Com “F” Se Escreve Foguete

"Para Anita, minha adorada irmã, que me acendeu o gosto pela literatura.

Para Ray Bradbury, que jogou gasolina na fogueira iniciada por minha irmã."

Fim do ano de 2006. De repente acho que deixei de ser um astronauta para voltar a ser novamente humano. O devir não durou muito, é verdade, mas lembrou-me de sensações que considerava tolhidas pra sempre de meu corpo. Uma claustrofobia quase insuportável e um olhar perdido numa imensidão negra, que atraía o infinito para dentro do meu peito – quase o irrompia. Fez-se noite no espaço. Meus reflexos chegaram mesmo a hesitar e tive a nítida impressão de perder alguns diálogos pelo ponto de áudio em meu ouvido.

A LLN/10-2006 se aproximava do solo lunar como um mosquito faria com a cabeça de um gigante. A escotilha fitava meu rosto e meus olhos fitavam o que parecia uma tela gótica, recortada em bege e negro. Lá estava o mar de areia, seco e inanimado, onde elevações escondiam outras elevações que apareciam mais adiante para sumir logo após. A luz do sol, por aqui, clareia tudo de forma diferente. Este não é nosso mundo.

Meu corpo deveria ser apenas concentração, entretanto, não conseguia evitar. Pensava enquanto novamente tomei minha responsabilidade como tripulante do módulo que se desprendera do foguete principal há dois dias atrás. Pensei no grupo anterior, que havia chegado à Terra alguns meses antes de nossa partida. Tinha certeza que gostava muito mais deles antes. Treinamos juntos, estudamos juntos e suportamos a longa e dolorosa jornada que nós, astronautas, devemos enfrentar antes de finalmente encarar o gigante de metal e combustível. Decerto, tinha-os em muito melhor conta.

Mas o grupo anterior voltou e por algum maldito motivo, não eram mais os mesmos. Olhos que perderam o brilho, empolgação que se esvaíra. Não eram os mesmos e todos perceberam isso. E sim, eu repito: gostava muito mais deles no passado, antes de sua decolagem e durante toda a convivência no treinamento. Mas isso não é importante agora, eles estão há milhares de quilômetros daqui e esta é a nossa vez.

Todo o folclore que envolve qualquer missão espacial faz de nós seres oniscientes e especiais, Semi Deuses acima dos que acompanham tudo pela televisão e precisam fazer coisas mundanas como pagar as contas no banco e ir ao mercado para abastecer a despensa todos os meses. Acho que não acreditariam que nada é muito claro, mesmo para nós, os quase Deuses que usam uma roupa idiota, que nos permite respirar onde o oxigênio não existe. Nunca sabemos de tudo, nos cabe o mínimo para desempenharmos nosso papel. Existiram missões obscuras que ficaram bem longe de qualquer noticiário, mesmo daqueles que iniciam depois que todos já foram dormir e dos que passam antes de as pessoas despertarem. Oficialmente não existiram, mas qualquer coisa que envolva o governo e os sujeitos que sentam naquelas cadeiras pesadas no centro de salas ovais e funestas, pode se tornar confidencial da noite para o dia. Questionar esta condição não fazia parte de nosso treinamento e sabíamos bem disso.

O toque do módulo em solo lunar foi macio, lembrando mesmo o simulador. Na mosca. Conferi diversas vezes no visor e orgulhei-me de nossa perícia. Saltamos os três, depois de concluir todas as tarefas previamente agendadas no espaço diminuto da nave quadrúpede. Tudo é como imaginávamos e nada é como se espera. A Terra, azul e enorme, nos chamava de volta do centro do céu alienígena. Achei que seria capaz de ouvir o burburinho da noite Nova Yorquina ou a explosão de uma torcida em um grande estádio de futebol do outro lado do atlântico.

