Criando um monstro. Pt 2
Já haviam se passado oito anos desde o dia em que eu fora amaldiçoado pelos céus, oito anos que eu vagava pela Europa atrás de uma razão, destruir a Igreja e matar seus padres não era suficiente. Nessa altura eu já sabia como me locomover pelas cidades, como sobreviver durante o dia e já havia um rastro de terror por onde eu passava, nada mais justo, esse era meu propósito desde que eu fora condenado a eternidade e ao sangue.
Mesmo com meus poucos anos como um vampiro – que é um termo recente, naquela época eu mal tinha certeza do que eu era –, eu descobri que era necessário ser mais inteligente do que todos, ter a força de cinco homens e ter garras que facilmente poderiam rasgar as ferragens de um trem não eram garantias de sobrevivência, o mundo sempre foi e sempre será do mais esperto, e não do mais forte. Como já havia relatado na minha última carta, herdei uma característica incomum, fruto da minha primeira falha ao controlar meu instinto bestial. Meus olhos eram vermelhos como dois rubis, mas naquela época as pessoas não tinham tanta informação como tem hoje, e com sorte eu era – ainda sou – um sujeito bonito, era fácil convencer as pessoas com um belo sorriso de que a genética me pregou uma peça quando eu nasci com esses olhos. É claro que elas ficavam desconfiadas e muito assustadas, o que me faz pensar que minha vida, ou não vida, seria muito mais difícil se eu fosse feio.
Eram meados de 1888 e eu estava próximo de Londres, no entanto, estava muito difícil me alimentar, as pessoas pareciam se esconder ao anoitecer – o que era normal naquela época -, mas mesmo bares e prostíbulos estavam fechados. Eu descobri que tinha um problema, e meu problema tinha nome; Jack, o estripador. Esse desgraçado dificultou minha vida por muitos meses, graças aos seus feitos as pessoas tinham medo de tudo, o toque de recolher era logo ao anoitecer e você não via uma alma vagando pela rua. Eu estava começando a me aborrecer, e eu tinha fome, muita fome.
Por mais que eu ache humilhante escrever isso, certa vez eu tive que me alimentar de uma vítima dele, eu cheguei tarde demais, eu poderia tê-lo encontrado se fosse mais rápido. Bom, vamos nos ater aos fatos. O corpo, que trabalho magnífico! Era realmente tudo aquilo que diziam, talvez até mais! Suas vítimas eram estripadas com uma perfeição incrível, o que me fez acreditar que “Jack”, era algum médico consumido pela própria insanidade, eu descartei a possibilidade dele ser como eu, havia muito sangue no local, nós não deixamos sangue. Acho que se vocês pesquisarem um pouco a história desse magnífico artista dos bisturis, verão que foi escrito em muitos lugares que em algumas cenas de seus crimes, havia uma misteriosa falta de sangue, o que intrigou muito os investigadores daquela época e até os estudiosos de hoje.. Bom, eu só posso dizer isso: Período das vacas magras! Sabem como é, fui obrigado a pegar alguns restos.. A vida não é fácil para ninguém.
Suas vítimas geralmente eram prostitutas, ou seja, vítimas de baixo risco.. Simples de matar e fácil de achar. Eu sou um cara meio impaciente, o caos estava reinando em Londres e até sair da cidade estava tendo suas dificuldades, era necessário que eu agisse o mais rápido possível. Usei certas habilidades para me locomover durante a noite, eu estava imperceptível a olho nu, e talvez fosse minha melhor chance de finalmente me encontrar com aquele cara, o causador de meus problemas. E eu tive sorte, enquanto perambulava pela linda cidade de Londres durante a madrugada, escutei um grito abafado – só pude escutar graças aos meus sentidos aguçados, como de um felino enquanto caça – rapidamente me dirigi até a fonte do grito e o vi! Lá estava ele, estrangulando uma prostituta fedorenta até sua morte, pude observar todo seu ritual, desde estrangular até começar a estripa-la, era bem mais fácil cortar pedaços de um corpo já morto. Eu tentei resistir, mas não consegui, acabei saindo do manto de sombras e me revelando diante daquela criatura insana!
Olá, monstrinho. – Disse em tom sarcástico, minha personalidade havia se modificado bastante com o passar dos anos – Posso me juntar à sua festinha?
