Cuidado,frágil!
“Em uma tarde chuvosa ele caminhava distraído..
Suas pernas não queriam caminhar, mas ele insistia.
Seus cabelos revoltos estavam encharcados e sua mente vazia.
Seguia a passos lentos, seus pés pesavam toneladas.
Continuou até cair à beira da estrada.. acabaram se suas forças.”
— Isto está uma droga. – Um homem de cabelos grisalhos, apesar de ter apenas trinta e cinco anos, pele branca e olhos fundos dizia enquanto socava a mesa.
Ele estava em seu refúgio, um quarto entulhado de papéis. Nas paredes gravuras feitas por ele mesmo, arquivos abarrotados de esboços de livros que ele tem a latente esperança de ver publicados. Esculturas feitas de argila algumas pintadas em tons fortes. A janela é protegida da luz e em cada centímetro não coberto por papel está escrito, em grafite, alguma ideia incrível que ele teve. Caso pudesse passaria mais horas do seu dia ali, porém a vida é real é cruel e às vezes fazemos coisas que nos arrependemos, mesmo que sejam coisas boas.
— O jantar está servido. – Uma pancada na porta expulsando o artista de seu devaneio.
— Obrigado querida, já estou indo. – A voz desanimada tenta disfarçar a real angustia que sente em ter que voltar para sua realidade.
Saia de seu mundo e tranca a porta, pendura a chave no pescoço, sentir o metal na pele o ajuda a suportar aquela realidade maldita.
— Que bom que desta vez não demorou, sinal que estamos tendo progresso. – A esposa de aparência cansada força um sorriso olhando-o com ternura.
— Papai hoje você lê para mim? – Uma pequena garota pergunta animada enquanto mastiga o jantar.
Balança a cabeça positivamente e olha desanimado para a comida dando uma garfada incentivadora. Sua mente voa longe enquanto escuta o falatório da família e responde mecanicamente as perguntas. Seus dias são uma rotina maçante, mas o seu porto seguro garante sua sanidade e o faz manter-se vivo.
Após o jantar lê o “Pequeno Príncipe” pela bilionésima vez, encanta-se momentaneamente com a alegria que os olhos da filha demonstram. Depois da arte sua filha é o que mais lhe ajuda a suportar esta realidade. Antes de terminar a leitura a menina já está dormindo profundamente, mais um dia se foi. Ao sair do quarto escuta a esposa dizer.
— Não demore, não quero dormir sozinha e você está com olheiras horríveis.
— Prometo não demorar. – A voz agora está animada e seu coração bate mais forte.
Após cinco horas ele se da por vencido e caminha vagarosamente até a porta, a cabeça dói um pouco. Vai até a cozinha e bebe um copo de água e ao se virar no escuro toma um susto enorme. Fica congelado observando aquela coisa e tenta se lembrar de onde a conhece. Força a mente e desiste. Caminha devagar até chegar bem próximo a ela, toca seu corpo e um cheiro putrefaz invade suas narinas fazendo seu estômago enjoar. Ele se apoia na parede e todo o jantar é expulso em um jato forte, o mundo da um giro de trezentos e sessenta graus fazendo-o cair no carpete do corredor. Amanhece seu dia ali e quando o relógio desperta escuta apenas o murmúrio da esposa.
— Levanta senão chegará atrasado. – O relógio é silenciado.
Põe-se de pé e caminha com dificuldade até a cozinha, vai até a área de serviço e pega um balde, rodo e pano. Após deixar tudo limpo caminha até o banheiro, abre o chuveiro e se lava de pijama mesmo. Observa a sujeira esvair-se pelo ralo. Tira o pijama e agora ensaboa o corpo devagar, sua mente está vazia e a cabeça dói demais, uma dor insuportável. A sensação é de mil bandas mais algumas dezenas de crianças e um trinca ferro. Sente novamente o estômago enjoar e vomita novamente, desta vez apenas bílis é expulso e suas pernas ficam bambas. Deixa a água lavar mais um pouco o corpo e fecha o registro, pega a toalha e se enrola indo em direção a pia. Passa a mão pelo espelho e congela ao ver seu reflexo. As deformações são horrendas e no lugar de cabelos ele exprime um emaranhado de miolos vermelho intenso pincelado por amarelo ouro e verde bandeira. Abre a boca e observa os dentes apodrecidos e a língua inchada, estica a pele do rosto e sente a mesma se rasgar devido o trabalho intenso dos vermes que a consome. Observa tudo aquilo chocado e ao mesmo tempo realizado.
— Quer ser demitido? O que você deixou cair no carpete? – A esposa entra no banheiro sem aviso e senta-se no vaso esperando respostas.
— Deixei cair um pouco de sardinha que passei no pão. – Ao se lembrar de sardinha seu estômago revira e mais bílis tinge a porcelana branca da pia.
— Tem certeza que foi sardinha? – Ela se levanta, aperta a descarga e se aproxima dele tocando sua testa.
