Um Conto de Quaresma

Eu sempre tive um fascínio por este período entre o Carnaval e a Páscoa. Aqui na cidade grande pouca gente se importa, mas em cidades do interior é dada muita importância a esse período de quaresma pelo significado religioso, afinal, segundo a doutrina cristã, foi o período em que Jesus jejuou no deserto passando por várias provações, tendo inclusive sido tentado por Satanás. No folclore, isso se desdobra pela crença de que forças malignas se manifestam com muita intensidade, sendo muito comuns experiências sobrenaturais como visões de criaturas como lobisomens, mulas sem cabeça, aparições e encontros com o próprio Demônio.

Minha família é do interior. Meu pai cresceu numa cidade de não mais que trezentas pessoas, onde eu passava a maior parte das minhas férias durante a minha infância, sendo maravilhado e assustado com as estórias que o povo contava. O costume reza que as pessoas devem se abster de todo tipo de pecado na quaresma, sob pena de sofrer males ou serem perseguidos por algum tipo de entidade sobrenatural. Nesta linha seguiam muitos relatos, sendo um das que mais me marcaram o de um senhor que disse ter visto um touro preto na frente da Igreja Matriz. Dizia ele que o dito cujo tinha seis pares de chifres, a metade de baixo do corpo coberta de escamas, cascos e olhos vermelhos em brasa, e que gritava com uma voz medonha chamando pelo nome alguns moradores conhecidos por cometer maldades e imoralidades. O que mais me intrigou foi ver que muita gente confirmava o tal relado, às vezes acrescentando detalhes ainda mais medonhos.

Passaram-se muitos anos desde então. Me formei, constituí família, e passei a ser bastante cético em relação ao sobrenatural. Tenho a tendência de ver tudo sob um prisma demasiadamente racional, mas há dois anos passei por uma experiência que pôs minhas certezas em xeque a respeito do que pode ser considerado loucura ou realmente sobrenatural.

Fiquei abalado por muito tempo e tive receio de contar esta história até mesmo para minha esposa, que ficou num misto entre descrença e medo, como a maioria dos amigos para quem contei os fatos. Eu resisti muito antes de escrever isso, pois enquanto o faço, as imagens voltam vívidas à minha memória, perturbando profundamente meu espírito, mas enfim, sinto que devo fazê-lo:

Eu estava de volta àquela cidade, pois tinha recebido como herança uma propriedade rural que pretendia vender o quanto antes a fim de evitar qualquer aborrecimento. Cheguei na casa onde costumava passar as férias, mas a mesma já em nada me lembrava dos tempos felizes de antigamente. Minha tia Cida, sempre tão querida, era agora uma velha amarga. Meus primos eram adultos irritados, se envolviam em problemas e bebiam muito. Minha prima Lili, que era uma criança linda naqueles tempos, tinha agora 27 anos, mas já aparentava mais de 40. Estava acabada e deprimida. Tinha dois filhos e um marido alcóolatra. Eu queria sair o quanto antes daquele lugar horrível. Concordamos em vender o sítio e dividir o dinheiro.

Levamos um corretor para avaliar a propriedade e seguimos pela estrada num Passat caindo aos pedaços por aquelas estradas horríveis.

Quando cheguei ao sítio fiquei desanimado. O lugar era muito distante, quase não tinha benfeitorias e estava bem deteriorado. Era herança do tio Cláudio, que tinha aberto uma mercearia no vilarejo e arrendado o sítio pra um antigo empregado, que usava o local como abatedouro ilegal, o que se percebia pelas pilhas de ossos de bois, porcos, bodes e até cavalos.

O corretor também não parecia animado com a possibilidade de vender aquilo, tanto que já tinha me aconselhado a abrir mão e deixar que meus parentes se virassem com o inventário. Estávamos avaliando o estado de um dos currais quando a tia Cida apontou para o teto.

– Foi naquele toco lá que ele amarrou a corda. Ele queria morrer mesmo. A corda era grande demais e ele teve que encolher as pernas pra conseguir morrer enforcado.

Naquela hora decidi seguir o conselho do corretor e deixar tudo pra lá. Ouvi um grito da Lili.

– Vem cá, demônio! O que você tá fazendo aí, desgraçado?

Ela estava gritando com um dos filhos que tinha se distanciado da gente e brincava com uma caveira de bode.

– Cala a boca, sua maluca! Para de ficar falando nome do Coisa Ruim aqui! Sabe que a gente tá na quaresma! – Repreendeu tia Cida.

– É que esse desgraçado não obedece – Disse Lili dando um beliscão no filho – E para de chorar!

Continuamos avaliando o sítio e aquele ambiente já me dava mal estar. A casa da sede estava destelhada, cheia de folhas, lixo no chão, haviam cinzas de uma fogueira e cera de vela no meio da cozinha. Comi uma carambola no quintal antes de atravessar o riacho e fomos até o outro lado, na casa do sujeito que arrendava o lugar.

