Um Pavor Precoce [Capítulo I: A visita]

Histórias de terror são, quase todas, previsíveis e monótonas. O que eu irei lhes contar, entretanto, não chega ao patamar de “ficção”. Foi algo que eu vivi... algo que estará para sempre cravado em minhas memórias, por mais que os anos passem. Seja por todo horror que vivenciei, ou pelo caráter fantástico da vivência que tive.

O meu primeiro relato me fez passar por boba diante das autoridades locais. Inicialmente, consideraram-me uma jovem estúpida que fantasiou uma série de contos de terror, e talvez seja assim que você irá me enxergar enquanto eu lhe contar tudo o que vivenciei.

Sabe-se que em determinados lugares da Europa, sobretudo em vilarejos e cidadezinhas mais isolados, o povo permite que a imaginação e o medo do desconhecido lhes domine. O que não sabíamos, até então, era que nem tudo se resumia a um simples folclore local.

Pois bem,

Tudo começou na época em que morávamos em um castelo consideravelmente isolado, embora as estradas conduzissem com facilidade as nossas carruagens para Berlim, capital da Alemanha. Assim como muitos outros nobres ingleses, o meu pai decidiu criar raízes neste lugar relativamente remoto, onde qualquer pequena quantidade de dinheiro proporcionava uma vida confortável.

Minha mãe, uma nobre alemã, morreu quando eu ainda era apenas uma criança. O meu pai, então, entregou-me aos cuidados de quatro adoráveis senhoras: Madame Lupret, Constance, Baba e Nadine. Enquanto Madame Lupret cuidava de minha educação, Constance, Baba e Nadine cuidavam do nosso castelo e zelavam por nosso conforto.

Cresci em um ambiente caloroso, onde tive acesso a tudo o que desejava, exceto um círculo próximo de amigos. Conforme cresci, passei a considerar o lugar pitoresco e bizarro, mesmo que as propriedades de terra não ficassem muito afastadas umas das outras. Como você pode imaginar, eu não tinha uma vida social muito movimentada... o grupo de quatro ou cinco amigas que me visitava já não me era suficiente. Eu apenas me sentia mais entediada e cansada... cansada de uma rotina que se repetia há 19 anos.

Permita-me descrever, antes de mais nada, o nosso schloss, o castelo onde moramos. Papai o comprou há cerca de 25 anos, quando decidiu vir morar aqui. Nessa época, o nobre que aqui habitava estava decidido a se livrar da propriedade... o que de certa forma assustou o meu pai, tanto pelo baixo preço quanto pela imponência da propriedade. Desde sempre o castelo despontou como um dos mais belos da região, muito embora tenha sido comprado por uma magra quantia. São cerca de 16 quartos espalhados por toda a propriedade. Uma grande e bela escada de pedra forrada com um tapete vindo da Rússia corta a bela sala de estar. Por vezes me escondi pelos quartos, em busca de passagens secretas, enquanto as criadas ou minha ama se punham a me procurar.

A minha história começa em uma tarde quente, no ano de 1878. Lembro-me que foi um dia tão prodigioso como eu nunca havia visto igual. As janelas do castelo, abertas, permitiam que a luz do sol penetrasse nos cômodos e nos corredores. As cortinas voavam para fora dos quartos como vestidos de seda a bailar. O cheiro das flores e do mato verde tomavam conta de todo o campo, enquanto podíamos ouvir, nitidamente, a ópera dos pássaros e pequenos seres que habitavam as redondezas.

A minha visão desse schloss passou a ser diferente nessa tarde de domingo, quando eu havia recém-completado os meus 15 anos. Ao correr pelo campo, próximo do castelo, deparei-me com um velho camponês a colher alguns tubérculos do solo. Curiosa, abaixei-me e ofereci-lhe ajuda, mais para saber o que ele fazia do que para realmente auxiliá-lo. O homem, então, mirou-me com os seus intensos e, de certa forma, assustadores olhos azuis, dizendo-me:

- Cuidado com o diabo que lhe espreita!

Por um momento perdi o equilíbrio e, agachada, caí para trás, sobre o capim.

- Não compreendo, Senhor! O que queres dizer com essas palavras?

O velho olhou-me com pavor e, para a minha surpresa, despejou o meu nome no ar:

- Christine... Sei quem és tu, pobre criança. Tua mãe foi a primeira, e você logo será a segunda! Cuidado, o diabo lhe espreita. O diabo lhe espreita, criança amaldiçoada. O diabo lhe espreita!

O desespero tomou conta de meu coração e de meu pensamento. Corri dali, sem entender as palavras do velho, mas assustada com o que ele disse. Eu, que era tão segura de mim mesma, a ponto de rir de tantas histórias tolas contadas pelos camponeses. Como pude me assustar com aquelas palavras inesperadas? Como aquele homem que eu nunca havia visto pelas redondezas de nossa propriedade saberia o meu nome? Por qual motivo me diria coisas tão tenebrosas? Cerrei os olhos enquanto corria, e senti o vento frio tocar o meu rosto, até me esbarrar em algo macio, que me fez tropeçar e cair.

Atônita, terminei por abrir os olhos e deparei-me com uma figura conhecida. Vi, então, surgir o meu pai, que me mirava com um olhar severo.

