Danças Noturnas

Já fazia mais de meia hora que ele estava andando e nada, a chuva não dera ainda nem um minuto de paz, estava molhado, cansado, com frio e totalmente apavorado, não sabia se reclamava da ma sorte por não ter encontrado ainda o mensageiro, ou se agradecia a deus por livrá-lo, seja lá do que fosse, que aquele velho italiano lhe contaria. Ele sabia, que para que ele o tivesse importunado no meio da noite devia ser algo muito importante.

Começava a se perguntar se não existia nenhum outro nesse maldito mundo, se não havia outro que pudesse ser importunado as três da manha de uma maldita noite de inverno, para enfrentar que sorte fosse de criatura deste ou de outro mundo com um conhecimento do qual se arrependia amargamente de ter adquirido em algum momento da sua vida. Pensando desse modo, parecia meio improvável haver alguém.

Depois de quarenta minutos de espera, já ensopado e indignado, eis que aparece no beco a silhueta do italiano, já não era sem tempo. Barba branca, rala, sempre usando o seu quepe da marinha e um sobretudo escuro pra proteger da chuva, lá vinha o maldito mensageiro.

- e ai? O que foi dessa vez? Algum terreiro de macumba? Algum encosto?

- não. Eles estão na cidade. Quase pegaram o Henrique.

- e eu com isso? Ele andava mexendo com coisas que não deveria.

- esse é que é o problema. A “coisa” com que ele estava mexendo escapou, ele já não é mais o mesmo, e agora ta na cidade baixa, já pegou duas crianças.

- ta certo, vou resolver, mas vou precisar do carro emprestado, sabe como é, esses bichos são rápidos.

- pode levar, e se quiser, tenho aqui um 38 que pode vir a calhar.

- não, não adianta contra ele. Bom mesmo seria que você não me trouxesse mais noticias dessas.

Gabriel esboça um sorriso. Perante a situação não há mais nada a fazer. Pega a chave do velho corcel preto com o italiano e parte pra cidade baixa. Usando o amuleto certo, não seria difícil encontrar a coisa, mais como dar um fim no bicho? Esses bastardos são rápidos, resistentes e bem espertos, e ele já não estava mais no auge da juventude pra enfrentar essas coisas “na unha” como fazia antigamente. Resolveu que o melhor seria uma isca, e um rito de raio da aurora, isso ia deixá-lo bastante cansado depois, e um pouco mais pobre também, pois precisava de um pouco de ouro pra dar certo.

Tinha preservado a aliança de casamento ate hoje, nunca tinha vendido ou empenhado, nem nos maiores apertos, mas ele tinha certeza de que Cecília entediaria, ainda mais em se tratando de vingar a morte de duas crianças inocentes que já tinha servido de alimento pra besta. E, além disso, ele podia esmiuçar algum dos velhos manuais pra tentar recuperar a aliança depois. Sim, ia ter que ser assim mesmo, pois não tinha outro lugar pra conseguir um punhado de ouro àquela hora da madrugada.

Chegando na cidade baixa, não demorou muito o amuleto de sangue antigo começou a dar a direção do condenado. Gabriel lembrava da ultima vez que havia encontrado um desses, já fazia alguns anos e, mesmo sendo dos grandes, na época deu pra encarar. Esse parecia ser dos mais fracos, ele esperava que não desse trabalho alem da necessidade. A idade é uma coisa cruel e, apesar dele não ser tão velho assim, os anos já cobravam seu preço na hora de peitar certas coisas.

Seguindo a indicação do amuleto chegou na orla, e foi adentrando pelas ruas escuras do centro da cidade. O bicho era esperto, sabia que ali não seria notado e que de manha podia se esconder em qualquer esgoto. À noite o centro era perigoso, só a corja circulava e nunca se sabia o que esperar. Chegando a esquina da rua do teatro com o velho armazém, o amuleto deu sinal pra parar, o bicho estava por perto.

Gabriel desceu do carro, a chuva já se amenizava um pouco, a se podia ver melhor ao redor. Pegou a garrafinha com cachaça que carregava no bolso pra esquentar e derramou o conteúdo sobre a roupa, espalhou bem para que o cheiro ficasse evidente. Começou a andar devagar, se apoiando nas paredes e bambeando de um lado pro outro, para um observador desavisado se dava por outro malandro embriagado trocando as pernas na sarjeta.

Depois de não andar nem duas quadras sentiu um arrepio na espinha, não olhou pra trás mas sabia que o bicho vinha a suas costas, continuou com a atuação e logo a frente tropeçou na calçada caindo no chão. Fechou os olhos. Sentiu a criatura se aproximar, não ouvia seus passos mais a sua presença era indisfarçável. Sentiu que alguém lhe mexia na roupa, no colarinho da camisa. Uma mão mais fria que a garoa que caia tocou seu pescoço, sentiu um hálito pútrido e gelado se aproximar do seu rosto. Era o momento, num movimento rápido virou-se, golpeando a criatura com seu cotovelo. O golpe foi forte o suficiente para que a coisa, empurrada pra trás, acertasse o poste com violência. Num estalo Gabriel levantou-se, e ergueu com a mão direita a aliança que carregava ao bolso. Podia ver claramente agora as feições do seu perseguidor, parecia jovem, uns 20 anos no maximo, tinha a face pálida, e suas vestes completamente negras lhe faziam parecer esquelético. Com certeza Henrique estava nessa condição há pouco tempo. Parecia surpreso, ainda não tinha se recuperado do golpe, e talvez um pouco assustado.

- q... quem é você? Perguntou a criatura ofegante. Em segundo depois seu olhar já demonstrava ter encontrado a resposta.

Gabriel, segurando a aliança em sua direção, murmurou cabisbaixo as palavras antigas e ergueu de súbito o pequeno circulo dourado acima de sua cabeça. Um imenso clarão de luz emanou do anel, rompendo as sombras da ruela escura e iluminando ate alguns metros com a força e a cor do sol de meio dia. A criatura gritou em agonia, se debateu e contorceu, sua face alva deu lugar um brilho do fogo, que agora consumia sua carne e, em um segundo, virou pó, deixando de prova da sua existência apenas as roupas que vestia outrora, também um pouco chamuscadas. Saiu da existência.

Gabriel, ainda cabisbaixo, virou-se, e se pos a caminhar de voltar ao seu corcel preto 82 emprestado. Estava voltando pra casa cansado, com a mão direita queimada, e carregando um anel de chumbo no lugar de que antes tinha sido sua aliança de casamento. Nada a fazer, a vida é assim mesmo. Mas, antes de ir, sem virar-se, respondeu a pergunta do que um dia havia sido um amigo.

- sou a ultima pessoa que você vai ver.

Kriador
Enviado por Kriador em 17/01/2007
Código do texto: T350517