Meu radar portátil acusava, através de um ponto verde claro, a existência de mais uma engenhosidade humana, localizada em algum lugar no vazio frio que separa a Lua e nosso planeta natal. A Estação Espacial. Conhecíamos o projeto, mas nada sobre o objetivo. Agora mesmo tem gente lá, a turma da Equipe 17. O ponto vermelho brilhando intermitentemente é a Estação Lunar e também nosso objetivo. Uma grande caminhada. Nenhum módulo pode aterrar (estranha palavra para quem pousa na Lua) perto dela. Sabemos apenas que devemos passar quatro meses aqui, comprimidos em um espaço que não deve ser maior que o quarto de meu filho. Irromper o ano de 2007 tentando apertar os olhos para enxergar, no alto do céu lunar, um show de fogos coloridos que se inicia em Tókio, depois Sidney, e vai corcoveando como uma serpente chinesa que procura pelo Ocidente, de encontro ao longínquo Oeste. Imaginar cada estampido e nos regozijarmos com todas as cores faiscantes e quentes, explodindo em diversas meia noites.

Iniciamos a caminhada que deveria durar quase uma hora. Recebíamos ordens rápidas do Comandante que marchava à frente, outras vezes, chamadas da Terra. Seguimos contando com nossos radares portáteis, que recebiam auxilio de satélites e informações mantidas em chips internos. Mantinha a distância recomendada dos demais, seguindo no meio de uma fila virtual. Lá adiante, o comandante imitava um vulto de tamanho inumano, devidamente aumentado pelas roupas incômodas. Chegava a perdê-lo de vista quando dobrava à direita e à esquerda diante de montes de terra do tamanho de pequenos morros terráqueos. Cinqüenta minutos haviam se passado quando um estalido no áudio de meu ponto eletrônico pareceu formar uma palavra, contudo totalmente incompreensível. Temia não conseguir manter a concentração adequada. Poderia apostar que ouvira a voz do comandante, mas bem poderia ser a de P.J. Não fora uma chamada da Terra.

- Não compreendi a última mensagem. Gostaria que fosse repetida.

- Tampouco eu. - A voz de P.J. ecoou dentro de meu capacete. Ele caminhava, talvez, meia milha para trás.

- Solicito confirmação – Tive a impressão de que a voz do comandante, e agora tinha absoluta certeza de que era ele quem falava, hesitava de uma forma incomum. O sujeito não era de vacilar, pelo contrário, conquistou respeito justamente por mostrar posições firmes e determinar soluções quando outros recuariam. P.J. fez couro comigo ao solicitar que a mensagem fosse retransmitida.

- Eu disse: meu Deus, o que é isso?

- Há algo errado por aí? O senhor está bem? Algum código a ser transmitido?

- Aguardarei a chegada de vocês até aqui. Estou bem, pelo menos inteiro e acho que ainda não fiquei louco. Nenhum código de alarme. Peço que se apressem.

Confirmamos o entendimento da mensagem quase instantaneamente. Apressei o passo e sabia que P.J. também o fazia. Afora problemas habituais de equipamentos ranhetas e atrasos em cronogramas, não recordava de nenhuma grande emergência nas últimas três ou quatro missões como a nossa. Mas é claro que qualquer questão mais delicada, envolvendo vidas humanas ou propulsores de quarenta e cinco milhões de dólares, poderia ser considerada “confidencial” e, então, deixavam de existir e evaporavam como álcool esparramado sobre mármore. O esforço de caminhar com aquele equipamento sobre os ombros e a voz metálica e vacilante do comandante fizeram com que a bomba de músculos dentro de meu peito também acelerasse o passo. Senti um jorro inicial de adrenalina fluir como uma injeção intravenosa, mas mantive todas as reações sob controle.

Cheguei tão próximo do comandante que pude tocar seu braço, após dobrar um enorme monte arenoso, que ficou ao nosso lado como uma testemunha muda. Olhei primeiro adiante para, em seguida, tentar enxergar os olhos do comandante por baixo do escuro do capacete. Gostaria muito de uma explicação. Meu Deus, gostaria muito de saber se existe esta explicação.

- Brincadeira ou alucinação? – Perguntei, mas falava comigo mesmo.

- O que falam aí? Não fui capaz de entender novamente.

