A Dama D'Água

(Este conto foi publicado pela Andross Editora, estando, portanto, sob licença Copyright. Proibida a cópia de qualquer parte da obra)

Estava em um corredor escuro e apertado. A pequena menina me encarava com seus olhos grandes e fixos. Não deveria ter mais de oito anos, sua pele pálida se confundia com o vestido branco de babado. Estava encharcada da cabeça aos pés. Em sua cabeça, um corte profundo do qual já não mais saía sangue, pois havia sido todo perdido na água.

E fedia.

Como fedia.

Cheiro de carne morta. Podre. Molhada.

Sua visão atordoava o espírito e seu cheiro me embrulhava o estômago.

“Cadê meu ursinho?” Ela perguntava, na sua impaciência infantil.

“Me devolve o meu ursinho!” Ela berrava, sua voz fina porém forte fazia o chão tremer e ecoava, entrando pelos ouvidos, parecendo ressoar em cada víscera de meu corpo. Tentei fugir, mas meus pés permaneciam grudados ao chão.

“Me dá meu ursinho” Ela disse de novo, antes de se tornar gradativamente mais transparente até que sua forma se dissolvesse no ar, como fumaça. O instante de alívio foi imediato. Porém não durou muito.

“Agora!” Ela berrou, ao ressurgir na minha frente, flutuando o suficiente para ficar da minha altura. Seu grito penetrou meu cérebro, afiado como uma faca.

E então, uma explosão de luz branca. Acordei, desesperado. Tentei levantar-me, senti-me enjoado. O meu suco gástrico remexia em meu estômago, querendo sair. Virei me para o lado e deixei o ácido sair, numa torrente que queimava meu esôfago.

Era uma mistura gosmenta vermelho-esverdeada de pedaços de comida, sangue e bile. O cheiro me fez forçar o vômito de novo. Mas não havia mais nada o que pôr para fora. Entretanto eu continuava lá, tendo contrações involuntárias, tentando expelir o que quer que ainda não houvesse saído.

Talvez quisesse expelir a lembrança do meu pesadelo. Talvez quisesse expelir as memórias reais ligadas ao pesadelo. Os verdadeiros fantasmas estavam dentro de mim, e me assombravam toda noite.

O rádio-relógio ainda tocava seu barulho irritante. Olhei para o quarto, a visão, ainda embaçada, aos poucos retomou a nitidez. Foi quando levantei.

Dor de cabeça, enjôo, sono.

Mas nada comparado às dores da alma que me seguiam pelos últimos quatorze anos e pareciam estar se tornando piores naquela semana, com esses pesadelos terríveis.

Eles começaram no domingo, quando a menina de meus sonhos disse: “Me dá meu ursinho, você tem uma semana”. Nas noites que se seguiram ela impecavelmente continuou meu veredicto: “seis dias”, “cinco”, “quatro”, “três”, “dois”, seguidos de “Você tem até amanhã”. E hoje, no dia fatídico, um “Me dá meu ursinho, agora”.

Não sei como eu conseguia me convencer de que nada daquilo era real. Eu não acredito em fantasmas, não acredito em vida após a morte, nem nada dito sobrenatural. Sou ateu e acredito na ciência, nos fatos e só. Mas o que dizer quando os fatos te levam até o lado desconhecido? Negar os fatos? Ou admitir que está errado?

Eu escolhi a primeira opção. Simplesmente porque minha vida tinha que continuar. Eu sempre tive pesadelos com aquela menina, desde...

Desde que ela morreu, há quatorze nos atrás.

Desde que eu...

Eu...

A matei.

Sempre tive o mesmo sonho com ela, muitas dessas vezes acordei passando mal e vomitando, então porque começar a me preocupar agora? Só por que agora ele vinha contando quantos dias me restavam? Definitivamente, era um bom motivo.

Caminhei até o banheiro para lavar o rosto, ainda andando meio desajeitado pelos efeitos colaterais do sonho. Liguei a torneira. A água saiu com força. Peguei-a nas mãos e levei-a ao rosto.

