A Herança

    Tempos góticos. Uma nuvem acinzentada cobria toda a terra média naqueles tempos de muitos deuses e de pouca devoção, a não ser ao mal, aquele que sempre esteve entre nós. Em algumas terras se falava de messias, profetas, de coisas de outros mundos futuros e distantes. No entanto, o que valia era a lei da espada. Os homens viviam pouco morrendo de doenças, quando muito, sendo comum serem tragados pela foice nos campos de batalha e dor.
    Uma luta, em especial, se desenvolvia naquele reino nórdico. As geleiras avançavam acentuado o grau de fome entre o povo. Afastando-se em direção ao mar, aglomeravam-se grandes hordas populacionais, pois somente ali o alimento era possível. Sabiam de lutas nos países do sul do que hoje é a Europa e vinham histórias fantásticas de povos do Oriente, de um reino poderoso no centro do que hoje é o Atlântico, além de lendas sobre gigantes de Ébano em um país de pirâmides. Tudo era, em verdade, fruto de histórias desmembradas em outras histórias e de nada tinham prova.
    A luta daquele povo era pela sobrevivência, além da investida de outras tribos bárbaras. O rei, com cerca de 25 anos, já era um homem velho para a época marcado pelas cicatrizes de muitas batalhas. Admirava daquela tenda fortalecida por troncos em forma de cunhas, rodeado por fossos e armadilhas, o que sobrava do seu harém. Os corpos deitados uns sobre os outros eram a melhor visão que poderia ter naquela época de derrotas.
    Falavam agora de uma outra ameaça. Uma criatura incrível, alada, que nas noites descia de modo rasante levando vítimas para os céus de onde nunca mais se ouvia falar. A força de um rei vinha da sua capacidade de impor-se ao seu povo. O medo, no entanto, era tão poderoso que questionavam se não era melhor trocar de rei. Precisavam da segurança, uma segurança pálida, relativa.
    Arqueiros permaneciam atentos em pontos estratégicos. O rei sabia que aquela ameaça deveria ser derrotada a bem da sua coroa. Quase fechando os olhos de cansaço, após beber, comer e se divertir com as mulheres, ouviu o alarme dos vigias. A criatura voltara. Seminu, saiu da tenda com a lança em punho e a espada na outra. Era um dos mais certeiros arremessadores do seu país.
    Muita confusão e correria. Tochas eram acesas e lançadas ao alto na vã tentativa de se obter maior luminosidade. O rei correu para um ponto mais elevado, do alto, admirou não apenas uma, mas pelo menos uma dúzia de criaturas aladas. Desciam de forma aterradora. As pessoas lutavam, quando eram colhidas, e algumas conseguiam se libertar em pleno vôo, mas a queda abrupta, se não os matasse, deixava-os gravemente feridos.
    Uma das criaturas mergulhou diretamente contra o rei. Frio e determinado, esperou até o último momento desferindo-lhe um certeiro golpe no coração. A criatura tombou gemendo e uivando. Seus olhos eram uma só bola negra. A pele enrugada, asquerosa e acinzentada. Dentes poderosos com imensas presas e um grito agudo, intenso, de gelar a alma. A criatura debatia-se quando o rei saltou sobre a mesma pronto a arrancar-lhe a cabeça com um golpe de espada.
    Nesse momento, dentro dos olhos da criatura viu o próprio futuro. Assustado, deu dois passos para trás. Sem que pensassem, homens da sua guarda saltaram sobre a criatura trucidando-a.

    Nas noites seguintes o rei não poderia mais dormir. Fora assombrado pelos eventos do seu futuro. Não podia acreditar no que o destino lhe reservava. Decidido, deixou o acampamento, depôs as armas, transferiu a coroa ao mais bravo dos homens e subiu uma extensa colina. Caminhou por vários dias até chegar a uma gruta isolada no alto de uma montanha conhecida e distante. Ao entrar, sentiu o odor das criaturas untado às emanações da podridão e da morte. Várias criaturas, dentro das sombras, o observam e permitiam que avançasse sem o incomodar. Algumas, ainda devorando restos humanos, apenas estendiam-lhe seus tristes olhos e voltavam a se alimentar.

    Em um grande salão havia certa luminosidade mantida de modo precário por poucas tochas. No seu centro, uma daquelas criaturas, sentava-se em um trono de ossos. Extremamente forte, carregando o peso de séculos, levantou a cabeça para o rei fazendo sinal para que se aproximasse. Diante daquele ser avantajado, tendo uma pele mais reluzente que as dos demais, ajoelhou-se ao que a criatura falou:
    - Conseguiu ver o seu destino?
    - Sim.
    - E creio que gostou.
    - De fato. Não me agrada o sofrimento pelo qual irei passar, mas a glória será muita.
    De um só movimento, a criatura o ergueu pelo pescoço bradando:
    - Faça logo.
    De modo inacreditável, o rei gerou um filho no ventre daquela monstruosidade. O ato foi ovacionado pela platéia doentia de terríveis seres. Assim que terminou, ofegante, o rei sentiu de um golpe só sua cabeça sendo arrancada por uma garra fina que a criatura possuía na extremidade das suas asas. A multidão de monstros gritou. A rainha, assim que a cabeça do rei tombou, voltou ao trono e começou a acariciar o próprio ventre dizendo:
    - Um dia, rei, seu filho governará o mundo e os homens, temerosos, o chamarão por muitos nomes, inclusive pelo seu, Lúcifer!
    Nisso, as criaturas soltaram um brado. A humanidade ainda viveria dias piores, muito piores...