PACTO COM O DEMÔNIO
 
Pobreza era a coisa que mais constrangia o Auréliano. Tinha vergonha do barraco onde morava, das roupas puídas que usava, dos sapatos gastos e calcanhados que calçava. Vivia triste e amargurado por não poder dar à sua família um mínino de conforto. Fugia das pessoas como o diabo foge da cruz. Nunca convidava ninguém para visitá-lo pois a vergonha de não ter nada para oferecer a eles, além de um cafézinho requentado, o mortificava.
Pobreza não é vergonha, diziam seus companheiros de trabalho. Vergonha é roubar e não poder carregar, erao ditado que mais ouvia.
Mas nada disso o consolava. Eram apenas dizeres, palavrório sem qualquer sentido que apenas aumentava sua imensa amargura. Ele era catador de lixo. Junto com ele trabalhavam outras centenas de pessoas na mesma situação de penúria. Mas nem todas eram tão amargas e pessimistas quanto o Aureliano. Algumas delas falavam até de esperanças no futuro.
“Futuro”, dizia ele sarcásticamente. “Que futuro você vê neste monte de lixo?
“ Meus filhos estão estudando”, diziam alguns. “Talvez eles consigam coisa melhor e me ajudem.”
“Eu confio em Deus”, diziam outros. Um dia Ele me dará melhor sorte.”
“Pois a única sorte que eu acredito é a mega-sena”, respondia Aureliano. “Filho de pobre continua pobre e Deus não existe”, concluia ele amargamente.
“Credo cruz. Não diga essas asneiras”, admoestou um companheiro, fazendo, contrito, o sinal da cruz. “ Deus escuta o que a gente diz e o diabo também”, disse o companheiro.
“ Pois se o diabo existe, ele que me ajude a sair dessa vida porca”, vociferou Aureliano. Pois que de Deus eu não espero mais”, ajuntou, com um suspiro.
 
O consolo de Aureliano era as pingas que ele tomava no bar todos os dias. Tomava todas. Havia ganho até um apelido jocoso: Bartira. Tudo que ele ganhava o bar tirava. Mas no bar era o único lugar onde ele se sentia aliviado. Ali todos eram como ele, farrapos humanos sem eira nem beira, inúteis molambos despojados de qualquer esperança. Todos se conheciam, todos estavam no mesmo barco. Ali podiam contar papo, falar de glórias passadas, se houvesse alguma, que ninguém contradizia, pois o que não era mentira era bravata, e o que não era uma coisa nem outra era só a vontade de que assim fosse.
Pobres diabos! Eram sempre os mesmos e a conversa era sempre a mesma. Raro era aparecer por ali uma pessoa nova, que estivesse freqüentando o bar pela primeira vez. Aliás eles sempre desconfiavam de pessoas estranhas. Podia ser da polícia. A polícia estava sempre a varejar o local em busca de algum meliantezinho. Por ali, ladrão de quintal, assaltante de posto de gasolina, traficantezinho barato era o que não faltava. Quando a cana chegava e não encontrava quem eles estavam procurando, levavam qualquer um.
Era praxe. “Polícia não perde nunca”, dizia Aureliano.” Se já encontrarem o carneiro tosquiado quando vierem buscar a lã, eles levarão o carneiro para assar, para não perder a viagem”, dizia ele com uma filosofia que dificilmente se acreditaria encontrar numa pessoa do seu meio.

