O Entregador de Almas

O Entregador de Almas

Enquanto vidas estão sendo ceifadas indiscriminadamente, nesse mundo de loucos assassinos e motoristas irresponsáveis, o Entregador de Almas tem a difícil missão de estabelecer novas gerações. Seu trabalho começa quando um óvulo é fecundado. Ele vem sorrateiramente e sopra as almas esmiuçadas para dentro da barriga da mãe. São minúsculos fragmentos acinzentados dotados de personalidade que tomarão forma conforme a criança vai crescendo, e de acordo com a criação a qual é submetida. De longe é um dos trabalhos mais difíceis realizados por seres desmaterializados. E se torna mais penoso quando a concepção se dá através de um estupro. Nesse caso não basta simplesmente soprar uma nova alma; pois o corpo rejeitaria assim como ocorre com a rejeição de órgãos transplantados. É necessário que uma vida seja retirada e reutilizar a alma no novo feto. O Entregador de Almas, então, precisa matar alguém, lhe sugar a alma e soprá-la para o novo ser. Mesmo com todo esse trabalho, sabia que não adiantaria nada, pois ninguém aceitaria um filho tão indesejado; mas não poderia evitar. Afinal, era o seu trabalho.

Um estupro estava em andamento num beco escuro de uma pequena cidade do interior. O estuprador, homem de aparência calejada, magérrimo e fétido como um defunto, espremia o corpo pálido da bela jovem de apenas vinte anos contra a parede. Ela não gritava, deixando apenas transparecer o seu terror através de seus olhos esbugalhados e os lábios trêmulos. O homem segurava um revolver devidamente carregado, deixando a vítima sem escolha. Precisava consentir o ato repugnante em troca de sua vida, mesmo sabendo que não havia garantias de que sobreviveria. Deixou o homem lhe tirar a roupa e consumir um pouco de sua pureza, rezando para que ele a deixasse voltar para casa depois de consumado o ato. Os gritos surdos e suplicantes eram música aos ouvidos dele.

No outro lado da cidade o Entregador de Almas precisava de uma vítima. Não importava a cor, a idade ou sexo. Ele sabia que o bebê fecundado seria uma menina, por isso precisava apenas de uma alma feminina. Encontrou uma senhora perambulando pela rua, carregando uma sacola de compras numa das mãos. A figura desmaterializada do Entregador de Almas convergiu-se num corpo humano enquanto deslizava pelos muros que cercavam um condomínio residencial. Saltou na frente da senhora, com sua postura imponente e a fez calar-se com um sopro imperativo. Torceu o pescoço dela com as mãos sólidas e carnudas; e quando viu sua alma se desprendendo do corpo, tratou de suga-la.

O estuprador estava chegando ao ápice do ato. A jovem sentia dores terríveis ante a violência com que ele a tratava. Seu corpo parcialmente nu sentia a parede gelada e áspera enquanto seu interior era violado sem piedade. Quando o estuprador deu um urro de prazer, ela deixou uma lágrima cair pela face ruborizada. Deixou-se cair no chão úmido esperando o tiro de misericórdia. O homem, com a face retorcida e a boca recoberta de dentes podres, a fitou com a respiração ofegante. Apontou a arma para a sua cabeça e com hesitação pôs o dedo no gatilho. Nesse momento o Entregador de Almas se misturou às sombras de objetos que jaziam no beco. Esgueirou-se até ficar entre o estuprador e a jovem. Sem hesitar soprou a alma que havia capturado segundos atrás e voltou a se esconder nas sombras. O homem continuou fitando a moça, porém dessa vez com um olhar diferente. Não sentia pena, nem raiva; apenas uma forte ternura, sentimento pouco experimentado durante sua vida.

No dia seguinte o estuprador teve uma triste surpresa. Sua adorada mãe havia sido assassinada quando voltava para casa com as compras do dia. A jovem, ainda sofrendo as dores psicológicas do ato, descobrira dias depois que estava grávida. Ela sabia muito bem que poderia abortar, mas no intimo sabia que a vida que carregava em seu ventre não foi apenas um triste e doloroso acidente.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 23/02/2012
Código do texto: T3516176