O Navio Dourado

O Navio Dourado

(Renan Flores)

Em algum lugar da costa americana, virada para o oceano pacífico, estava a cidadezinha de ___. Era uma cidade pequena, de pouco mais que algumas centenas de habitantes.

Por terra, ___ estava cercada por uma grande cadeia de montanhas, muito difícil de transpor. O único modo de vencê-la era dando a volta. Uma extensa faixa de terra de centenas de quilômetros.

Já em mar, a profundidade em volta da cidade era relativamente baixa. Além disso, havia um grande recife de corais. Isso impedia navios e outras grandes embarcações de ancorarem próximo à cidade. O desembarque era feito por pequenos botes, ou alguns quilômetros a sudeste, onde a profundidade era maior.

Nessa mesma direção havia outra cidade, a única outra deste lado das montanhas. Ao contrário de ___, esta cidade não tinha os mesmos problemas de navegação. Portanto, o comércio nesta cidade era bem mais desenvolvido do que em ___.

Havia até mesmo uma linha de trem, que percorria o território americano de leste a oeste. Mas a linha não ia até ___. Quem quisesse chegar à cidade precisava percorrer um dia inteiro de caminhada, o que era muito cansativo, ou pagar um cocheiro, o que era muito caro.

Havia também um antigo farol, construído para guiar os navios que chegavam à cidade através do perigoso recife de corais.

Pelos motivos já descritos, o transporte marítimo foi diminuindo, diminuindo até praticamente desaparecer.

O farol, sem uso, parou de ser aceso.

Por esses motivos ___ era uma cidade isolada e antiquada. A revolução acontecia lá fora. Fábricas se erguiam, florestas inteiras eram derrubadas, trens rasgavam o continente vomitando sua fumaça no ar. Monarquias caíam, reis eram enforcados em praça pública. Iluministas, socialistas, republicanos, cristãos. Todos tentavam moldar o mundo ao seu gosto.

Nada disso chegou a ___. Enquanto o mundo se modernizava, ___ preferiu continuar nas trevas.

O comércio, por terra ou por mar, era feito unicamente com a outra cidade mencionada há pouco. ___ era uma cidade autosuficiente. Suas principais atividades eram a pesca e a agricultura.

Poucas pessoas saíam de ___, e menos pessoas ainda iam para lá. As famílias residentes em ___ eram antigas, muito antigas, quase todas datadas da fundação da cidade (que também era muito antiga, umas das primeiras cidades americanas).

Os filhos de ___, assim como seus pais, foram ensinados nos santos caminhos da Igreja Católica. Havia uma única igreja na cidade, dirigida pelo Padre Francisco, descendente de espanhóis. Era o Padre Francisco também quem dirigia a única escola da cidade.

Em resumo, as pessoas de ___ eram ensinadas a viver sem esperar pelo dia de amanhã. A cidade é um “sempre-hoje” onde a única quebra de monotonia é a passagem das estações do ano.

Outro ponto a destacar é o clima de ___. Localizada próxima à linha do Equador, a cidade apresenta um clima relativamente quente o ano todo, mesmo no inverno.

No verão a cidade sofre com tempestades e tormentas, e ocasionalmente furacões.

***

Era um desses dias de verão. Marcelo estava sentado em sua poltrona, fumando um cachimbo, observando a tempestade pela janela de sua casa. Joana, sua esposa, tentava fazer a filha do casal dormir. Ela acordara aos berros com o barulho do pai pregando reforços nas janelas e portas da casa.

Aquela não era uma tempestade comum. Sentiu isso logo de madrugada, quando lançou seu barco ao mar para mais um dia de trabalho. O céu estava aberto, sem o menor indício de chuva. Mas estava tudo muito quieto, estranhamente quieto. E o ar. Havia algo estranho no ar que não sabia dizer.

Irritou-se com as brincadeiras de seu ajudante, um sobrinho de dezesseis anos. Lançaram o barco ao mar mais cedo que de costume.