- P.J., apresse-se. – Exclamou o comandante. A impressão foi de que a voz dele fez uma viagem até o fim do cosmos para então voltar e alcançar meus ouvidos. Vinha de longe e era etérea. Meus sentidos me traíam e não havia nada no treinamento que pudesse me ajudar numa situação como esta. Eles destruíram este capítulo e pularam esta aula. Não era plausível, experimentávamos uma alucinação qualquer e ponto final. Acontece com qualquer um. O estresse é impiedoso. Um terrível devaneio. Minha mão deslizou até o comando próximo a meu pescoço e o comandante me imitou automaticamente. Acendemos a iluminação do interior dos capacetes para confirmar a própria expressão impressa no rosto do companheiro. O que falávamos com os olhos? Ele balançou a cabeça para os lados, talvez duvidando tanto quanto eu da própria sanidade.

Um monstro lunar, com cinco milhões de anos de existência, irrompendo de uma das crateras à nossa frente, incomodado com a presença de visitantes inoportunos e disposto a fazer em pedaços tudo o que se movesse além dele próprio, não teria sido tão assustador. Mas não era isso. Estava diante de uma visão hediondamente familiar, capaz de suscitar o pavor em sua forma mais ancestral. Minhas pernas mostraram os sintomas do cansaço e do medo ao bambearem de leve.

Duzentos metros a nossa frente estava a Estação Lunar, nosso destino final. Meu radar portátil apenas confirmava o que já sabíamos. Recebemos o primeiro contato vindo de alguém lá de dentro.

- Comandante, não deveria existir ninguém lá dentro. A coisa deveria estar vazia, não é assim? Não é? Oca como uma droga de caixa de sapatos. O que se passa aqui, afinal?

Acontece que o sujeito que resolve subir uma montanha de seis mil metros de altitude, bem como aquele que decidiu vencer o campeonato mundial de mergulho em apneia, não conta que algo possa dar errado de verdade. Tudo deve acontecer como foi programado, é assim que as coisas devem se dar, mesmo para os destemidos. Agora tenho certeza que o mesmo deveria ser conosco, todas as respostas bem lá no livro de receitas.

Nada havia sido dito sobre “alguém na Estação”. Menos ainda sobre todo o resto. “Comprimidos em um espaço que deveria ter o tamanho do quarto do meu filho”. Meu Deus, aquela coisa tem o tamanho de um supermercado. Construído num material transparente como vidro. Vidro? Aquilo não era vidro, por todos os demônios deste e do resto dos mundos. Enxergava uma porta. Não, um portal. Um verdadeiro portal que era uma imitação da entrada da agência espacial que estava num planeta que parece jamais ter existido e se chama Terra. Atrás desta entrada quase magnífica, o pátio interno com a sala de adaptação. Não me perguntem, não posso explicar, mas sei que ali é a sala de adaptação. Está logo depois da entrada e se parece com uma das que experimentamos na Terra, porém, aqui, alguém elevou ao cubo seu tamanho. Algumas pessoas em trajes civis nos fitavam desde o interior daquela medonha catedral de vidro desconhecido. Árvores. Temia realmente por minha sanidade, mas elas estavam lá. Os brotos e mais adiante, troncos bem desenvolvidos com copas verdejantes e florescendo como na Primavera. Qual seria a estação do ano lunar? De pé, com as raízes disputando espaço no chão marrom escuro, elas lançavam galhos para todos os lados. Minha transpiração atingiu o material do uniforme. Em quantidade e gelada como o vento do Alaska.

- Meu Deus, comandante. Crianças.

A voz de P.J. explodiu em nossos ouvidos novamente. Exclamou algo como “Isso não faz sentido” ou alguma outra frase muito próxima desta. Uma vez mais, o comandante solicitou que o homem se apressasse.