— Meu Deus você está ardendo em febre, vou ligar para seu chefe.
Temos que ir ao médico. Em dezenove anos você nunca teve nada, pode ser algo grave. – Falava isto enquanto tirava a roupa e se enfiava debaixo do chuveiro.
Sentado no vaso ele a observava e sente pena. Uma mulher tão bonita, porém vazia. Lembrou-se da época que a conheceu, da rapidez com que se tornaram íntimos. O rapaz tímido da escola saindo com uma garota tão “descolada”. Relembrou o aborto que quase ruiu com o casamento apressado dos dois, sentiu saudades da tarde que passavam deitados no gramado da faculdade. Sentiu novamente a boca amargar ao recordar a segunda gravidez, não queria outro filho somente ela já o bastava. Viu a cena se repetir na mente ao assinar os papéis de cancelamento na faculdade. Cancelou por tempo indeterminado seus sonhos. Vendo a água deslizar naquele corpo que um dia amou tanto se deixou levar pela emoção e lágrimas silenciosas molharam seu rosto. Eram lágrimas de arrependimento de angustia e saudade. Sentia-se imponente perante a vida, mas a derrota era culpa somente dele. Sua filha, seus pais, sua esposa a própria vida não tinha culpa. Seguiu aquele caminho porque quis. Dormia e levantava com uma estranha, vivia uma vida falsa e amargava seu destino sozinho.
Quando soube do resultado não contou a ninguém, não queria que de repente começassem a lhe amar. Manteve sua sina guardada a sete chaves e por todo este tempo investiu (silenciosamente) em seu sonho sem descansar um único dia. Escreveu, desenhou e esculpiu cada pedaço do sonho. Queria se despedir do mundo de forma vitoriosa, jamais aceitou a condição de “doente”. Agora, naquela cama de hospital, completamente entubado revia sua jornada. Revirava os olhos e reparava os detalhes mórbidos do quarto. Paredes brancas, lençóis azuis, bips incansáveis. Sua vida estava mantida através de aparelhos e isto lhe causava repúdio. Não tinha forças para por fim aquela tormenta, a cabeça doía desesperadamente.
Cada gota de soro com remédio que caia em sua corrente sanguínea parecia lhe matar um pouco mais, a cabeça parecia estar sendo perfurada por uma furadeira escandalosa. Virou a cabeça para o outro lado e deu de cara com ele. Seus olhos amarelados estavam fixos nele. Um rasgo de sorriso se formou naquela face purulenta e ele piscou repetidas vezes assustado. O corpo era uma massa disforme que se espalhava da cadeira ao chão. O cheiro era de sangue pus e derrota. Aquilo se aproximou mais da cama e disse com a voz empastada.
— Mais uma vez seus sonhos serão adiados, sinto muito.
Não respondi, apenas o olhei e novas lágrimas banharam minha face. Durante dez anos aquilo foi minha companhia. A contra gosto ele sabe dos meus maiores anseios e medos. Dividi com ele minhas alegrias e tristezas. Sempre confiei que ele me daria tempo para chegar ao final vitorioso. Novamente depositei minha vida em mãos erradas, como posso ser tão tolo. Volto a lhe olhar e ele sorri repugnante e seu olhar não é de bondade. Naquele momento eu analiso que algo que vivia porque me consumia nunca poderia mesmo querer o meu bem. Idiota, como sou idiota. Olhando o teto tento respirar fundo, mas meus pulmões não correspondem ao meu desejo. Não sinto meus pés nem minhas mãos. Continuo a olhar o teto e minha mente viaja longe. Vejo-me mergulhando em um mar vermelho, dou braçadas com vontade até começar a sufocar. Não me esforço para alcançar a superfície, não quero salvar-me e pela primeira vez farei o que eu quero sem pensar em mais ninguém.
FIM
Epílogo
— O que você fará com tudo isto? – Uma senhora de semblante sofrido pergunta com doçura.
— Ainda não sei mãe, em dezenove anos eu nunca tive acesso a este lado dele. Sinto-me traída. – A mulher responde enquanto limpa os olhos vermelhos.
— Não pense assim querida, pois todos têm segredos. Seu marido era um artista e a maioria não gosta de dividir suas ideias. – Dizia a senhora enquanto deslizava o dedo por uma escultura de argila ainda sem pintura.
— Talvez tenha sido melhor mesmo ele esconder. – Responde a mulher dando um sorriso triste.
— Por que diz isto? – A mãe indaga curiosa.
— Teria medo dele. Veja estas coisas, são horríveis. – Diz fazendo uma careta.
— Não são horríveis, isto é arte! – Uma garotinha responde de cara amarrada olhando com severidade.
A mãe lhe olha e sorri sem graça, a avó acaricia os cabelos da neta e diz em um tom quase animado.
— Ajude a mamãe a decidir o que fazer, você já tem sete anos.
As três saem do quarto e a mãe tranca a porta.