Durante quase duas horas absolutamente nenhum peixe fisgou o anzol, mesmo sendo época de procriação. Na verdade não viu nenhum peixe ou criatura marinha. Nem mesmo gaivotas. Também não viu cachorros na rua quando saiu de casa. Estava tudo silencioso. Não gostou nada daquilo. Algo estava diferente. Podia sentir o cheiro. Podia sentir o gosto. O próprio balançar das ondas estava diferente.

Assim que o sol nasceu, ainda não tinham conseguido nada. Marcelo resolveu voltar. Seu sobrinho reclamou, disse que queria comer peixe, ao que ele retrucou que se contentasse com batatas.

No caminho de volta, encontraram um velho pescador e seu ajudante, um rapazola de vinte e tantos anos. Marcelo interrogou o velho a respeito da pesca. Este respondeu que não tinham conseguido nada, nem mesmo uma sardinha. O velho disse que tentaria se afastar um pouco mais da costa.

Chegando à praia, Marcelo achou que não seria uma boa ideia deixar seu barco no ancoradouro, como de costume. Ajudado pelo sobrinho, ele arrastou o barco pra fora do mar e o escondeu numa gruta, atrás de algumas rochas. Fez questão de amarrar muito mais do que o necessário. Pressentia algo.

Em casa Joana ainda dormia. Era cerca de seis e meia. Resolveu preparar o almoço. Ia tirar o dia de folga. Lembrou-se de como foi brusco com o sobrinho mais cedo e ficou com pena. Ia fazer comida a mais e levar a metade à casa do irmão.

Marcelo, um homem grande e forte, não estava acostumado a lidar com as delicadezas da cozinha. A verdade é que passou quase duas três horas atrás do fogão, e ainda assim só conseguiu terminar com a ajuda de sua mulher.

Enquanto separava a comida que ia levar à casa do irmão, Joana entrou com um cesto de roupas lavadas. Disse que não podia estendê-las porque ia chover forte.

Marcelo saiu à janela e viu que o céu estava carregado de nuvens. Ventava muito. Realmente ia ser uma chuva daquelas. Apressou-se em ir à casa de seu irmão.

Marcelo foi recebido pelo sobrinho, que o levou à sala onde estava Tiago.

Tiago era o irmão mais novo de Marcelo. Contava trinta e sete anos, cinco a menos que Marcelo.

Quando mais novo, Tiago foi tentar a sorte em outra cidade, na esperança de acumular riquezas. Deixou a esposa grávida de três meses. Conseguiu trabalho como mineiro. A maior parte do que ganhava enviava para a esposa.

Mas certo dia a mina desabou e Tiago por pouco não perdeu a vida, mas em compensação...

Em compensação perdeu o movimento das pernas. Nunca mais pôde trabalhar. A esposa morreu logo ao dar a luz ao filho. Tiago, inválido, com um filho para criar, sempre recebia o irmão com um sorriso no rosto e um brilho nos olhos. Bonitos olhos esverdeados, presentes de sua descendência italiana.

- Meu querido Marcelo, dê cá um abraço!

Aqueles bonitos olhos esverdeados...

Marcelo entregou a comida ao sobrinho para que levasse à cozinha. Em seguida se desculpou com Tiago pela grossura mais cedo no barco. Explicou suas inquietações.

Tiago retrucou que agiu bem, que não era bom levar o sobrinho para mar aberto em tempo ruim. Mesmo ainda estando um bom tempo de manhã, era o sentido aguçado do irmão pressentindo mudança de tempo. E o tempo de fato havia virado.

Resistindo aos pedidos do irmão de que almoçassem juntos, Marcelo se despediu.

O céu estava escuro, muito escuro, e o vento assoviava. Decidiu passar no ancoradouro no caminho pra casa pra conferir seu barco.

Ao chegar lá havia uma multidão de homens carregando os barcos para fora do mar. Três pescadores se aproximavam da praia, remando seus barcos com toda força.

No horizonte, uma gigantesca massa negra se avistava ao longe, engolindo tudo o que entrava em seu caminho.

