei.

- Você mentiu descaradamente! Nós levamos quase dois anos para nos acostumarmos com o gosto ruim, e você jamais conseguiria isso tão rapidamente, mesmo estando tão faminto.

Sabendo que não sairia mais vivo, Willian queria desvendar um estranho mistério.

- Já que vocês vão me matar, queria saber como vocês fazem para manter esse lugar tão frio.

O homem, com um sorriso macabro, respondeu:

- Você saberá quando se juntar a nós, meu caro. Mas antes você precisa morrer.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 26/02/2012
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