Clássicos Urbanos: Os palhaços da van

Os dois irmãozinhos permanecem sentados em cima de uma pedra grande e desconfortável, tentando se esconder da tempestade, que assola a cidade deserta. Constantemente brigavam, mas era coisa de criança, pois no dia a dia faziam tudo juntos: almoçavam, brincavam, iam à escola no mesmo horário, e quando um dormia o outro logo em seguida também tinha sono. Tirando pequenos atritos, eram muito unidos. E isso agora é demonstrado nesta incansável espera. Debaixo de uma árvore numa rua deserta, esperam lá, tão solitários, pelos pais, ou pelo menos por alguém que os leve até os mesmos. O menino, mais velho, tem seis anos, enquanto a irmãzinha acabou de completar quatro. Ele se chama Murilo; ela, Amanda.

Ambos não compreendem a situação, o porquê de aquilo estar acontecendo justamente com eles. Entretanto, sabem o que sentem: é uma mistura de fome, frio, saudade, sede, medo... É pavor! Com os olhinhos tristes e chorosos, Murilo olha para o céu e grita pelos pais. A inocência é tamanha, que o pequeno não grita pelos nomes deles – Andréia e Victor. Ele berra “Mamãezinha”, “Papaizinho”, “Socorro”, “Tamo aqui”. Entre uma frase e outra, o tom se altera: ora estridente, ora neutro, ora sussurrado, ora silencioso... Às vezes para. Neste momento, reza para o Papai do Céu, afinal de contas a mamãe havia ensinado que Ele é bonzinho, protege a todos nós e principalmente gosta das crianças, para quem sempre manda coisas boas e a cujos desejos sempre atende.

Em determinado momento, Murilo se zanga com sua irmãzinha.

- Tô cansado! Por que cê também não chama pela mamãe e pelo papai?

- Porque eu tô com fome e quero água.

- Grita comigo! Eles vão ouvir!

- Tá duendo, também, Murilo.

A pequena Amandinha aponta seu dedo em direção à sua garganta. A coitada já havia gritado muito, Murilo! Ela gritou tanto, que ficou rouca e sem voz, com as cordas vocais doendo. Mas Murilo é persistente e não para de gritar! Ele tem esperança de que seus pais ouçam seu desesperado chamado.

Graças aos berros de Murilo e ao barulho da tempestade, eles nem percebem que algo vem por trás deles. Não pressentem aquilo, que pode representar um grande perigo. Porém Amandinha, mais atenta, ouve barulho de galhos se remoendo, olha para trás e dá um berro.

Raios.

É, entretanto, somente um cachorrinho, que, igualmente a eles, tenta de algum modo se proteger da chuva e também procura companhia. O grito da menina foi apenas reflexo da surpresa, afinal ela adora cachorrinhos, e este é tão fofo!... O menino é que realmente se assustou! O susto foi tão grande, que ele parou no meio da rua, pegando toda a chuva que pôde.

Só que existem males que vêm para o bem. É exatamente nesta hora que o pequeno Murilo avista luzes fracas, em direção a eles. Agora, elas estão mais fortes e piscando. “São faróis!” “Mamãe, papai... Ei, estamos aqui!” “Vem, Amandinha, vem! Papai e mamãe achou a gente!” O menino, desesperado, acena. Pula, como se estivesse ganhando todo o brinquedo do mundo! Está salvo! A irmã também se junta a ele e vai para o meio da rua. Coloca a mão sobre as vistas, para fazer sombra, e exclama:

- Ué! Cadê eles então!? Não tô vendo nada, Murilo.

Olham para todos os lados. Para onde eles foram? Será que não me ouviram gritar, pergunta-se o irmão.

De repente, luzes fortes sobre eles.

Raios cortam o céu.

O veículo para exatamente rente aos meninos. Pela distância de uma pegada, teria passado sobre os dois irmãos, que por impulso se dão as mãos e correm de volta para a pedra. Sentam-se nela. O cachorrinho já havia desaparecido. A menina começa a chorar, agarrada na mão do irmão. Murilo olha surpreso, abismado, sem entender como aquilo aconteceu.

As luzes dos faróis diminuem, mas não se extinguem por completo. São o único halo que ilumina a redondeza. O veículo está parado, e Murilo o admira: é uma van enorme, branca, limpa, com rodas grandes e vidros escuros.