Marcelo ficou aterrorizado.

- Marcelo, é você? Louvado seja o Senhor! – Era o velho pescador que encontrou mais cedo. Não achamos o seu barco, não vimos nenhum sinal. Pensamos que ainda estava no mar. Louvado seja o Senhor Jesus Cristo!

- Eu o escondi atrás das pedras. O que está acontecendo? O que é aquilo?

- Aquilo, amigo Marcelo, aquilo não é coisa de Deus, não. Aquilo é obra do lá de baixo.

Eu estava pescando, quero dizer, tentando pescar. Veja Marcelo, até mesmo os peixes se escondem dessa monstruosidade. Oh, Meu Senhor Amado! Proteja-me!

Como eu estava dizendo, eu estava tentando pescar. Digo tentando porque não peguei nada, nadinha! Nunca me aconteceu algo assim em todos os meus anos de pescador, e olhe que não são poucos.

Mas mesmo assim continuei insistindo. Eu e meu ajudante, pobrezinho, que Deus o tenha, remamos e remamos até bem longe da costa, onde provavelmente haveria peixe. Joguei meu anzol inúmeras vezes, tentei todas as minhas iscas e nada. A essa altura eu já amaldiçoava todo o mar e seus peixes.

Eu já estava me decidindo a voltar quando meu ajudante me puxou pela camisa e apontou em direção ao horizonte. Foi aí que eu vi. Aquela gigantesca criatura negra do tamanho do horizonte, vindo em minha direção. Pude ouvir seus grunhidos. O mar começou a ficar turbulento.

Apavorados, remamos com todas as forças de volta para a praia. Mas por mais que remássemos, não conseguíamos nos afastar. A criatura nos perseguia, aproximava-se aos poucos de nós.

Remamos e remamos até o limite de minhas forças. Eu caí exausto enquanto o pobre rapaz continuou remando. Então avistamos outro barco. Gritamos por socorro, remamos em direção a ele. A essa altura o mar estava turbulento, as ondas nos afastavam. Com muito esforço conseguimos nos aproximar e pedimos abrigo em seu barco. Três remos em um barco iam mais rápido do que três remos em três barcos separados.

Eu fui o primeiro a saltar. Mas o pobre do meu ajudante, ao tentar fazer a travessia, caiu no mar. Caiu e nunca mais subiu à tona. Era como se tivesse sido engolido para o fundo do oceano. Ficamos algum tempo procurando por ele, gritando, mas nenhum sinal. Infelizmente a criatura estava chegando, e tivemos que continuar sem o pobre rapaz. Deus o tenha, pobrezinho!

O velho segurou as lágrimas. Tomou fôlego e voltou a falar com mais calma.

- Aquilo não é de Deus, Marcelo. Nenhuma tempestade, nem mesmo um furacão aparece assim do nada, nem avança tão rápido.

Aquilo, eu digo, é obra do lá de baixo. Não é uma tempestade, é um de seus inúmeros servos!

Não podemos deixar os barcos aqui, estamos levando eles para um lugar seguro. Não confie nas pedras, Marcelo. Traga o seu também. Depois corra para sua casa e reforce as portas e as janelas. Espere pelo pior. Ah Meu Deus!

Sem esperar mais palavras, Marcelo saiu em disparada à casa do irmão. Explicou a situação e perguntou onde havia ferramentas na casa, e também algumas tábuas. Sem poder andar, o irmão não poderia fazer este trabalho.

Ajudado pelo sobrinho, Marcelo reforçou todas as janelas e portas da casa, o que não era pouco trabalho. Em seguida correu para sua casa.

A grande massa negra de nuvens se aproximava cada vez mais rápido. Já estava perto da praia. O vento estava forte e começou a chover.

Em casa, uma das janelas havia se soltado com a força do vento. Recolocou a janela e reforçou as restantes com tábuas e pedaços de madeira que encontrou ao redor da casa. Dentro de casa sua filha choramingava, assustada pelo barulho das marteladas.