Era uma quadra de esportes e muito bem iluminada. Lá dentro da Estação Lunar. Quatro crianças corriam atrás de uma bola, disputando algum jogo muito animado. Aproveitavam aquele espaço generoso com as perninhas velozes indo de cá para acolá e depois voltavam berrando imprecações. Todas sorriam e nenhuma delas percebeu nossa presença. Então algo ainda mais assustador aconteceu. Nossa moral já havia sido completamente nocauteada e poderia ser medida em números negativos, mas não sabíamos de todo o horror que nos aguardava. Através de uma pequena porta lateral, cuja existência eu não percebera e imaginava que meu comandante também não, a criança que parecia ser a mais velha saiu do interior da construção com a bola na mão e a chutou sem direção, de encontro ao nada. Rumo ao espaço ou contra algum monte de areia lunar. E a bola, querendo mostrar-se completamente desobediente, decidiu criar um grande arco incomum, desafiando a gravidade. Manteve-se quase como uma bolha de sabão destacada no ar. E as outras crianças seguiram também para o lado de fora. Estavam descalças e não usavam qualquer apetrecho além das saias, shorts e camisetas. Nos quatro vértices do prédio, aparelhos conhecidos como “Geradores de atmosfera” funcionavam a plena carga. Até onde alcançava nosso conhecimento, algo ainda em “fase de pesquisa” no instituto de Estudos Avançados. A atmosfera dentro do pavilhão deveria ser algo muito próximo ao que experimentamos quando estamos na Terra, então. Este era o objetivo daqueles Geradores que estavam “sendo desenvolvidos” pelos cérebros mais dotados dentre todos. Mas estamos na Lua, com mil demônios. Na lua. E as crianças estavam do lado de fora daquela estrutura, agora. Não contavam com a proteção que aquela coisa foi projetada para dotar aos que estavam no interior. E não contavam com calçados especiais, tampouco com peso extra para compensar a ausência de gravidade. Deslocavam-se sobre o solo da lua como criaturas nativas, adaptadas durante ciclos e mais ciclos evolutivos e depuradas pela natureza para alcançar sucesso naquele meio ambiente. Elas não possuíam pés normais. Pareciam agarrar o solo para evitar que levitassem como balões inflados de gás hélio.

“Salamandras sobre o vidro externo de uma janela”. Este foi o pensamento que buzinou minha mente. “Elas são como salamandras e estão agarrando o solo com a base dos pés pequeninos”.

- O que estão fazendo, comandante? Que grande merda estão fazendo aqui?

- Espero estar completamente enganado. Não mencionaram coisa alguma sobre alucinação em grupo e acho que estão vendo exatamente o que vejo. O que significa que podemos estar loucos. Os três. O que é tudo isso? Não sei se posso prosseguir. - P.J. congelava sob o capacete. Agora estava ao nosso lado.

E a bola demorou a voltar lá do alto, adejando preguiçosamente em direção ao solo rochoso. Os meninos aguardavam ansiosos. Continuavam a se deslocar estranhamente ali fora, formando movimentos indizíveis num balé alienígena. Voltavam para dentro da Estação, ficavam ali durante um ou dois segundos e então saíam novamente. Podiam ficar do lado de fora um tempo impensado, para entrar uns segundos mais. Saíam e esperavam pela bola desobediente.

“Golfinhos”. Agora foi o pensamento que vociferou alto dentro da minha cabeça. Eles podem passar muito tempo sem ar, mas ainda dependem dele para viver. Essas crianças são como golfinhos indo à superfície em busca de oxigênio. Santo Deus!

Ficamos parados ali, mal suportando o próprio peso e o do equipamento sobre nossas pernas, a despeito da gravidade reduzida. Calados, lado a lado, imaginando como cada um de nós estava reagindo diante daquele espetáculo de horror.

- Por favor, aproximem-se para identificação positiva e processo de interiorização. - A ordem veio da Estação e bateu de frente contra nossos ouvidos sensíveis. Não podíamos ficar envergonhados com o sobressalto provocado pelo susto. Estremecemos de verdade.

Acho que nenhum de nós tinha absoluta certeza do que deveria ser feito ou se atender àquela ordem era o correto. Não havia escolha e esta era a grande e pavorosa verdade. Caminhamos temerosos, como cegos tateando o caminho, até atingirmos o portal de entrada, que se abriu a um comando de uma das pessoas que nos fitava de dentro de seus trajes civis. Esperamos pela adaptação, e enfrentamos o processo de interiorização enquanto uma rotina deveria estar transcorrendo naquele local maldito e inesperado. Finalmente a porta para o interior da Estação foi aberta. Foi quando temi não ser mais capaz de me mover. Definitivamente. Fomos recebidos por um sujeito de tez muito clara e olhar plácido. Não parecia somar além dos cinqüenta anos, mantinha a musculatura trabalhada nos braços e peitoral. Deveria gastar algumas horas por dia exercitando-se numa academia muito bem aparelhada. Ele falou dirigindo-se ao comandante:

