Lenda Urbana
- Não! Você tem que atirar nele! Atirar para valer!
Luciana tentou fazer como Igor pedira. Quatro, cinco, seis tiros, que arrancaram urros de dor do morimbundo que a ameaçava. Contudo nem a saraivada de balas foi suficiente para interromper o avanço da criatura que acabou por pegá-la e terminar de uma vez por todas com sua vida.
A mensagem de “Game Over” apareceu na tela junto a um bico de Luciana.
- Nossa você é muito ruim nisso Lu! – Igor disse arrancando o PSP de suas mãos.
- Essa porcaria está roubando! – Luciana sentenciou cruzando os braços.
A rua estava deserta aquela hora da noite, deixando apenas a chuva testemunhar a discussão entre as duas crianças, grossas gotas que caíam com um grande ploc sobre as várias camadas de papelão que cobriam os dois naquele beco esquecido.
- Você podia ter pegado alguma coisa para mim... – Luciana reclamou com um bico enquanto tirava de uma sacola plástica uma boneca encardida.
- Ah, nem vem com essa! Eu sempre trago coisas para você! – Igor disse só com meia atenção, o jogo lhe comendo o resto do cérebro.
Luciana alisava a metade com cabelos de sua boneca, passando vez por outra o dedo pela face suja de lama. Seu dedo também corria pelo olho arrancado e pelo braço amputado na altura do ombro. Aquela boneca era como ela... Encardida e esquecida.
“E quebrada” pensou num impulso que a fez tremer.
- Eu estou com fome... – a menina disse ao acaso com uma voz chorosa.
Igor deixou o PSP de lado por alguns instantes.
- Nossa você já comeu duas vezes hoje! Precisa de mais?
Luciana passou a mão pela barriga que de tão magra revelava costelas frágeis. Sim, ela havia comido duas vezes, mas de que adiantava duas refeições ralas? Ainda mais quando tinha que dividí-las com o irmão?
Igor voltava para o PSP.
- Você precisa começar a ocupar sua cabeça com alguma coisa Lu. É sério, vai acabar ficando louquinha assim.
Luciana lançou um olhar afiado ao garoto.
- Me ocupar com o que? Roubar video-games? – alfinetou.
Igor não deixou de sorrir.
- Ei, eu ouvi uma coisa legal hoje antes de pegar isso aqui...
O garoto silenciou de repente mordendo a língua para passar uma parte mais difícil. Luciana se encolheu quando uma nova goteira começou a fazer chover ali dentro.
Deus, como ela odiava a chuva.
- Eu escutei de um cara lá no posto Texaco. Ele disse que é uma história que está começando a assustar alguns caminhoneiros... – Igor prosseguiu sorrindo após vencer sua contenda no vídeo-game – Tudo acontece com os que dirigem a noite na rodovia Dutra, sentido Rio de Janeiro. Perto da saída de São Paulo tem uma curva próxima a uma fazenda abandonada onde acontecem muitos acidentes. Lá é onde uma mulher aparece pedindo carona. Dizem que ela é muito bonita e tem uma pele branca como leite, só que ela é muito quieta e só responde as perguntas que os caminhoneiros fazem. Ela só não fala uma coisa... O destino para onde está indo. Mas se o caminhoneiro insiste demais sabe o que acontece Lu?
Ele fez uma pausa esperando que as palavras ganhassem mais peso.
- Ele some. Ninguém nunca mais fica sabendo nem do caminhão nem do caminhoneiro. E quando isso acontece dizem que a fazenda se torna mais nova. As plantas secas ficam mais verdes e até a casa quebrada parece mais consertada.
Luciana torceu o nariz para a narrativa.
- Que besteira. Se eles nunca mais são encontrados então como as pessoas sabem dessa história?
- Não sei. Só estou te dizendo o que ouvi. – Igor respondeu.
Luciana bufou colocando sua boneca amputada sobre uma pilha de lixo. Aquela história nem de longe a assustava, ela conhecia os verdadeiros temores das ruas e uma mulher de pele branca era a coisa menos assustadora que se podia encontrar.
- Eu vou dar uma volta Igor.
O garoto a olhou com olhos franzidos esquecendo por um momento o PSP.
- Você tem certeza Lu? Está chovendo...
Luciana saiu de seu espaço e deixou que as gotas vindas do céu cobrissem seu corpo.
Então a transformação começou. A cada gota um pedaço de sua pele caia, como se a água lavasse as manchas de um quadro, deixando por baixo uma textura negra com tendões e veias mortas. Em seu rosto os lábios desapareciam deixando uma fileira de dentes amarelados presos num eterno sorriso. Os olhos perderam o tom de vida e agora eram verde-musgo, como a grama que cresce ao redor de um túmulo. Seus cabelos sedosos também sofreram com a lavagem, se tornando oleosos e duros, como palha de aço.
- Só volte logo – Igor disse preocupado ao voltar ao PSP – Você sabe como demora até você secar...
Luciana assentiu sorrindo para a noite. Estava encardida, esquecida e quebrada como sua boneca, e conhecia o suficiente das ruas para saber com o que se assustar. Mas mais importante...
Estava morrendo de fome!