As nuvens negras haviam finalmente encoberto ___. O dia ficou escuro como a noite. A chuva ficou mais forte. Os pingos eram pesados e violentos. O vento tornava a respiração difícil. Marcelo teve a impressão de ouvir vozes no vento, lamentos ou algo assim.

Lá longe podia ver o mar incendiando com relâmpagos, um atrás do outro. Marcelo agilizou o trabalho. O pior ainda estava por vir.

***

Marcelo estava sentado em sua poltrona, ao lado da janela, fumando um cachimbo. Sua esposa tentava acalmar a filha.

Lá fora o mundo parecia desabar. O vento uivava e chacoalhava a casa inteira. Mais de uma vez coisas arrastadas pelo vento vieram se chocar contra a casa. Pelas frestas da madeira na janela Marcelo viu árvores sendo arrancadas.

A chuva caía forte e impiedosa. Lá fora estava escuro como a noite. Mais escuro do que a noite. E era pouco mais de meio-dia.

Marcelo, sentado em sua poltrona, estava pensativo. Desde seus primeiros dias como pescador, quando ainda era um pivete, jamais viu ou ouviu falar de algo assim.

Uma tempestade tão violenta e intensa. Deu graças a Deus pelo sentido apurado que lhe foi dado.

Pensava em sua cidade. Quantos estragos aquela tormenta não iria causar? Estava seguro em sua casa, sólida, maciça. Mas havia gente mais pobre que morava em casas mais modestas. Orava para que nenhuma pessoa ficasse desabrigada, ou pior.

Olhou pela janela, através das frestas da madeira. Estava tão escuro que mal podia divisar o mar da linha do horizonte.

Viu um pequeno ponto luminoso dourado no mar, sendo arrastado pelas ondas. Levantou de supetão à procura de sua luneta. Olhou de novo. Era uma embarcação. Um navio, talvez. Um grande navio dourado, como ouro. Devia estar perdido. Estava se aproximando da praia, em direção ao recife de corais.

Marcelo avisou a esposa que aquele navio estava em perigo. Precisava acender o antigo farol para guiar o navio para longe dos corais. Ia procurar ajuda.

Alcançar o farol não era uma tarefa fácil. Há tempos ele não era usado. A trilha foi coberta pelo mato. As rochas, cobertas de limo, eram como sabão em dias de chuva. Marcelo precisaria da ajuda dos pescadores. Iria até o bar.

Por sorte, não era muito longe dali. Mas mesmo assim foi difícil. O vento estava muito forte, objetos passavam voando a poucos centímetros de sua cabeça. Era difícil até de respirar. Marcelo olhou para o horizonte e viu novamente o navio. Não sabia se era ilusão, mas parecia que a luz estava ainda mais forte e viva, como se o navio inteiro estivesse aceso.

Com certa dificuldade chegou ao bar. Estava lotado. Alguns conversavam alto, outros cantavam, outros rezavam e todos bebiam. Marcelo lutou por atenção, mas nada. Subiu numa mesa e quebrou uma garrafa. Todos ficaram quietos.

Ele contou sobre o navio. Todos espremeram seus rostos contra as janelas. “É um navio, um grande navio!”, diziam alguns. “É dourado, um navio todo feito de ouro!”, diziam outros. “O navio está em chamas! Em pleno mar! Fogo na água! Hahaha!”, era Tonho Perneta. Ninguém gostava dele.

Marcelo e mais cinco homens formaram um grupo. Entre eles estava o velho pescador. Apesar da idade, era um dos mais fortes homens de ___. O plano era acender o antigo farol e guiar o barco para longe do recife de corais. Para isso precisariam acender um fogo. Levaram combustível e acendedores, tudo coberto por três camadas de grossos panos. Cordas. Vários metros de corda que amarrariam em suas cinturas.

Saíram do bar em fila indiana, com Marcelo à frente, o velho logo atrás, e o resto em seguida. Estavam todos conectados pela corda. Os mais pesados ficaram no final da fila.

