1730 – Os Capelobos

“Acreditam que nas matas do Maranhão, principalmente nas do Pindará, existe um bicho feroz chamado Cupelobo... Um índio timbira andando nas matas do Pindará chegara a ver um desses animais que dão gritos medonhos e deixam um rastro redondo, como fundo de garrafa. O misterioso animal tem corpo de homem coberto de longos pelos...]. Quando encontra um ser humano, abraça-o, trepana o crânio na região mais alta, introduz a ponta do focinho no orifício e sorve toda a massa cefálica: 'Supa o miolo', disse o índio.”

- S. Fróis Abreu”, (Na Terra das Palmeiras, págs. 188-189, Rio de Janeiro, 1931)

Anno Dominnis, 1730, Colonia del Sacramento.

Saturno está exausto. Há um século, ao menos, procura novamente Ivan, seu irmão vampiro, através do território do país em formação, e, nos últimos cinco anos, caça-o pelas planícies do Rio da Plata, nas fronteiras ainda desconhecidas do Brasil. Lembra-se que o alcançou na região do Rio das Velhas, em meio a uma guerra por ouro, onde, por pouco, não morreram nas mãos de um imortal chamado Moloch, e também de um caçador de vampiros, o francês, Jeromé. Nunca, em sua imortalidade, Saturno viu humano tão poderoso, capaz de acabar com um imortal com as mãos limpas, mas isso é passado agora. O caçador está morto e provavelmente até os seus ossos já viraram pó.

Agora, na Foz do Rio da Plata, tem o prussiano bem no seu campo de visão. Avança rapidamente os últimos quilômetros que os separam, e silenciosamente como um felino, usa sua lâmina para perfurá-lo nas costas, atravessando seu coração negro. Satisfaz-se ao ver a ponta do punhal saindo pela frente do peito de seu odiado inimigo, e imediatamente percebe que algo está errado.

Foi fácil, muito fácil.

Este não é seu odiado irmão, e a ilusão se desfaz com o sangue que escorre. Realmente é um impostor, e Saturno pensa como seu irmão conseguiu colocar seu cheiro e seu rosto em um ser humano.

— Não importa. A minha vingança recomeça.

Não desperdiça o sangue que escorre, sorve para se fortalecer com a vida que escapa do humano. Após tanto tempo, ainda se sente envergonhado de acabar com criaturas que não estão à beira da morte, mesmo já tendo passado tanto tempo que estivera com a Tribo dos Protetores da Vida, aquela tribo ridícula da Floresta Alta que não bebe de sangue humano, o que o leva a pensar em Ajíra e ter um sentimento estranho.

Saudade.

Prepara-se para voltar, quando escuta um uivo muito próximo, fazendo com que os cabelos da nuca se arrepiem, fica na defensiva imediatamente.

O índio não conhece o animal que soltou semelhante ruído, mas seu instinto vampírico acusa o perigo. Uma lança de madeira voa de dentro das trevas em direção ao seu coração, mas Saturno com seu reflexo apurado e o aço de seu punhal cortam a arma em duas.

De dentro da vegetação fechada, uma dezena de olhos dourados o observa, e são altos demais para serem de quaisquer animais que andem sobre quatro patas.

O índio dá um giro de trezentos e sessenta graus sobre o próprio eixo, vendo-se completamente cercado. Percebe que saem da margem do Rio da Plata mais uma dezena de sombras, todas com o mesmo rosto sobre-humano. Saturno dá mais um giro, tentando achar um caminho para fugir, não entende o terror que invadiu sua alma sombria de repente. Todos os olhos dourados e um par de olhos vermelhos acima de todos os outros seguem seus movimentos com rosnados selvagens. Quando a primeira criatura aparece na grama baixa, sob a forte luz da lua cheia, o imortal se espanta.

— Capelobos!

A fera tem no mínimo dois metros de altura e carrega uma lança de aroeira, madeira extremamente dura, com a ponta afiadíssima. Seu corpo é coberto por grossos pelos castanhos dos pés à cabeça, tem olhos ferozes e inteligentes, não parece nem um pouco satisfeito com a presença do imortal em seu território.

Em volta do pescoço peludo, há um colar de dentes com dezenas de voltas, e o mais assustador: o lobo usa como cinturão cinco crânios entremeados por um cipó que entra e sai das cavidades oculares vazias. Saturno vê que são crânios de vampiros, pelos longos caninos típicos de sua raça.

— Está longe de tua casa, caminhante noturno... — rosna na língua tupi o capelobo, mostrando seus dentes e levantando sua lança.

O índio o ataca com seu punhal antes que a fera a atire. Vão de encontro ao chão, o imortal o apunhala no peito vinte e três vezes em alguns segundos. Quando a fera morre, reverte a sua forma humana, e para surpresa de Saturno, é um índio também.