Esfreguei a água contra o rosto, e voltei a olhar para o espelho.

Dei um grito, um grito terrível. Um grito de quem vê um rosto conhecido. O rosto da morte.

A garota estava ali, atrás de mim, de pé ao lado do vaso sanitário, a me olhar fixamente.

Ao olhar para trás não havia mais nada. Tornei a olhar para o espelho, mas não havia nada também. Eu ainda estava sonolento, e antes de levar o susto meus olhos estavam entreabertos. Disse a mim mesmo que havia sido apenas um devaneio de quem está acordando de um pesadelo. Mas era cada vez mais difícil acreditar nessa versão. Um arrepio percorreu minha espinha dorsal.

E então, o vento, o vento que vinha de todos os lugares e ao mesmo tempo de lugar algum. Eu estava num cômodo fechado com apenas uma pequena porta que dava para um corredor que não dava sequer acesso a uma janela. Definitivamente, não havia como ventar ali.

Mas o vento estava lá, batendo contra o meu rosto, me lembrando daquele dia... 14 anos atrás...

“Me dá o meu ursinho!” Havia dito a pequena Meggie em seus oito anos enquanto eu e um bando de fedelhos mais velhos brincávamos de “bobinho”, jogando o brinquedo um para o outro.

Então quando ele estava na minha mão, ela começou a pular em cima de mim, determinada a pegar o brinquedo e muito nervosa. Ela era uma menina tímida, não falava com ninguém, tinha uma mãe severa e também não tinha muitos amiguinhos na escola. Tudo o que ela tinha era aquele ursinho. Aquela droga de ursinho.

Ventava naquele dia. Ventava quando eu sem piedade joguei o ursinho no mar, para que as ondas o engolissem e a correnteza o levasse. Ventava quando eu assisti sem esboçar uma reação a pobre menina entrar na água e quase se afogar para tentar pegar o ursinho.

Ventava quando a correnteza a levou. Quando ela bateu com a cabeça numa pedra, empurrada pela força das ondas e seu sangue tingiu as águas. E quando num surto de adrenalina eu me dei conta de toda a situação e corri para tentar salvá-la. Pulei sobre as ondas e nadei até seu corpo que boiava, pálido, inerte.

Havia sido tarde demais. O desespero tomou conta de mim. E sem saber o que fazer deixei o corpo da garota ser levado pela correnteza, sem vida. Chorei por muito tempo. A criança foi dada por desaparecida. Ninguém nunca soube a verdade. Ninguém nunca soube que eu deixei ela morrer. Que eu a levei à morte. Que eu a matei!

Agora um vento forte soprava no banheiro e a porta bateu com força, se trancando. Eu sabia que era ela, sabia que havia vindo me buscar. Não havia mais como negar.

Chorei uma última lágrima e me recostei na parede em posição fetal, enquanto a torneira e o chuveiro se ligavam à máxima potência e a água transbordava até do vaso. Logo todo o banheiro seria inundado e eu morreria da mesma maneira que a havia matado.

Morte pela água.

Quando a água chegou a uma altura que seria a da minha cintura caso estivesse de pé, senti uma força de puxar, e a água revirou à minha volta, e a minha cabeça foi puxada para o fundo e meu corpo girava tentando lutar em vão, entregue àquela força misteriosa. Minha cabeça se chocou contra o piso, abrindo um corte de onde o sangue jorrava tingindo a água. A água vermelha invadiu meus pulmões e antes que eu perdesse completamente a consciência ainda pude ouvir um último suspiro que parecia entrar no meu ouvido junto com a água. Que parecia ser pronunciado pela própria água ao meu redor.

“Eu quero o meu ursinho!”

“Me dá meu ursinho!”

Gabriel Valeriolete
Enviado por Gabriel Valeriolete em 02/02/2012
Reeditado em 25/06/2012
Código do texto: T3475560
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