Passaram pelas casas mais pobres. Uma delas havia desabado. Sob os destroços uma criança abraçada à sua mãe chorava. Aproximaram-se. A mãe estava morta, mas seu corpo continuava protegendo a filha. As outras casas estavam todas vazias. Seus moradores provavelmente buscaram abrigo em outro lugar.

Um dos homens se encarregou de cuidar da criança, de levá-la a um lugar seguro. Os outros esconderam o corpo da mãe numa das casas vazias.

O grupo, agora reduzido a quatro, continuou. Começaram a subir a trilha que dava para o farol. A trilha subia por um morro, depois fazia uma curva em U de volta para a praia. O terreno de terra dava lugar a pedras. Com chuva e vento, esta seria a parte mais perigosa, pois o farol estava na ponta de um penhasco com cerca de vinte metros de altura.

O caminho fora tomado por grama. Essa parte não foi tão difícil. Mas quando a parte de pedras começou a se aproximar e seus pés escorregavam toda hora, começaram a ficar assustados.

No meio da escuridão do mar podiam claramente ver o navio dourado sendo arremessado com violência pelas ondas. Incrível como ainda não tinha virado! Incrível também era a intensidade de sua luz! Parecia realmente feito todo de ouro!

Aumentaram a distância de corda entre um e o outro. Dois homens ficaram num local mais seguro, com a corda dando várias voltas em torno de seus corpos. Seguravam firmemente.

Marcelo e o velho se encarregaram de acender o farol. Mais de uma vez escorregaram e caíram. Teriam caído do penhasco se não estivessem sendo segurados. O vento impiedoso parecia os arrastar de volta, andando sobre a rocha nua.

O velho deitou e começou a avançar se arrastando. Marcelo fez o mesmo.

Com muito esforço chegaram ao farol. Soltaram as cordas e as amarraram na porta do farol. Subiram as escadas em caracol.

No topo do farol havia uma vela gigante, mais ou menos da grossura do tronco de um homem e da altura de um braço, protegida por uma cúpula de vidro. Um dos lados da cúpula era uma lente em formato de espiral, que servia para amplificar e focalizar a luz.

Colocaram o combustível na parte mais interna da vela e acenderam. Aos poucos o pavio foi acendendo e a chama cresceu.

Viraram a lente em direção ao navio. Esperaram algum sinal, mas nada. Seria impossível não enxergar a luz do farol numa noite daquelas, principalmente quando ela estava focalizada exatamente sobre o navio. Mas a embarcação rumava em direção ao recife de corais. Estava bem perto deles, podia se chocar a qualquer minuto.

“Talvez o navio não tenha como responder”, pensou Marcelo.

Procuraram alguma coisa grande que desse pra tapar a luz do farol. Iam enviar uma mensagem em código Morse.

Acharam algumas caixas de papelão rasgadas. Juntaram alguns pedaços e emitiram a seguinte mensagem:

Perigo. Coral. Mantenha sudeste.

O navio não respondeu. Enviaram a mensagem mais três vezes. Nada. O navio continuou sua trajetória. Estava em cima da área dos corais. Continuaram mandando desesperadamente a mensagem. “Perigo! Perigo! Perigo!”. Então o navio desapareceu. Assim, num piscar de olhos. Do nada.

De repente algo vindo não se sabe de onde se chocou contra uma das janelas e quebrou o vidro em mil pedaços. O vento invadiu a sala. Os objetos da sala começaram a voar. Outras janelas também se quebraram. Estavam presos num redemoinho de cacos de vidro.

Saíram correndo em direção à escada, com o corpo cheio de cortes. Antes de sair Marcelo viu a cúpula que protegia a vela sendo destruída. O farol se apagou.

Marcelo e o velho finalmente saíram do farol e pegaram os pedaços de corda que haviam amarrado na porta. As cordas estavam frouxas. Puxaram. Ninguém as segurava. Onde estavam aqueles idiotas?

Avançar era perigoso, podiam cair. Mas ficar também era.

Então uma das cordas foi puxada. Marcelo puxou de volta. Outro puxão foi dado, indicando que os outros pescadores receberam a mensagem.

