Um (quase) monólogo entre uma assombração e o reflexo assombrado
Por Ramon Bacelar
-Olá, como tem passado?- perguntou a assombração.
- Mais ou menos. Ninguém olha pra mim. - lamentou o espelho em tom pesaroso.
-E eu sou o quê?
-Você... Você não conta. Além do mais...
-Além do mais o quê? – perguntou em tom de irritação.
-Almas penadas não me assustam.
-Huummmm...- murmurou a assombração- Você é tão... – pensou alto e girou o pescoço.
-Que foi? Tá com medo de olhar para mim?
-Não é isso... é que ás vezes te acho... - vacilou: as palavras agonizaram, atrofiaram e ressecaram na garganta como folhas de outono.
-Seco? Direto?
-Não sei. - respondeu após uma longa pausa.
-Claro que sabe... Assombraçãozinha de butique! - pausou – Olhe bem fundo que encontrará as respostas.
-N...
-Sim bunda mole!- esbravejou o espelho com tamanha fúria, que pareceu encerrar em si mesma a totalidade dos desencantos e frustrações.
-Pare com isso!- respondeu com voz aquosa -Você me deixa... Confuso. - abaixou a cabeça aguardando a chegada da bruma melancólica.
-Você é confuso... e covarde...- transpirou; erupções sudoríficas umidificaram a moldura vitoriana quando a superfície prateada enevoou.
-Vamos encerrar. - disse com voz embargada.
-Covarde. - suava.
-Pare. - tremia.
-Covarde. - suava, suava...
-Chega!- tremia, tremia...
-Covarde, covarde, covarde, covarde...
-Não!
-Sim!!!
Silêncio.
-Olhe pra mim. - disse o espelho serenamente enquanto a névoa deformava uma realidade há muito caótica e convulsiva. – Então? Não vai me encarar... Mesmo?
Como que por um estranho feitiço hipnótico, a assombração ajoelhou-se e olhou fundo:
-Sabe por que não gostas de mim?- perguntou o espelho.
-Não.
-Eu não minto!!!
Numa explosão de fúria e reconhecimento, a assombração estilhaçou a monstruosidade vitoriana em mil pedaços, abaixou a cabeça e se fundiu ao reflexo vaporoso que emanava dos incontáveis estilhaços afiados.
FIM