Mas naquele dia havia um cara diferente no bar. Era um sujeito comum, embora muito bem vestido para o lugar. Estranhamente não despertou antipatia nem desconfiança nos freqüentadores. Talvez porque fosse amável e brincalhão. Pagou pinga para todo mundo. Contou bravatas e um monte de lorotas, como aquela de ser um emissário do diabo, que andava pelo mundo procurando pessoas que estavam de mal com Deus, para mostrar a elas que o outro lado era muito melhor.
“ Brincadeira sem graça”, disseram os companheiros do Aureliano, que mesmo já para lá de Bagdá, todos eles, ainda mantinham um restinho de juízo na cabeça para não ficar brincando com um negócio desses. Mas o Aureliano não tinha constrangimento em brincar com esse assunto. Ele estava mesmo de mal com Deus e reafirmou ao tal sujeito que se fosse verdade que o diabo existia mesmo, ele estaria pronto a dar sua alma para sair daquela vida miserável em que ele vivia.
“ Pois então assine aqui” disse o tal sujeito, puxando do bolso um papel.
Aureliano estava achando graça na brincadeira e quis ir adiante. “ Alguém tem uma caneta, aí?”, brincou.
“Não é com a caneta que você vai assinar” disse o sujeito. E pegando um canivete, fez um pequeno corte no polegar da mão esquerda de Aureliano. Pegando-a, imprimiu com seu sangue as impressões digitais no papel.
Agora Aureliano já não estava mais sorrindo. A brincadeira começava a ficar meio estranha.
“Hei, que negócio é esse?”, perguntou Aureliano, meio desconfiado.
“Você me chamou e eu vim”, disse o sujeito. “Agora temos um acordo. Eu vou cumprir a minha parte. Trate de cumprir a sua. Voltarei nesta data, daqui a vinte anos. Esta é sua cópia”, disse o sujeito, entregando-lhe uma folha de papel com alguns rabiscos. Depois cumprimentou os outros com um aceno de cabeça e saiu.

Aureliano estava bêbado, mas nem tanto. Olhou para a folha de papel, onde caira alguns salpicos do seu sangue. Havia palavras e números escritos ali. Mas estava meio tonto e não conseguiu ler nada. Não estava gostando daquele negócio. Recuperado do espanto, correu para a rua atrás do estranho sujeito. Mas ele havia desaparecido.
Voltou para o bar e pediu mais uma pinga. Olhou para os companheiros. Todos estavam calados, olhando para ele de um modo estranho.
“ Aqui está todo mundo louco”, disse ele para si mesmo. Enfiando o paepel amarfanhado no bolso, saiu cambaleando.
 
Aureliano jogava na mega sena toda semana. Era, segundo o que ele mesmo dizia, a única coisa poderia tirá-lo daquela vida murrinha. Talvez tivesse sorte. Deus não existia, o diabo também não. A sorte sim. Mas quando ele voltou para casa aquela noite, seus pensamentos haviam mudado radicalmente. Ele acertara as seis dezenas. Era um concurso de final zero e o prêmio estava acumulado. Ganhara uma fortuna. Depois de ir à Caixa Econômica e conversar com o gerente para que este o assessorasse nas melhores opções de investimento, ele viu que nunca mais iria ser preciso trabalhar. Viveria de renda e mesmo gastando como um pródigo, ele nunca iria conseguir gastar tudo pelo resto da sua vida.
Sim, a sorte finalmente batera à sua porta. A sorte existia. Se a sorte existia, talvez Deus existisse também. Aureliano achava fácil acreditar em Deus agora. “É mais fácil quando a gente está por cima”, pensou, com sarcasmo. Mas aí veio também o pensamento: “Se Deus existe, o Diabo também deve existir”. E foi então que lhe veio a memória o papel que assinara com seu sangue dois dias antes, no bar. Estava tão bêbado que até se esquecera disso. Lembrava-se vagamente que o tal papel continha algumas palavras e números, que ele não conseguira ler na ocasião, tão embriagado estava.
Mas podia ver agora que se tratava de uma data futura, prevista para dali há vinte anos. E havia ali também a indicação de um local. “\No dia tal, do mês tal, no ano tal, a tantas horas, encontre-me na estação de trem .... Não falte.” dizia o papel.
Passou-lhe pela cabeça novamente que podia se tratar de uma brincadeira de mau gosto, mas não pode evitar o arrepio que lhe correu pela espinha ao verificar que ali estavam grafadas uma hora, um dia, um mês e um ano, formando seis números. E os seis números eram exatamente aqueles que ele havia jogado!
 