Ele se assustou, empunhou uma faca e perguntou se eu não sabia quem ele era, eu respondi que sabia quem ele era e que não tinha medo dele. E foi naquele momento que eu descobri o motivo de suas vítimas serem apenas prostitutas, aquele desgraçado era um covarde impotente que não conseguia encarar nenhum homem cara-a-cara, por isso extravasava sua raiva nas mulheres.. digno de pena.
Ele tentou me cortar, mirando pontos vitais, pobrezinho! Mal sabia ele que eu já estava morto. Deixei ele cravar sua faca em meu estômago e pude ver sua reação, fantástico! Parecia a primeira vez que ele usara sua coragem contra outro homem.. Pena que eu não era um homem qualquer, com um sorriso sádico em meu rosto o levantei pelo pescoço e o encostei na parede daquele beco escuro e fedorento.
Você está dificultando minha vida, meu caro estripador. – Disse enquanto lhe apertava a garganta – Você acha que já não teve diversão demais?
O covarde me encarou nos olhos pela primeira vez, e quando viu minha aparência começou a se mijar igual uma mocinha com medo de monstros do armário, pude perceber que ele era louco, usando termos atuais eu acho que o que o fazia matar era uma dupla personalidade, talvez nem ele soubesse disso, devia passar o dia como um médico comum enquanto a noite era esse assassino à sangue frio. Meus pensamentos logo foram interrompidos..
Escutei passos, larguei aquele pedaço de bosta ambulante e olhei um policial, sozinho, fazendo sua ronda.. senti o medo daquele ser ao ver aquela prostituta no chão, outro homem ensanguentado e todo mijado jogado no chão e um sujeito com olhos que brilhavam na escuridão como a lua brilhava naquele céu noturno! O policial foi puxando um apito em direção a sua boca, eu sabia que se ele apitasse seria o fim. Fui obrigado a usar o pouco sangue que me restava para ativar uma de minhas habilidades, uma velocidade sobre-humana! Pude chegar nele antes que ele piscasse os olhos, e em um movimento rápido abri-lhe a barriga com um corte preciso, eu estava ficando ótimo em matar com minhas garras. As tripas do policial pularam pra fora da barriga e ele foi caindo lentamente ao chão, mas eu o segurei, com os dentes pra fora, revelando toda minha natureza predatória eu enfim me alimentei de uma pessoa, e que sensação maravilhosa! Todo aquele sangue fluindo em mim, me fortalecendo e dando-me a dádiva da vida!
Acho que essa cena foi demais para nosso pequeno estripador, ele correu, e eu deixei, eu estava satisfeito.
Nas noites seguintes, foram atribuídas mais algumas mortes a Jack, aquela prostituta suja, pelo visto as autoridades abafaram o caso do policial, o pânico seria inevitável se as pessoas soubessem que até um oficial da lei fora estripado, e mais uma outra mulher.
Eu vivi por mais alguns meses em Londres, e o estripador havia sumido.. Hoje em dia eu sei que o caso nunca foi solucionado, ele nunca fora capturado, aquela prostituta provavelmente foi sua última vítima, acho que eu assustei o pobrezinho.
É engraçado as pessoas louvarem esse assassino em série nos dias de hoje, elevaram-no ao status de um dos maiores serial killers da história, mas se eles soubessem o que eu sei..
O desaparecimento do meu pequeno amigo não foi suficiente para acalmar as coisas, eu precisaria me mudar novamente. Mas não antes de eu cumprir mais uma ‘missão’, por assim dizer.
Já passara das 10 e não havia mais ninguém na rua, e lá estava eu, na porta da catedral de Londres batendo naquela imensa porta de madeira.. Pude escutar passos lentos se aproximando pelo lado de dentro, e em seguida o barulho dos cadeados se abrindo, correntes caindo no chão e ele finalmente abriu as portas daquela Igreja para mim! E como ela era linda, inúmeros quadros decoravam a Igreja, imagens de Jesus e pinturas de anjos na parede, o cenário perfeito para uma carnificina.
