A Cidade Faminta:
Por Giomar Rodrigues
O senhor Martin Raven deveria ter ouvido os conselhos de sua esposa antes de se aventurar por viagens distantes onde pudesse ficar completamente isolado. Ele nunca poderia assumir seu defeito ou insensatez, mas estava inegavelmente perdido. Embora este tentasse culpar seu erro pela falta de qualquer tipo de placas informativas durante todo o trajeto que percorreu. Mas em meio ao grande abismo que tudo lhe parecia ele encontrou uma cidade, não havia placa alguma na entrada e parecia ter poucos habitantes, pois as ruas tinham um aspecto de solidão e desespero, mas ao contrário do que alguns poderiam pensar a cidade não era feia, muito pelo contrario, ela era muito bonita e em ótimo estado de conservação. Era aquele tipo de vila pequena que comporta poucos habitantes que poucas vezes abandonam sua própria moradia por qualquer motivo que julgue irracional e desta forma acaba por viver e morrer apenas na área delimitada pela sua própria cidade, sem nunca ver o resto do mundo ou o que fica além das outras casinhas de madeira.
O Sr. Raven ficou perplexo ao ver a cidade ainda de dentro de seu veículo, nunca imaginaria ver algo tão inocente e tão digno de pena quanto o aspecto da misteriosa vila. Imediatamente ele sentiu um pavor pela sensação que o embriagava naquele momento, era como se fosse uma antiga fobia infante ou um devaneio ainda inocente a respeito de ser abandonado para sempre. Neste momento o Sr. Raven deu um tapa em seu próprio rosto para que pudesse acordar do transe que parecia curiosamente envolvido e respirando bem fundo pode finalmente descer do veiculo para tentar falar com algum habitante local em busca de informações sobre seu destino.
Mas ao chegar a uma grande estalagem não encontrou nenhum sinal de qualquer pessoa pelas redondezas, o que lhe pareceu muito estranho, pois todas as residências estavam em um estado de conservação e limpeza impecáveis. Por mais ridículo que a idéia lhe parecesse ele sabia que aquilo era uma cidade completamente abandonada, pensou durante um tempo se talvez ali naquele local outrora uma doença não afastou todos seus habitantes vitimas de alguma enfermidade pouco conhecida ou apenas o simples medo irracional que todos estes pequenos lugares despertam na alma das pessoas mais humildes em relação ao conhecimento. Mas nada poderia explicar ainda os cuidados quanto à manutenção da cidade.
A noite caía rapidamente na lúgubre cidade, quando o Sr. Raven, já perdido em seus próprios pensamentos mais uma vez lhe dá um tapa em seu rosto e retorna para seu veiculo buscando deixar aquele local para sempre e nunca retornar. Mas para sua surpresa o carro parecia não ter a mesma vontade que ele, pois era impossível fazê-lo pegar. Estava enguiçado, talvez algo no motor ele pensou e ao abrir o capô pode ver que a fumaça que surgiu de repente era um claro sinal de graves problemas. Mas ao olhar mais atentamente notou que os cabos de vela pareciam arrancados, embora ele tentasse consertar com fita adesiva, nada parecia dar certo. Ele estava quase desistindo quando ouviu um som estranho vindo de um de seus lados e ao olhar para sua direita percebeu que estava em frente ao cemitério da cidade e do outro lado da rua ficava a igreja da mesma. Ainda olhando para a imponente igreja abandonada, ouve mais uma vez o ruído e então percebe que o som vem do outro lado da rua. O cemitério não estava mais tão vazio quanto a momentos atrás, agora cerca de dez pessoas estavam paradas perto do portão, todas muito malvestidas e com uma aparência muito ruim. Mas não era só isso que o Sr. Raven percebeu, pois o que mais lhe chocou era que mais pessoas se juntavam a elas vindas diretamente de seus túmulos. A princípio elas ficaram apenas observando o homem parando a frente do veiculo arruinado, mas quando ele se moveu um passo para trás, os habitantes do cemitério começaram a vir em sua direção. Em seu momento de desespero o Sr. Raven correu para o local mais próximo que encontrou, sendo este a grande igreja logo a sua esquerda. Mas notou que as portas estavam bloqueadas pela parte de fora por algumas tábuas de madeira bem grossas, ele conseguiu com muito esforço retirar algumas que estavam mal pregadas e dessa forma conseguiu entrar na igreja, mas ficou espantado pelo fato de que os habitantes do cemitério ficaram com medo de se aproximar da porta da igreja, parecendo até mesmo balbuciar algumas palavras desconexas com relação ao seu medo. Nesse momento o bom Sr. Raven teve a estranha sensação de que se abrigar na igreja talvez não tivesse sido a melhor das suas idéias.