Amarrar as cordas em volta da cintura e prosseguiram agachados. Marcelo à frente e o velho logo atrás.

Marcelo podia ouvir claramente lamentos e gemidos misturados ao urro do vento. Vozes masculinas. Não entendia o que diziam, mas tinha certeza que falavam. Sentia o vento carregado de ódio.

Atrás, Marcelo ouviu um barulho e o grito do velho. Uma das pedras havia se soltado e o velho tinha ido junto. Estava pendurado no penhasco pela corda amarrada à cintura. Marcelo voltou para ajudar, mas naquelas condições era impossível. Outro grito, dessa vez prolongado, sumindo na distância.

O nó do velho se soltou e ele foi tragado pelo abismo. A tempestade amainou logo em seguida, e em poucos minutos cessou completamente.

Marcelo e os outros voltaram para o bar.

***

O corpo só foi encontrado no dia seguinte. Havia se espatifado contra as rochas logo abaixo. Teve de ser coberto para que as pessoas não o vissem. Não tinha familiares que chorassem sua morte, mas a cidade inteira ficou de luto. Como é de costume na tradição católica, o corpo foi velado durante vinte e quatro horas, e logo em seguida, enterrado.

Vinte e quatro horas é tempo suficiente para secar a mais amarga de todas as lágrimas. Apesar do luto, ninguém chorou pelo velho.

Na verdade, sua morte nada mais serviu do que de pretexto para que as pessoas discutissem algo mais importante. Que fim teve a embarcação dourada? Expedições foram feitas sucessivamente, mesmo depois que o velho já estava a sete palmos debaixo da terra. E nada foi encontrado. Nenhum vestígio. Absolutamente nada.

Algumas pessoas foram enviadas à cidade vizinha de ___ para averiguar se alguma embarcação com aquela descrição havia passado por lá recentemente. Nada.

O mistério continuou. Que aconteceu à embarcação? O que havia acontecido com seus tripulantes?

Mistérios, mesmo os mais irrelevante, levam bem mais de vinte e quatro horas para se dissipar. A notícia logo deu lugar à lenda e acabou se introduzindo no folclore de ___.

Não tardou para que o navio fizesse uma nova aparição e sofresse o mesmo destino. E de novo. E de novo.

Muito se foi discutido sobre a veracidade da história. Havia os céticos, havia os fiéis e havia também os que lucravam com tudo isso.

De todas as hipóteses levantadas, conto uma aqui por ser a mais interessante.

Era noite de festa. Natal ou ano-novo, não se sabe bem. Chovia forte. Todos comemoravam a data em suas casas, com suas famílias.

Lá longe, em alto mar, um navio estava em apuros. Carregava uma enorme quantia em ouro. Seu casco estava rachado, logo afundaria. Vendo as luzes da cidade, o capitão ordenou que fossem a toda velocidade em direção a esta. Emitiram sinais de socorro diversas vezes, mas nenhum deles obteve resposta. A cidade inteira estava ocupada comemorando, ninguém vigiava.

Sem saber do perigo dos recifes, a embarcação navegou às cegas e atingiu os corais a toda velocidade. A caldeira explodiu. Tamanha foi a força da explosão que o navio entrou em chamas em alto mar. Todo o ouro derreteu e cobriu o navio. O metal incandescente emitia um brilho forte a quilômetros de distância. Todos morreram na explosão.

Ninguém em ___ viu, devido às festividades.

Conta-se que desde então o navio em chamas continua tentando atingir a cidade de ___ em busca de socorro. Sempre que ele se aproxima, o horizonte torna-se negro e uma tempestade de proporções desastrosas surge. No vento é possível ouvir as pragas e maldições dos marinheiros contra a cidade.

Assim que o navio atinge o local da colisão, ele some, e em poucos minutos a tempestade se vai com ele.

Janeiro de 2012.

Renan Gonçalves Flores
Enviado por Renan Gonçalves Flores em 14/01/2012
Código do texto: T3439726
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