Imediatamente, os companheiros do animal invadem a clareira, e, apesar de lutar de maneira corajosa, ferindo vários capelobos, o vampiro acaba espancado, cortado por garras, mordido e perfurado por dezenas de lanças, logo perdendo a consciência. Desperta horas depois, sentindo uma dor descomunal. Rapidamente percebe, pela posição das estrelas: fora deslocado centenas de quilômetros ao oeste.

Suas mãos e pés estão pregados a uma centenária araucária de vários de metros de diâmetro, e à sua frente, uma fogueira acesa. Toda uma tribo composta de dezenas de capelobos o observa ferozmente.

Um deles, muito velho, com o pelo já rareando em algumas partes, deixando à mostra a carne cheia de pelancas do corpo miúdo, aproxima-se, faz um ritual de pajelança e só então Saturno olha para baixo, aos seus pés, há um índio morto com muitas facadas no peito, e imediatamente o vampiro reconhece cada um daqueles golpes que desferiu contra o defunto. Falando em uma linguagem tupi, o pajé se dirige ao filho da escuridão:

— Seu dente mágico matou Igara! Igara, valente guerreiro. Você, desleal. Você chance de se salvar, se lutar com Aboxo. Vence sem dente mágico, e está livre!

O vampiro percebe que aquela tribo ainda não teve contato com os portugueses, espanhóis ou franceses, pois não conhecem o ferro, acreditando que é algo mágico.

Quatro imensos capelobos arrancam as estacas que prendem o vampiro à árvore, causando-lhe imensa dor, mas Saturno não solta um único gemido. Não lhes dá o gosto de saberem como sofre. Jogam-lhe uma lança de aroeira com ponta bem afiada e o imortal a usa como muleta, tentando se levantar, cai, pois as pernas estão bambas. Suas feridas começam a se fechar bem devagar, enquanto as feras abrem o espaço ao seu adversário.

Finalmente trazem o tal Aboxo. É um gigante peludo de aparência assustadora, com três metros de altura que faz seu um metro e sessenta e oito parecer ainda menor. O capelobo tem o pelo rajado de negro com cinza e uma cicatriz lhe corta a cabeça, de alto a baixo, deixando o couro do crânio à mostra, cego do olho direito, talvez produzido por um golpe de machado de pedra, que lhe partiu o crânio tempos atrás, e ele incrivelmente sobreviveu. Mas há algo errado.

Aboxo vem escoltado por vários de sua raça, preso com grossos feixes de cipó, seus companheiros parecem ter medo dele. Quando a fera o encara, Saturno compreende o porquê: ele tem um olhar louco, um olhar de maldade como nenhum outro da tribo tem. Mal vê o vampiro, e tenta se atirar sobre ele. Seus irmãos não o seguram, cortam os cipós que prendem seus braços, enquanto o imortal tenta, em vão, ficar em pé para se defender.

No momento em que recebe sua liberdade, o capelobo acerta tal patada no irmão de sua raça, um forte lobo acinzentado que cai a cinco metros de distância, levantando poeira, já desacordado, talvez até morto.

Aboxo uiva loucamente para a lua cheia e se volta, para sua presa, Saturno, que finalmente se pôs em pé. Agarra a lança ainda tremendo, como se fosse uma espécie de muleta, mas não terá chance alguma. O enorme capelobo salta os seis metros que os separam com apenas um pulo, ficando perigosamente próximo de seu inimigo, o filho da escuridão. Reunindo toda a sua força e agilidade, Saturno enfia a lança no estômago da fera. O animal olha para o ferimento e dá um passo atrás, enquanto rosnados de desgosto surgem entre a multidão dos homens-fera, mas para quem pensou que a luta estivesse ganha, os privilégios de Jaci, a Deusa da Lua, não estão nas mãos do filho das sombras.

Aboxo solta um tipo de risada rouca, parecida com um rosnado curto e arranca a lança do próprio tórax, quebrando-a em pequenos pedaços com as suas poderosas patas.

— Agora, eu! — avisa com sua voz animalesca.

Solta um urro e corta o filho da escuridão com um golpe de suas garras, fazendo com que Saturno caia de costas, com o peito aberto em três tiras de pele sanguinolentas. Ele não tem tempo para se levantar, pois o capelobo rajado o imobiliza, colocando todo seu peso sobre o filho da noite. Enfia a garra afiada cheia de terra e recurvada em sua nuca pálida e começa a rasgar o couro cabeludo do vampiro de trás à frente, causando dor intensa, mas só quando ele já cortou até a altura da testa é que o vampiro compreende a sua intenção: deixar-lhe uma cicatriz idêntica à sua. Porque, se quisesse decapitá-lo para usar em seu cinto, já o teria feito facilmente. Com um grande esforço, Saturno consegue soltar os dois braços e empurra a fera, sabendo que a sua própria existência depende disso. Levanta-se, pronto para o próximo ataque. Seu couro cabeludo cai de lado, dando-lhe uma aparência estranha com o osso do crânio estriado de sangue negro aparecendo sob a luz da lua.

