Soldadinho de chumbo

Não tenho a menor idéia de como aconteceu, mas eles haviam me encontrado. Ainda com a xícara de café na mão, os vi chegar pela janela. Pensei em esboçar alguma reação mas, com certeza, a casa já devia estar cercada para que Juan avançasse com tanta tranqüilidade pela minha varanda, totalmente a minha vista.

Calmamente, continuei a tomar meu café enquanto o homem do qual eu havia fugido nos ultimo seis anos abria a porta da frente. Ele estava vestido, como sempre, no estilo "homem de preto", nunca soube se era uniforme da agencia ou uma exposição excessiva a seriados americanos, afinal, aqui faz um calor de matar. Ele vinha sozinho, tinha certeza absoluta que, com os agentes marcando o perímetro, qualquer tentava de fuga era impossível. Veio ate a mesa, puxou uma cadeira, pegou uma torrada, passou um pouco de manteiga e deu uma mordida.

- uhm... Gostoso - disse enquanto mastigava a torrada, tirando os óculos escuros - você esta vivendo bem Gabriel, pena que isso tenha que acabar.

- não querendo ser grosso Juan, mas se vai me matar mesmo eu dispenso seu senso de humor de quinta categoria.

- não precisa terminar assim Gabriel, mesmo depois de tudo que aconteceu eu ainda sou seu amigo. Estou lhe dando a chance de se unir a nos.

- infelizmente dominação mundial não é uma das minhas atividades favoritas - dei o que podia ser meu ultimo sorriso sarcástico.

- muito bem - Juan suspirou, talvez a historia da amizade tivesse algum fundo de verdade, puxou a automática e encostou o silenciador na minha cabeça - adeus amigo burro.

No momento em que ia puxar o gatilho fez-se ouvir um grito de horror que vinha de forra da casa, e que com certeza tinha sido ouvido bem mais alto pelo comunicador de Juan. Sua expressão mudou, o olhar orgulhoso de vitória foi substituído por um temor contido a duras penas pelo treinamento.

- mas o que... Azul um, responda! O que esta acontecendo ai?

Nunca entendi esses codinomes, parecia coisa de criança brincando de bandido e ladrão, o sorriso triunfante mudou de rosto, agora estava no meu. E por mais que Juan insistisse a resposta não vinha, alem disso, outros gritos se seguiram, alguns tiros, e por fim o assustador silencio.

- vermelho um? Equipe? Alguém responda!

Mas ao invés da voz familiar que ele desejava ouvir, o comunicador transmitiu um grunhido inumano, grotesco, que teria enlouquecido qualquer homem comum. Felizmente ou infelizmente, nem um de nos dois poderia ser chamado de comum sob nenhum aspecto.

- eles nunca te disseram no que eu trabalhava não é? E como um bom soldado você não perguntou, não perguntou por que eu fugi, nem mesmo como eu fugi, você só seguiu as ordens como lhe foi ensinado.

A expressão de Juan mostrava o mais profundo medo, desfalecendo sobre a cadeira abaixou a mão que tinha ao ouvido, deixando cair no chão o comunicador. Olhou-me nos olhos enquanto eu bebia mais um gole do café, seu olhar procurava em mim uma razão, uma explicação ou uma saída. Infelizmente eu não poderia dar nenhuma delas nem a ele, nem a mim mesmo, e percebendo isso seu olhar se voltou para mão direita, para a arma que ainda segurava. Ela não podia dar a ele uma razão nem uma explicação, mas uma saída... Talvez uma saída.

Olhei para frente e vi que a coisa estava parada a soleira da porta, e assim como Juan pôde ouvir o arranhar das garras no metal da maçaneta, o rangido das velhas dobradiças e som dos passos, ou seja lá de como a coisa se locomovia pois, não sei se tinha pernas ou pés, ou mesmo qualquer outra parte em comum com qualquer criatura desse mundo a não ser os dentes afiados como navalhas e as tantas garras do tamanho de facas.

- eu sinto muito Juan, eu não queria que terminasse assim. Sempre gostei de você, infelizmente pra nos dois, você fez seu trabalho bem demais.

Eu me concentrava no café, sentia o gosto, o cheiro, a temperatura. Tentava manter olhar baixo para não ter que ver o que se aproximava lentamente da mesa. De repente, ouvi um disparo, o som foi abafado pelo silenciador. O sangue de Juan manchou toda a parede, um pouco caiu na minha roupa e na mesa.

A coisa se aproximou mais, chegou tão perto que eu podia sentir o seu cheiro. Usei toda a força de vontade pra não me virar, não me mexer, sabia que se perdesse o controle agora entraria para a lista de pressas da caçada. A criatura ficou imóvel por alguns segundos a minha frente, procurava uma fresta, uma falha, qualquer coisa lhe permitisse agir, mas não encontrou. Voltou-se para o meu lado e começou a devorar o corpo de Juan. Emitia sons bestiais e maléficos enquanto destroçava o corpo do pobre agente, e por mais que isso me causasse extremo horror, me sentia estranhamente aliviado por não ser mais alvo da atenção daquela abominação.

Ao fim do que me pareceu um século, a coisa terminou seu banquete macabro, e lentamente se arrastou ate o canto escuro sob a escada, onde sumiu deixando atrás de si apenas um rastro de sangue e carne dilacerada.

Depois de alguns minutos, terminei o café, tirei meu pijama e peguei vassoura e esfregão. Crianças são sempre crianças, sempre fazendo bagunça, e agora era hora de limpar a bagunça da minha criança.

Kriador
Enviado por Kriador em 15/01/2007
Código do texto: T347958