- Sejam bem-vindos. É realmente um prazer recebê-los. Contamos apenas com os melhores e sabemos que a equipe do módulo LLN/10 não é diferente. Todos se destacaram o suficiente para fazer parte de nosso grupo. Agora somos uma única equipe. Sintam-se a vontade. Alguns pontos iniciais precisam ficar muito claros e estou aqui para isso. Ponto um: deste momento em diante estão sob nossa responsabilidade e nosso comando. Podem me chamar de Santinni. Alguns me chamam de chefe, outros de Coronel. Não importa. Não se espantem com meus trajes, tampouco, a hierarquia aqui é um tanto diferente. Dispensamos os uniformes. Mas é fato: não farão contato com ninguém ou qualquer setor da Agência durante sete dias. Neste período, a adaptação ao novo ambiente será toda a preocupação que deverão ter. O ponto um está claro? – Santinni não alterou a expressão do rosto em momento algum enquanto falava. Aquilo era uma rotina tediosa para o sujeito, mas, ainda assim, mantinha-se polido e simpático. O mesmo não poderia ser dito a respeito dos três novatos, estávamos como presas acuadas. Amedrontados e arredios.

- Senhor Santinni, a equipe do módulo LLN/10 gostaria...

- Concordo com o Senhor, comandante, creio de verdade que gostariam de ver muitas coisas de forma mais clara, mas esta não é a hora, creia em mim. – Santinni interrompeu pelo meio a pergunta que estava sendo feita por nosso, agora, ex-comandante. – Preciso da confiança do grupo, peço que confiem em mim acima de tudo. E que acreditem que a Agência Espacial não se enganou em trazê-los até aqui. Sinto muito, mas preciso insistir: o ponto um está bem claro?

Não houve resposta. De minha parte, não saberia mesmo o que dizer, além do mais, não ousaria responder o que quer que fosse antes de meu ex-comandante. E ele se calou. P.J. deveria estar pensando algo muito parecido com o que eu mesmo pensava, nos conhecíamos o suficiente para que eu soubesse disso.

- Entendo muito bem o que se passa com vocês e isso não me espanta – Santinni prosseguiu – nada diferente do que aconteceu com missões anteriores. Vocês não diferem das outras equipes briosas que estiveram por aqui, pelo contrário. Considero este silêncio como uma assertiva e aqui estamos combinados: o ponto um está claro.

- Sim Senhor, o ponto um está claro – o comandante finalmente concordou. Continuava hesitante e vulnerável. Todos nós.

- Pois bem, assim é melhor. Devemos ir ao ponto dois. Seus aposentos ficam logo após aquele corredor ali, serão apresentados a eles em breve. Acima daquela mesa estão três laptops. Pertencem a vocês, por favor. – Num gesto, solicitou que apanhássemos cada um, o seu computador. Pude, então, olhar com mais cuidado ao redor. Uma mesa, de madeira escura e formato trapezoidal, era forrada de feltro, à maneira de uma mesa de sinuca. Sobre ela, descansavam os computadores portáteis e de fronte a eles, plaquetas de identificação com nossos nomes indicavam qual deveríamos pegar. A iluminação era indireta e agradável. Um tom pastel semelhante ao coral muito claro estava nas paredes e também no piso do chão.

– E o mais importante – Santinni voltou a falar – no “desktop” de cada uma destas máquinas existe um arquivo chamado DIA1. Já no interior de seus quartos, peço que liguem os computadores e executem estes arquivos. Fiquem muito tranqüilos, não se trata de vírus ou nenhuma brincadeira. Mas apenas poderão deixar novamente os aposentos após abrirem esse arquivo. Lembrem-se: devem abrir o arquivo DIA1, nenhum outro. Por favor, além de uma súplica é uma ordem explícita. Façam exatamente o que falo e depois, exatamente o que for explicado pelo computador. Gostaria muito de saber que o ponto dois está fechado.