O capelobo se abaixa e morde Saturno bem na altura das costelas, levantando-o apenas com a força de sua mandíbula, sacode o vampiro com muito prazer. Está apenas se mostrando para os outros de sua raça, que vibram de excitação feroz. Apesar da dor, o vampiro índio nota que, no ponto onde o crânio do lobo-homem fora cortado, o osso ainda não está calcificado. A ferida é recente, e, em seu desespero, ele enfia as duas mãos, quebrando o osso. O lupino abre a boca, soltando o vampiro, porém, cruza as pernas no pescoço peludo e afunda mais ainda as mãos na cabeça do animal. Abre um grande buraco, arrancando um bom pedaço do crânio, largo o suficiente para enfiar uma das mãos enquanto a besta rasga as costas da criatura noturna em faixas sangrentas.

Vendo o sangue esguichar, a comunidade das feras se agita nervosamente. Saturno enche a mão e esmaga o tecido cerebral com violência. O capelobo enorme se debate, mas fica paralisado por um instante. Seus olhos se viram completamente, deixando apenas o branco cheio de veias aparecendo, e Aboxo cai pesadamente de costas. Olhares animalescos olham com muita surpresa a queda do gigante invencível de sua tribo. Aproveitando enquanto estão espantados e distraídos, como um passe de mágica, o vampiro parece sumir no ar. Um truque aprendido com Ivan, mas a verdade é que ele apenas concentrou sua energia e se moveu tão rápido, que enganou os olhos dos homens-fera.

Estes logo se dão conta de seu sumiço, e todos os capelobos ficam em alerta máximo, procurando pelo índio, que está a cento e dez metros acima do nível do solo. Saturno está escondido no alto de uma árvore araucária, clamando aos deuses indígenas que os fortes ventos frios não os deixem farejá-lo. Seu espanto é grande ao ouvir a risadinha rouca atrás de si, quando o velho pajé o cutuca com o cajado. O dourado dos olhos do idoso brilhando na escuridão.

— Engana só os filhotes! Eu, fera velha. Desce! — ordena.

Saturno mostra os longos dentes caninos e faz os olhos brilharem, vermelhos, para lhe dar medo, mas está no limite de suas forças.

— Quero ver você me fazer descer, velho. Acabei com um da sua raça bem maior que você!

O ancião pisca um olho amarelado, como se ouvisse algo divertido. Segundos depois, o vampiro está aos pés da enorme árvore centenária, e o pajé de joelhos sobre seu peito dilacerado.

— Mão velha tem ainda força!

Todos os capelobos que se afastavam, farejando o terreno em busca do caminhante noturno, voltam correndo com o som do corpo em queda. As lanças de aroeira se levantam para o golpe de misericórdia, apontam ao mesmo tempo para o peito forte do vampiro.

— Não! — ordena o pajé, levantando uma pata.

Desobedecendo o pajé, atiram suas lanças. O velho move seu próprio cajado, transformando as lanças em fragmentos de madeira inofensivos. As feras surpresas, são atiradas alguns metros ao redor dos dois pelo poder liberado do mais antigo dos capelobos.

— Vocês não honra? — urra o lobo envelhecido, seus olhos brilhando com um tom vermelho de fúria.

Eles se levantam, com cara fechada e cobertos de vergonha.

— Índio-noite venceu Aboxo! Luta digna! Merece liberdade!

Alguns deles rosnam baixinho enquanto o pajé vai até o cadáver do grande capelobo e arranca seus dentes caninos, oferecendo-os ao vampiro. Um troféu de guerra. Mesmo muito contra sua vontade, o imortal as aceita, pois sabe que uma recusa dessa será uma afronta. De repente, tem uma inspiração. Com os dentes afiados do próprio Aboxo, termina de rasgar seu couro cabeludo, fura o próprio olho direito até chegar à boca, onde o líquido de seu globo ocular se mistura com o sangue e derruba lágrimas rubras. Após um momento inicial de espanto, até os capelobos mais raivosos urram de satisfação. O chefe cacique da tribo, uma orgulhosa fera coberta de pintas como uma onça, dirige-se ao vampiro:

— Volte sua casa. Você está livre, caminhante noturno. Dessa vez...

Eles o parabenizam uma última vez e viram–lhe as costas, voltando para a mata fria e fechada. Quando o último deles está prestes a sumir vegetação adentro, o pajé lhe avisa de longe:

— Não volte nossa floresta! Próxima, morre!

Algo no olhar do velho capelobo faz o vampiro índio se lembrar de seu avô. Sente saudades de casa, de sua tribo, seu povo. Mesmo tendo sido chamado de anhangá por eles. Mas não pode voltar ainda, tem que se vingar primeiro. A honra o exige.

Observa as estrelas seguindo com firmeza na direção do Leste. Voltando para o território brasileiro, precisa encontrar o seu maldito irmão, Ivan, e restaurar sua honra com o sangue dele.

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 03/02/2012
Reeditado em 29/08/2020
Código do texto: T3477531
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