A tia Cida queria saber quanto ele ganhava abatendo animais, perguntava várias coisas. Os primos discutiam assuntos inúteis. Prosseguíamos a tarde toda naquela conversa enfadonha, bebendo café ralo e comendo uma linguiça frita de procedência duvidosa. Eu mal podia esperar para aquilo tudo acabar. Quando a prima Lili levantou de repente da cadeira.

– Cadê aquele capeta? Sumiu de novo? – Perguntou para o filho mais velho, que brincava com terra.

– Não sei.

– Tu tem que tomar conta do teu irmão, seu burro – Gritou batendo no menino. – Vamos procurar ele.

Tia Cida saiu da casa e advertiu Lili.

– Eu tô te falando pra parar de falar esses nomes, menina. Vai acontecer coisa ruim contigo se tu não parar com isso.

– Eu não aguento mais esses moleques! – Disse Lili com raiva, e saiu pelo mato gritando – Demônio! Cadê você seu bicho ruim? Vem que eu vou te dar uma coça!

Tia Cida já estava sem paciência.

Já eram seis da tarde, estava quase escurecendo. As crianças choravam. Já tínhamos nos despedido e voltávamos pela mesma estrada. Mas no meio do caminho, como tudo já não tivesse sido ruim o suficiente, o carro enguiça.

Meus primos xingavam e esmurravam o carro. Saímos pra tentar resolver. Tia Cida, Lili e as crianças ficaram dentro do carro.

Pelo básico que eu sabia de mecânica, não podia fazer nada. Meu primo achava que o carburador tinha entupido de novo e começava a desmontar. Estava no meio do trabalho quando a Lili começou a gritar desesperada.

– Ah! Sai daí! Ele tá lá na frente, olha!

Não tinha nada nem ninguém em volta.

– Sai daqui! Sai daqui! O que você quer comigo? – a Prima Lili gritava e chorava desesperada enquanto tia Cida tentava acalmar.

– Que foi, menina, que que foi?

– O Bicho Ruim, tia, ele veio me pegar olha lá!

Ela olhava fixamente e apontava para um ponto da estrada onde não tinha nada e chorava muito. Comecei a ficar assustado.

O corretor só olhava de longe. Já estava pálido.

A tia Cida pegou um terço e começou a rezar alto. Lili chorava e de repente começava a rir descontrolada. Depois olhava a estrada, chorava e gritava por socorro. As crianças não paravam de chorar. Aquele carro havia se transformado num verdadeiro inferno.

– Reza Lili! Reza um Pai Nosso que ele some! – Gritou tia Cida.

– Ele tá olhando pra mim! Não! Sai daqui Belzebu! Ele tem um olhão de fogo, tia! – Berrava Lili – Desculpa filho! Perdão Jesus!

Tia Cida fez a Lili rezar um Pai Nosso. Ela começou a se acalmar rezando entre soluços deitada no colo da tia. De vez em quando ela dava uma gargalhada só pra depois voltar a chorar baixinho. Tentei me concentrar no defeito do carro.

Não tinha nada errado com o carburador. Meu primo montou de novo e o carro simplesmente ligou quando girei a chave. Seguimos nosso caminho enquanto Lili continuava chorando baixo e de vez em quando dava uma gargalhada. Tentávamos apenas ignorar aquilo.

Chegamos à noite. Me convidaram pra jantar e dormir lá, mas recusei e fui dormir no hotel em que já estava hospedado, numa cidade vizinha.

Na noite seguinte voltei e a prima Lili estava de cama. Teve uma febre de 40 graus na noite anterior, tinha sofrido de delírios, mas agora estava dormindo. Perguntei para minha tia o que tinha acontecido na estrada.

– Ela contou pra mim ontem. Você não ouviu? Eu disse pra ela que isso ia acontecer. Ela chamou o nome do Coisa Ruim e aquilo apareceu pra ela no meio da estrada. Ela disse que o Bicho ficou parado. Só olhando pra ela e com cara de riso. Disse que ele era vermelho com pele de cobra, andava igual um corcunda, tinha chifre e olhos de fogo. Eu não falei? Foi o Tinhoso que apareceu pra ela. Ela tá tendo pesadelo direto. Diz que o Bicho falou que vai aparecer pra ela toda quaresma.

No dia seguinte falei com o advogado e expliquei para todos que estava cedendo minha parte da herança e passei dois bons anos sem por os pés lá. Acabei me convencendo que Lili apenas havia tido uma alucinação sugerida pela tia, além da cultura e crenças locais, que favoreceram tal fenômeno.

O processo do inventário ainda caminha a passos lentos. Há alguns dias tive que voltar para aquela cidade e assinar alguns documentos. Soube que a prima Lili ainda estava muito mal. Sofria ataques de pânico, tomava tranquilizantes, antidepressivos e precisava ser vigiada, pois se desconfiava que quisesse cometer suicídio.

Coitada da Lili. Lembro-me dela na minha infância. Era uma menina tão bonita, tão alegre, e hoje, principalmente nessa época de quaresma é atormentada por crises e alucinações. Durante a noite, nem ao menos se atreve a olhar para fora de sua casa durante a noite, porque sabe que sempre estará sendo observada pelos olhos de fogo.

Elton S. Pereira