O Padre já devia ter seus 73 anos, era baixinho, tinha olhos cansados e respirava com um pouco de dificuldade, parecia ser uma boa pessoa. Exatamente o meu tipo favorito de comida. Ele me recebeu com um sorriso, como já sabem, eu fui ‘transformado’ aos 18 anos, tinha uma aparência inofensiva, senão fosse pelos meus olhos, era um rapaz alto, e forte fisicamente, não muito grande mas nem muito pequeno, e com os trapos que eu vestia ele devia ter pensado que eu era uma criança sem teto. Com toda sua gentileza ele me convidou para dentro, sua simpatia forçada me irritava, eu queria estraçalhar aquela garganta, mas me contive.. Estava aproveitando o momento.
Ele me ofereceu roupas novas, e com um sorriso no rosto eu agradeci, disse que iriam cair bem em mim. As minhas estavam sujas de sangue e fedorentas, claro que ele não percebeu, estava muito escuro ali. Fiquei em pé na frente do altar, estava cada vez mais difícil segurar minha vontade de destruir tudo ali, me contive novamente.
Ele voltou, com um sorriso no rosto e as roupas dobradas na mão.. disse que eu poderia me vestir atrás do altar, havia um quartinho ali. Naquela hora eu já não me contive mais, precisava matar aquele padre.
Me postei na frente dele, eu disse que tinha feito uma coisa ruim e provavelmente faria outra vez. Porque essa era minha sina. Ele não sabia do que eu estava falando, ele disse que Deus era bom e ele me perdoaria.
Deus não pode perdoar um demônio! – Disse, enquanto minhas presas ficaram expostas, minhas garras cresceram e meus olhos ficaram brilharam em vermelho escarlate.
Demônio! – Ele gritou – Aberração! Como ousa entrar na casa do senhor ?
Ele me convidou, eu não poderia recusar um pedido dele não é? – Disse, com uma risada sarcástica estampada no rosto.
Avancei contra o padre, mas logo eu iria descobrir que nem tudo iria sair como o planejado. As pessoas acreditam que água benta, cruz e até o alho são capazes de afastar os vampiros. É pura falácia! Isso não existe. Mas quando uma pessoa tem uma fé inabalável, uma fé sem limites, aí sim as coisas ficam perigosas. Eu ainda era um demônio, definitivamente não sou uma criatura de Deus, e quem nele crê fielmente é capaz de nos ferir, e eu descobri isso da pior maneira possível.
O padre começou a murmurar algumas preces, eu sabia que ele estava rezando, tinha em mãos um crucifixo de ouro e o apontava na minha direção, e eu ri disso. Eu avancei, mas conforme dava passos eu percebia que estava cada vez mais difícil a aproximação, e quanto mais ele rezava mais pesado meu corpo ficava enquanto eu tentava avançar, precisei usar toda minha força para conseguir dar alguns passos, ele estava de olhos fechados e rezava sem descanso, o poder que aquilo tinha sobre mim era assustador!
O padre abriu os olhos e me viu cara-a-cara, eu não conseguia avançar mais, e acho que por reflexo, ele teve a infeliz ideia de cravar aquele maldito crucifixo na minha testa. Que dor agoniante, eu preferia ser alvejado cinquenta vezes do que ser acertado com aquilo, nós vampiros não sentimos dor, balas e cortes são como socos e pontapés, mas existem alguns tipos de ferimentos que nós somos obrigados a usar nossas habilidades de cura – e vale ressaltar que nem todos tem, por sorte, eu tenho – e acho que senão fosse por ela, eu teria morrido. Parecia que eu tinha enfiado minha cara numa fogueira, com toda minha força sobrenatural eu pulei pra trás, sem olhar e sem medir forças, voei até tombar contra aquela porta de madeira, e corri afugentado como um animal que não teve sucesso em sua caça.
Eu me lembro disso como se fosse hoje, nunca vou esquecer, hoje em dia está cada vez mais difícil alguém ter uma fé igual daquele padre, mas ainda existem. Essas pessoas podem me ferir de verdade, a partir desse dia eu tomei conhecimento de minhas limitações, e que burro eu fui em achar que eu poderia atacar as criações DELE e que elas seriam indefesas, não é? Tudo tem um equilíbrio, e por mais poderoso que nós sejamos, sempre há um modo de nos parar.
Hoje, mais de 100 anos depois, não me lembro de outro incidente parecido, o que me prova que a fé está cada dia se perdendo mais nas pessoas, e eles não são tão devotos quanto mostram que são. Isso é triste para a Igreja, mas para mim isso é ótimo, já que dediquei minha não-vida a destruir tudo que vem DELE.
Johan Liebert, 12 de Julho de 2010