Uma sombra na escuridão
Karen andava por uma rua em direção a sua casa. Era tarde da noite, e a penumbra cobria a rua e as casas, deixando-as sombrias e ocultas em um manto negro de obscuridade. A jovem que seguia apresada, olhava para todos os lados com os olhos cheios de pavor, pensando em como havia se atrasado tanto em um simples passeio ao parque.
Quando saíra de casa, onde morava com seus pais, só queria se afastar um pouco daquele ambiente tão depressivo. Ficar no quarto por tantos dias sem sair a estava deixando perturbada, quase louca. Pensou em com seria bom ir até o parque perto de casa no fim de tarde e olhar as árvores. Só isso olhar as árvores, movidas pelo vento quente de verão que lentamente mudava para uma brisa do anoitecer, mais leve e fria.
Talvez o fato de não ter a mínima vontade de voltar para casa ou o movimento das árvores ao vento ser tão hipnotizante, tivesse feito Karen ficar até passada a meia noite sentada no banco da praça observando distraída... agora estava realmente assustada. Como pudera ficar mais de seis horas parada em um transe completo olhando árvores, pensava enquanto corria de volta ao “lar”.
O mais estranho era que ninguém viera buscá-la, os pais devia ter esquecido dela pela primeira vez na vida, já que nunca saiam de perto, o que só aumentava a estranheza da situação. Ainda andado apressadamente, quase correndo pelas ruas escuras, a jovem percebe que não reconhece mais o lugar que se encontra e que é tão estranha a penumbra ao seu redor. Onde estão as luzes dos postes? E nem todos daquele bairro dormem tão cedo assim, para que nenhuma luz viesse das casas. Parou ofegando e suando frio. Um pânico crescendo dentro de si enquanto procurava um brilho qualquer em uma janela. A as únicas luzes que surgiram foram ponto brilhantes que turvavam sua visão, estava prestes a desmaiar. Tentou em vão andar até a calçada e segurar-se em uma cerca, antes que desse um passo caiu desmaiada no asfalto, com a escuridão a envolve-la.
Acordou muitas horas depois no chão frio da rua. O relógio de em seu pulso marcava oito horas da manhã, mas por que ainda estava tão escuro. Uma luminosidade fraca preenchia o céu, como se estivesse tudo nublado por nuvens de tempestade. Levantou-se devagar com medo de desmaiar novamente e limpou a sujeira do chão de sua roupa.
Agora poderia ver o caminho, a luz do “dia“, ou o que quer que fosse, possibilitava que lesse as placas com os nomes de ruas. Começou a voltar para casa, permanecendo com a sensação de incomodo pela ausência de luz nas casas e mais ainda pela incomum falta de movimento aquela hora do dia.
Ao chegar no “lar” que ontem deixara, abriu a porta com alívio por poder voltar a algum lugar conhecido. Entrou fazendo barulho de propósito, fechando a porta com violência e sacudindo as chaves ao trancar a porta. Tudo para que seus pais relapsos viessem vê-la chegar aquela hora do dia e passar algum sermão qualquer ou um olhar de severo desapontamento e que com sorte não passaria disso. Karen nunca voltara tão tarde para casa, o máximo as duas da manhã nas festas de ano novo e acompanhada dos pais.
O silêncio foi tão ruim quanto o fato de as lâmpadas não acenderem. Os cômodos estavam escuros iluminados apenas com a luz cinza da rua que passava pelas janelas abertas. O ar pesava como se fosse algo sólido, denso como fumaça. Toda a casa vazia, não havia ninguém dentro e nem no pátio dos fundos onde a família tinha dois cães vira-latas. Nada, nenhum ser vivo, nem ao menos uma mosca sequer. E o silêncio que parecia tragar o ruído de sua respiração que ficava cada vez mais fraca.
Entrou correndo em seu quarto as pernas bambas e tremendo do mais absoluto terror, trancou a porta como sempre fazia e encostou a cadeira da escrivaninha na porta em ângulo com a maçaneta. Ali dentro estava mais escuro que nos outros cômodos, a jovem não tinha o costume de abrir a janela e ficava trancada ali a maior parte do dia protegendo-se do resto do mundo. O mundo que nunca havia feito nada por ela, onde permanecia excluída, sem emprego, com estudo, mas sem perspectiva de sair daquele lugar infernal, de ter uma vida finalmente longe do pais. E nisso pensava Karen grudada na parede atrás da porta tentando distinguir os contornos dos móveis tão familiares de seu quarto.
Tateando no escuro a jovem tenta achar a sua cama enquanto com os olhos arregalados procura ver as almofadas em cima do leito. Entretanto o que enxerga faz seus ossos gelarem, há alguém ali deitado. Um vulto meio deitado imóvel. Karen permanece parada em choque, mal se atrevendo a respirar, eis que percebe um brilho leve vindo de onde seriam os olhos da criatura indistinguível naquela escuridão. E de repente a luz se faz em todo o ambiente. Um pavor tão grande toma conta de Karen quando percebe ser ela mesma, meio deitada na cama com um manto de sangue que segue da sua garganta cortada espalhando-se pelo resto do corpo.
Muito assustada recua até a parede e fica a contemplar o corpo que lhe pertenceu. A porta do quarto é sacudida, alguém do outro lado grita que ela já devia ter acordado. O pai como sempre um estúpido continua batendo até que Karen responda que está levantando. Mas isso não vai acontecer hoje papai pensa friamente a sombra de Karen que permanece no mesmo lugar esperando que a porta seja arrombada e encontrem o que restou de si mesma.
Como ela teve coragem de tirar a própria vida dessa forma, o desespero era tão grande e a raiva por uma vida deprimente tanta, a ponto de dar forças para um último esforço macabro de degolar-se. Idiota, pensa a sombra de Karen, porque era isso que sobrara da jovem uma sombra perdida, que vagava na escuridão. A sua sombra havia cansado de ficar presa no mesmo lugar tanto tempo e havia saído para passear pelo parque que tanto a Karen pensava em ir, só que sem coragem de sair de casa para isso.
E só deixá-la um instante sozinha e tu se mata infeliz, grita a sombra irritada, que ao perceber e entender o que aconteceu desliza pela porta agora aberta e passa através dos pais de Karen que entram no quarto depois de arrombarem a porta. Ao som de gritos angustiantes a sombra sai da casa e vaga sozinha para o parque com muita vontade de observar as árvores balançando-se ao vento morno do verão, olhar para sempre.
Alda M.J.D