- Senhor, a equipe da LLN/10 não tem nenhuma escolha no momento. O ponto dois está claro. Por enquanto, tudo está tão claro como óleo diesel e fechado como feridas purulentas, mas concordamos com o que foi dito. Faremos assim.

- Perfeitamente compreensível. Compreendo como se sente, comandante. Vai ver que tudo ficará muito bem, tão logo façam o que lhes foi dito. Estão algo perplexos e ainda assim, agindo de acordo e corretamente. – Empertigou-se, levando ambas as mãos para dentro dos bolsos das calças pregueadas e bem cortadas. A entrevista chegava ao fim. - Com isto elucidado, serão acompanhados até os lugares que lhes servirão de lar pelos próximos quatro meses. Mais uma vez dou-lhes as boas vindas e sugiro que fiquem tranqüilos. Sua presença é de muito valor aqui. Obrigado, Senhores.

É claro que falo por mim, mas acho que meus companheiros não diriam coisas muito diferentes. Sentia-me atordoado e apavorado. Fui pego por um furacão e não tive tempo de me proteger. No momento em que Santinni terminou com o breve discurso, outro sujeito vestindo jeans e camiseta branca com o nome bordado à altura do coração, surgiu na sala e, num gesto reverente, fez com que o acompanhássemos. O comandante estava correto. Que outra escolha possuíamos? Fomos deixados a sós em nossos aposentos e a porta foi fechada por detrás de minhas costas. Preferi não testar se haviam me trancado pelo lado de fora, não gostaria de agir como um prisioneiro e considerava a idéia odiosa. Éramos astronautas e continuaria agindo como um. A minha volta estava uma suíte de dar inveja a alguns hotéis de luxo, com a porta dos armários e do banheiro apenas encostadas. A iluminação oblíqua poderia ser considerada repousante, não fosse o estado deplorável em que se encontravam meus nervos e meu físico.

Deveria continuar sendo um astronauta, decidira que não abriria mão disso e para tal, obedecia ao meu novo comando. Estava sob a batuta da Estação Lunar e nada se podia fazer quanto a isso. Todavia, a sensação de horror não abandonava meu corpo. Apoiei o laptop sobre a mesa de cabeceira e o liguei. Tinha as mãos visível e preocupantemente incertas. O mouse, no centro do teclado, fugia de meus dedos teimosamente. O duplo clique no arquivo DIA1 abriu um vídeo em formato mpeg. Vi uma animação muito bem realizada à guisa de apresentação, onde se podia ver um dia de trabalho normal na Agência Espacial, no planeta Terra. A entrada pomposa, salas apinhadas de gente e equipamentos modernos em todos os cantos. A introdução deu lugar a um rosto feminino, de uma beleza fria e morena. Com cabelos lisos e muito negros, amarrados em um coque, a mulher sentava de maneira muito confortável num sofá quadriculado. Ela abriu a boca e sua voz era macia e formal, à maneira de uma apresentadora de telejornal vespertino.

- Seja novamente bem-vindo à Estação Lunar – e aqui ela me tratava pelo nome – nossa equipe espera que sua chegada tenha sido a melhor possível. Como o Senhor pode comprovar, o Coronel Santinni é uma pessoa amável e de fácil convivência. Mas isto ficará evidente com o tempo. Depois da pequena conversa na qual puderam conhecê-lo e receber as primeiras instruções, gostaria de enfatizar que, nos dias e meses que se seguem, seu trabalho será de grande importância para nossa nação, que acredita piamente no valor de seus heróis. Suas tarefas serão conhecidas em breve. Por hoje, é necessário descanso. A pílula que se encontra em cima de sua mesa de cabeceira deve ser ingerida com o auxílio do copo de água.

Não tinha notado. Estava lá, na outra mesa de cabeceira. Tanto o copo cheio de água, como uma pílula cuja cor era próxima do encarnado.

A imagem da tele jornalista de cabelos negros continuou em seu ritmo compassado: - Em breve, ordens para que abram o arquivo chamado DIA2 e que está logo abaixo deste, em seu “desktop”, será dada. Até lá, boa sorte e desejamos uma cooperação com a equipe do módulo LLN/10 no melhor estilo patriótico e profissional.