Nada se move. Os irmãos estão ansiosos, mas incapazes de chegarem perto. A van continua parada, como à espera de qualquer reação dos dois irmãos. Até que a porta automática violentamente se abre, fazendo um barulho estridente, de unhas afiadíssimas sobre a superfície lisa de um quadro negro. Amanda entra em desespero, mas não pronuncia uma palavra sequer. Murilo parece estar em choque, apreensivo, sem sentir absolutamente nada. E nada é o que acontece! Tão violentamente quanto, as portas se fecham. Lá de dentro, ouve-se um choro forte, há uma criança também nesta van!

Os faróis se apagam, e os dois irmãos escutam ruídos, como se a van finalmente partisse. Eles se levantam. Não conseguem ver para onde ela foi. Como ela pode ser assim tão rápida, é o que passa pelos pensamentos dos dois. Decidem ir embora também, só que em direção oposta a da van.

Ledo engano, coitados! Pobre fantasia!...

Eis que a van ressurge, no mesmo lugar de antes, imóvel, com os faróis acesos, porta fechada, na frente dos pequenos, que agora estão de pé, terrivelmente apavorados! Os dois choram, pedem pelos pais e por Deus, mas Eles parecem não escutar.

A porta automática da van abre novamente de modo violento. Mas há algo diferente. Como da primeira vez, o interior do automóvel é completamente escuro, e os garotos não conseguem enxergar nada. Entretanto, lá dentro há um cheiro de bolo de aniversário, brigadeiro, balas, sorvete! O medo dá lugar à curiosidade, que foi desperta pela enorme fome deles.

Mas tudo continua no mais completo breu. Quando de repente do interior da van sai quicando uma bola, destas de tênis, suja e envelhecida, que cai pontualmente entre os dois irmãos. Uma criança começa a chorar. Ela está dentro da van, e são dela as palavras tristes.

- Mamãe, eles não querem brincar comigo!

- Calma, meu filho! Tudo isso é porque eles não conhecem você! E estão mais que certos, não é mesmo?

Murilo e Amanda consentem com a cabeça e não choram mais. Estão apenas paralisados.

Continua a falar a mulher de voz doce, num tom que mais parece falsete.

- Mas tudo bem. Veja como eles são lindinhos, meu filho! Como se chamam?

- O meu nome é Murilo, e o dela é Amanda.

- São amiguinhos?

- Ela é minha irmã.

- Ahhhh!!!! Eu não tenho irmã....!!!!!! - grita a voz infantil no interior do automóvel.

- Hoje o meu filho faz aniversário. Vocês não querem dar um presente a ele?

- Qual? - pergunta Murilo.

- Brincar com ele, cantar os parabéns e participar da festinha que eu fiz. Estão vendo esse carro? Depois eu levo vocês para os seus pais...

- Você sabe onde eles tá? - questiona Amanda.

- Claro que sei, responde a mulher. - Foram eles quem me pediram para vir buscar vocês aqui. Eles estão com saudade... E vocês?

Amanda começa a chorar.

- Ah, não! Não, não, não! Agora não é hora para isso! É hora de alegria! De festa! Gostam desse cheiro? (Risinho maroto) Aqui tem bolo de chocolate, brigadeiro, refrigerante, sorvete, tem tudo! E olha: vocês poderão comer quanto quiserem!

O menino vai subindo na van.

- Não, não! - Responde a mulher num tom mais repreensivo.

E recuperando o tom maternal: - Para isso, vocês terão de brincar com o meu filho! Se vocês quiserem, basta pegar essa bolinha, que tá aí no chão, no pezinho de vocês, e subirem aqui, brincarem e cantarem parabéns! Ao pegarem a bolinha, você estarão dizendo sim a todos os seus sonhos! Querem?

O menino aceita o convite, pega a bolinha e sobre no veículo. Sua irmã, não muito convencida, fica do lado de fora.

- Você não vem, Amandinha? -pergunta a mulher.

Com o aval do irmão, a garota estica os bracinhos, se apoia no chão da van e adentra o veículo.

Tudo continua escuro. Mas o cheiro está tão convidativo... e tão delicioso!!!

- Então, tá! Vamos cantar os parabéns, então! - diz a mulher.

Todos juntos, num tom constrangedor e tímido. Exceto a mulher, vibrante:

“Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida!”