- Disse-lhe inúmeras vezes, Christine, que não tolero atrasos. As refeições não devem ser atrasadas por sua indisciplina.

Interrompi o meu bondoso pai, desculpando-me pelo meu atraso. Contei-lhe o que o velho havia me dito, e que o mesmo sabia o meu nome. Meu pai riu, dizendo que era delírio de uma jovem criança, e me conduziu de volta ao lugar onde eu disse ter avistado o camponês.

- Vê? Não há nada ali! E mesmo se houvesse, não existe nada de extraordinário em um dos camponeses das redondezas saber o teu nome. Agora, andemos. Não vê que está prestes a chover? Olhe para o céu, está tudo escuro. Não tenho mais idade para ficar atrás de ti, procurando pela propriedade.

Como em uma ilusão mágica, o velho havia desaparecido dali, deixando para trás uma antiga pá, coberta por terra, e algumas batatas pisadas. Similar ao retrato de um truque assustador, o sol havia dado lugar a nuvens negras, que trouxeram chuva por três dias consecutivos.

Por mais estúpido que possa parecer esse relato, desde aquele dia eu passei a ter um sono inquieto. Pesadelos tomavam conta de minhas noites, e nestes sonhos obscuros, eu era lançada em um mar de corpos nus, que se contorciam em agonia. Por vezes, tocavam o meu corpo, que surgia envolto por um tecido leve... Em outras circunstâncias eu era sufocada por beijos ardentes que percorriam toda a extensão de minha pele. As carícias, posteriormente, passaram a dar lugar a terríveis mordidas, que seguidas por uma forte sucção, me faziam perder a consciência e despertar dos pesadelos que pareciam não ter fim.

Os sonhos negros cessaram quando meu pai, embora não fosse supersticioso ou algo similar, começou a ficar assustado. Logo ele chamou um padre da capital para rezar e abençoar o castelo. Lembro-me que ele me ensinou uma oração em especial, na qual a invocação do meu anjo da guarda era o ponto central da prece.

Quanto ao que há de assustador em meus relatos, tenho que lhes dizer: não foi uma invasão em nossas terras ou o ataque de um “apaixonado” em meus aposentos. Foi um evento extraordinário, testemunhado por mim ao passear pelas redondezas.

Papai sempre cuidou para que eu fosse uma moça prendada e, acima de tudo, sempre me instruiu a usar o cérebro. De Berlim ele trouxe alguns tutores para me dar aulas de História, Geografia, Aritimética e outras disciplinas.

Numa manhã de sexta-feira, após tediosas lições de latim, Madame Lupret finalmente havia me dado permissão para andar pelas redondezas. Papai, ausente, havia retornado à Inglaterra para resolver questões relacionadas a uma herança deixada por um tio. Pois bem, não tardou até que eu me pusesse a caminhar pelas redondezas do schloss, inquieta com uma estranha agonia que tomava conta de meu coração.

Percorrendo algumas colinas, aproximei-me das margens de um riacho. O som dos pássaros na floresta passou a tornar-se cada vez mais distante, enquanto eu sentia que nuvens escuras passavam a tomar conta do céu, antes azul e tomado por raios de sol, que tocavam a minha pele de forma gentil.

Meus lábios estavam secos, minha garganta parecia trincar. Não resisti à água cristalina que corria sobre pedras bem recortadas. Abaixei-me e com a mão, levei um pouco de água à boca. O frescor e o prazer que eu deveria ter sentido ao beber daquela água deram lugar a um gosto peculiar, semelhante a sangue. Confusa, corri meus dedos pela água, até perceber que a água assumira uma tonalidade escura, em um vermelho intenso e sufocante, semelhante à cor do sangue. Como em um reflexo diabólico, surgiu ali o rosto de um homem desperto, com grandes olhos verdes arregalados. De sua boca, um grito estridente rasgou a quietude da floresta. Sua mão, ensangüentada, tomou a minha como se fosse o corrimão de uma escada para o paraíso. A força que fiz para tentar me soltar fez com que minha inclinação o ajudasse a emergir da água.

Minha expressão de horror não era o suficiente para expressar todo o pavor que me causou aquela cena. O rapaz, vestido com trajes de um nobre, tinha seus cabelos ruivos ensopados de sangue. Seu peito parecia ter sido atingido por vários golpes perfurantes, que abriram pequenos buracos de onde brotava o líquido escuro que lhe garantia vida. Seria ele uma das assombrações das quais falavam as crianças filhas dos camponeses? Seria ele uma alucinação, um sonho?

Não, eu não estava delirando ou em estado de sonambulismo. O jovem rapaz agarrou-se a mim, balbuciando um pedido de ajuda. Seus dedos corriam os meus cabelos que, antes loiros, passaram a assumir a cor do sangue que corria por suas mãos.

Em um ato de desespero, eu o arrastei para longe da margem do riacho. Gritei por alguns minutos, pedindo ajuda. Sem qualquer resposta, deixei-o deitado perto de uma pedra, correndo dali em direção ao schloss.

- Buscarei ajuda. Prometo voltar.

Ele me mirava com um olhar sereno, inclinado sobre a pedra. Suas mãos pareciam cobrir os seus ferimentos no peito. Com esforço, ele disse:

- Depressa...

Laurent
Enviado por Laurent em 28/12/2011
Reeditado em 28/12/2011
Código do texto: T3410092