Fim do pequeno-maldito-filme. A imagem ficou congelada com o logo da Agência Espacial brilhando em prata e azul na tela de LCD do laptop. Desliguei a máquina e o zumbido leve do pequeno “cooler” cessou, deixando o quarto absolutamente silencioso. Fitei o outro lado da cama onde o copo e a pílula me aguardavam sobre a outra mesa de cabeceira. Olhei para a porta de saída e novamente questionei dentro da cabeça se eu não passava de um mero prisioneiro. Não, este não era o caso. Lembrei da equipe anterior e dos olhares que se perderam para dentro do espaço sideral. De como se arrastavam e questionei em que ponto eles perderam a vontade e a coragem de continuar, pois estava claro que, após a estada nesta mesma Estação Lunar, todos perderam o brilho próprio. Pensei em meus dois companheiros em seus quartos e como acolhiam esta nova informação vinda do laptop. Bons sujeitos e bons astronautas.

Estiquei-me sobre a cama e trouxe comigo o copo juntamente com o comprimido. Fazia como um autômato, decidi não questionar a ordem que me foi passada. Engoli aquela coisa e toda a água do copo. Não reunia condições de avaliar nada, de qualquer forma. E um sono incontrolável veio tomando meu corpo, como uma naja rastejando sorrateira, eliminando a vontade dos membros, que se tornaram indolentes. Pesava no fundo dos meus olhos como jamais havia sentido em minha vida. E antes de adormecer, pensei. Pensei em como estávamos tratando nosso planeta e quanto tempo ele tinha antes de perecer. Pensei em estranhas pesquisas com DNA e no fim da biodiversidade. Imaginei missões obscuras, pesquisas secretas, cientistas desconhecidos. Em meu devaneio no espaço, em minha viagem etérea, quase alcoólica, absolutamente nublada pelo sono e pelo entorpecimento dos sentidos, tentei medir qual seria o preço da continuidade da espécie humana e quanto teríamos que pagar pela conquista do espaço.

E então dormi. Dormi e sonhei. Em meus sonhos, eu era um astronauta e estava em algum lugar que jamais havia visitado. Usava uma camiseta leve de verão e meu pai estava comigo. Perguntei a ele como era possível, eu o havia perdido aos nove anos de idade e agora ele estava bem ali do meu lado. No céu desconhecido, três luas tinham o contorno brilhante, imitando diamantes suspensos no céu. Meu pai sorriu e disse que eu não precisava me preocupar com nada, apenas deveria fazer o que mandavam e tudo ficaria bem. Os cientistas estavam tomando conta de tudo. Aquilo me confortou, achei que ele estava danado de certo e então sorri de volta para ele. Minha inquietação cessou instantaneamente. Ao largo, bem ao nosso lado, uma mulher com quatro seios dava de mamar a uma coisa que possuía algo preso nas costas. Asas, imaginei. A mulher nos encarou e então disse:

- Em breve ele voará. Não falta muito.

Meu pai sorriu para a mulher. Eu também pretendia sorrir, mas subitamente, percebi que não era mais papai que caminhava a meu lado. Algo como um anão mumificado saltitava para acompanhar meus passos de maneira repugnante. A mãe dedicada prosseguia a nos encarar.

- Seu pai sabe, ele voará em breve – ela repetiu.

E então eu não estava mais naquele planeta ignorado, mas sim na Lua. Neste novo sonho, ela era absurda e estranhamente próxima à Terra. Esticando a mão poderia tocar nosso planeta. Um esquimó, usando botas militares que não combinavam com o resto de sua vestimenta típica, apontou de longe e caminhou em minha direção. Falava sem cessar, tentando me explicar algo em um idioma completamente ininteligível. Não percebia que, debaixo de seus pés dentro daquelas estranhas botas pretas, o gelo polar era impiedosamente derretido pelo efeito estufa.

Fim.

Marcelo Santoro
Enviado por Marcelo Santoro em 18/01/2007
Código do texto: T351274