A mulher ri.

Em seguida, puxa, solitária:

“É big, é big, é big, é big, é big! Ra-tim-bum! Sa...”

- Psiu!

Ela é violentamente repreendida por um homem, de voz rouca e grave, que parece não estar muito afim de brincadeiras.

A mulher dá uma risada diabólica.

As duas crianças agora são puxadas e cada uma senta num colo diferente.

Choram. Têm muito medo.

- Calados! - repreende a mulher com uma voz grave, agora. Em seguida, ri em falsete, de modo maroto:

- Hahahahahahaha... Agora quero ouvir todos juntos, cantando “Atirei o pau no gato”. Com força, vamos lá!

Berrando, quatro vozes começam a cantar. As crianças choram muito mais alto, indefesas.

“Atirei o pau no ga, tô, tô”

- Cadê o gato? - pergunta a mãe.

“ Mas o ga, tô, tô não morreu, reu, reu”

- Mas vai morrer! - intercala a mulher.

Uma risada diabólica ecoa. É a do motorista.

As crianças se esperneiam. Risadas, gritos e coro sinistros se misturam.

“Dona Chi, cá, cá”

- Xiiiiiiiiiiiiiiii

“Admirou, se, se”

“Do berro...”

As crianças sentem mãos por todo o seu corpo. Berram pedindo socorro, enquanto os raios cortam os céus.

E uma voz em tom cada vez mais grave e sombrio:

“Do berrô...”

“Do berrô...”

“Do berrô...”

“Que o gato deu”

“Miauuuuuuuuuuuuu”

Todos os fonemas finais são pronunciados em falsetes para aumentar a histeria dos irmãos. As luzes se acendem dentro da van. Murilo e Amanda veem quatro pessoas adultas dando caretas para eles. A porta se fecha violentamente, e o motor dá vida ao veículo.

São palhaços. Palhaços demoníacos.

- Eles agora vão brincar comigo, mamãe?

- Para sempre, meu filho! Para sempre! Hahahahahahahahaha

[Aos risos] - Onde, mamãe, onde?

A face da mulher muda bruscamente, encara as duas crianças e diz, em tom grave:

- No Inferno.

Todos os cinco componentes da van riem, em falsete:

- Hahahahahahahahahaha

A van da ré, e as crianças são soltas dentro dela. As crianças tentam tirar as máscaras dos palhaços, mas percebem que não há máscaras. É tudo real. Aqueles são os seus rostos: eles são palhaços do Mal!

Murilo e Amanda rodopiam no interior da van, correm de um lado para o outro, batem na porta. Não há nenhuma criança ali, já sabem disso!

A van volta em sentido contrário. No mais, uma surpresa! Os pais dos garotos, Andréia e Victor, têm certeza de que os filhos estão ali e que estão sendo raptados. Gritam, se desesperam na frente da van. Mais consciente que a mulher, Victor puxa Andréia, que seria atropelada se não saísse do caminho.

Por fim, a pior cena à qual se poderia assistir: jogados no chão, Victor e Andréia veem os filhos, como loucos, como animais presos, dentro da van. As crianças batiam abruptamente no vidro, que ganhava feições luminosas, posto que as luzes internas do veículo estavam acesas.

Rapidamente se levantam do chão e vão atrás da van, que dobra o quarteirão. Chegando lá, não existe sinal algum do automóvel: nem marcas no asfalto, nem cheiro de gasolina, nenhum vestígio daquele horror. Abraçados, Victor e Andréia, um só tem ao outro para buscar consolo e dignidade, se é que tais atribuições existem em momentos como este. Andréia grita pelo nome dos filhos...

E nunca mais se teve qualquer notícia dos pequenos Murilo e Amanda, que partiram a caminho das trevas, cujo nome do seu Senhor nem mesmo os seus servos ousam dizer...

FIM!

*Créditos: Este conto é uma adaptação de uma lenda urbana que aterrorizava a sociedade brasileira entre as décadas 1980 e 1990: os palhaços da van, que roubavam crianças, que nunca mais eram vistas. Durante anos, também foi usada de pretexto pelos pais, para que seus filhos nunca saíssem de perto deles em locais públicos.

Dan Niel
Enviado por Dan Niel em 04/02/2012
Código do texto: T3479244
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