Vinte anos constitui bastante tempo. Mas passa rápido, principalmente quando a vida é boa e a gente é feliz. Aureliano vivera todo esse tempo uma vida de rei, sem as preocupações de um. Até já esquecera do estranho acordo que fizera com aquele estranho no bar, há quase vinte anos atrás.
Todavia, a data aprazada estava chegando. Aureliano olhava para o papel, já amarelado, com os salpicos do seu sangue formando borrões esmaecidos, e não conseguia fazer um juízo exato da situação. Será que aquele cara era mesmo um agente do maligno? Ele viria mesmo buscá-lo na data avençada? Se ele não comparecesse, o que aconteceria?
Achava a situação um absurdo. E terrivelmente injusta. Vivera a maior parte da vida numa penúria sem tamanho e agora que tudo estava às mil maravilhas, o diabo viria para cobrar-lhe o acordo? Será que Deus não podia salvá-lo?
Faltavam poucos meses para se cumprir o prazo. Então, na duvidosa angústia de não saber o que realmente lhe aconteceria naquele dia e hora que estava se aproximando celeremente, ele começou a apelar para Aquele a quem desprezara e esquecera durante toda a sua vida. E foi então que ele teve um sonho. No sonho, um anjo lhe dizia que ele não podia romper o acordo, porque tais pactos, selados com sangue, são irretratáveis. Então ele deveria se apresentar na estação, no dia e hora aprazados. Mas disse-lhe também o anjo que se ele fosse capaz de arrumar um disfarce que o tornasse irreconhecível, o diabo não poderia levá-lo. E não poderia fazer nada contra ele, porque afinal ele cumprira o acordo.
E foi então que ele foi a um cirurgião plástico e mandou que ele mudasse completamente a sua cara. Seu enorme nariz, achatado como uma bolota de carvalho, tornou-se afilado e pequeno; sua boca, de lábios finos e mal desenhados, ganhou lábios grossos e bem delineados;seus olhos, que eram castanhos claros, ganhou uma coloração azul, proporcionadas por lentes especialmente preparadas; mexeu até na altura, mandando fazer um sapato especial que lhe dava pelos menos uns quinze centímetros mais. Colocou embaixo da língua um dispositivo para mudar a voz. Além disso, raspou a cabeça e deixou crescer uma espessa barba preta.
Estava completamente irreconhecível. Fez o teste com sua esposa e filhos. Nenhum deles o reconheceu.
 
Assim, no dia, mês, ano e hora aprazada, lá estava ele na estação ferroviária esperando. Reconheceu logo o sujeito com quem havia feito aquele pacto desgraçado. “Miserável”, pensou ele. “O cara não mudou nem um pouco. É incrível. Está com a mesma cara depois de vinte anos.”
O sujeito passou por ele e não o reconheceu. Andou até o fim da plataforma e voltou. Olhou para todos os lados e perscrutou todos os rostos. Andou de novo de cima a baixo, percorrendo novamente toda a extensão da plataforma. Olhou no relógio várias vezes.
Esperou uma meia hora. Trens chegaram e se foram. A maioria das pessoas que passaram pela plataforma naquele tempo já haviam embarcado. Aureliano, finalmente, com um suspiro aliviado, riu consigo mesmo. O tal agente do capeta não era tão esperto assim. Conseguira enganá-lo sem ter rompido o pacto. O diabo não poderia acusá-lo de ter faltado ao encontro. Sentia-se orgulhoso da sua esperteza. Enganara o diabo.
Estava se preparando para deixar a plataforma quando sentiu uma pressão no braço esquerdo. Uma mão, forte como a tenaz de um guindaste havia se apossado do seu braço.
“Hei! O que é isso” perguntou para o sujeito que o havia manietado e o arrastava para a beira da plataforma.
“ Desculpe amigo, mas eu sou que nem policial. Perder a viagem eu não perco. Se aquele maldito que eu estava esperando me deu o cano, então vai você mesmo no lugar dele”, vociferou o sujeito. E imediatamente empurrou o sujeito barbudo e careca para os trilhos, justamente no momento em que o trem entrava na plataforma.

Todas as testemunhas foram unânimes em seus depoimentos: a vítima projetara-se sozinha no canal dos trilhos. Ninguém sequer encostara nele. Tratava-se, evidentemente de um suicida. 

O HOMEM QUE ENGANOU O DIABO


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 25/01/2012
Reeditado em 25/01/2012
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