Passados alguns momentos os estranhos habitantes da cidade fecharam sua entrada e recolocando as tábuas de madeira em seu lugar novamente, tornando agora impossível sua fuga. Os mortos retornaram para seus túmulos com um aspecto misterioso e parecendo contentes com a situação do Sr. Raven. Mas para o homem que estava dentro da igreja a sensação de abandono tornou-se devastadora, pensou por algum tempo em como poderia sair daquele local e não encontrou resposta alguma, talvez ele soubesse que sua única esperança residia em continuar pelo corredor engolido pela escuridão.
Um cheiro pútrido penetrava suas narinas, envolvendo-o por completo até que chegasse ao salão principal onde para sua surpresa percebeu que não estava mais sozinho no local. Duas crianças estavam sentadas nos velhos bancos de madeira da igreja aparentemente rezando em direção a imagem do antigo Cristo que jazia na cruz. Elas não se assustaram com sua presença e o cumprimentaram de maneira respeitosa. Quando perguntadas sobre o que faziam naquele local disseram que apenas esperavam pela hora da refeição, que não deveria demorar muito mais. Mas ao serem questionadas sobre que horas teriam sua refeição, demonstraram não compreender a natureza da pergunta e então tentaram de forma simples explicar que todos ali não devem se alimentar de forma alguma, pois serão os ingredientes da refeição aos “senhores noturnos”. A sensação de pavor lhe envolve novamente e sua única resposta no momento foi de sair correndo dali o mais rápido possível, mas ao passar da porta que dava acesso a entrada principal da igreja percebe que existem dois corredores disponíveis e que de um deles existe uma figura negra se aproximando lentamente com um candelabro nas mãos. A estranha figura completamente encapuzada prossegue sua marcha lentamente com a cabeça baixa, como se fosse cega ou não tivesse a capacidade de enxergar. Olhando mais atentamente para seu candelabro pode perceber que a mão que o carregava era na verdade uma animalesca garra. Sabendo que aquela coisa seria tudo menos humana, ele segue para o outro corredor e encontra um quarto pequeno onde fica escondido em baixo de uma mesa torcendo para que o sacerdote encapuzado ali não entrasse.
O tempo passa rapidamente embora não tenha sequer a noção das horas, mas decidido a escapar dali o mais rápido possível tenta encontrar outra saída, mas acaba por retornar para o mesmo corredor que viu a figura encapuzada. Vendo que uma luz fraca percorria o corredor como se retornasse de seu trajeto anterior, sua mais sabia decisão foi retornar para tentar resgatar as crianças e sair antes de serem notados.
A sala agora estava totalmente silenciosa, sem sinais de orações ou de qualquer pessoa por ali, porém embaixo de um dos bancos onde costumavam sentar as crianças estava um velho sapato bem pequeno que deveria pertencer a alguma daquelas meninas. O Sr. Raven se agachou para alcançar o sapato e olhando atentamente para ele percebeu que uma parte do pé de alguma das crianças ainda estava dentro. Era horrível, como poderia ser aquilo real e que lugar seria aquele? A loucura tomou posse de seus pensamentos, ele arremessou o sapato contra a grande cruz e gritou por piedade de maneira desesperada aos prantos. E então como se fosse uma resposta as suas orações viu surgir subitamente dois dos sacerdotes ao seu redor e estes o agarraram com força, prendendo-o de maneira que mal pudesse sequer mover o pescoço. Um alçapão se abriu detrás do altar e dele surgiu uma besta gigantesca que seguramente nunca poderia ser chamada de humana. Sua face alongada era preenchida por presas enormes, seu corpo era envolto por uma pelagem negra intensa e possuía quatro braços finos além das grandes e grossas patas traseiras, possuía asas pequenas em suas costas como se fossem atrofiadas pela falta de uso, talvez por viver naquele local por tanto tempo. Quando a besta infernal se aproxima o suficiente para atacá-lo, ela o cheira por alguns segundos e só então desfere uma violenta mordida em seu abdômen, quase arrancando ele por completo.
O som dos gritos reverbera por toda a cidade fazendo com que os estranhos moradores que agora cuidavam das duas crianças, ouvissem os sons agonizantes que antecedem a morte e preparassem uma sepultura nova para o mais novo inquilino do cemitério da cidade dos famintos.
FIM