Noel

Hoje é dia 24 de Dezembro, já são 23 horas.

Minha casa como sempre está vazia, apenas eu e como companhia uma garrafa de whisky pela metade.

Estou aqui no sofá.

Todo ano é a mesma coisa. As lembranças vem e me atormentam.

Ainda estou usando essa ridícula roupa vermelha, quente como o inferno.

Me vem à mente o rosto daquelas criancinhas que me procuraram durante os últimos dias na minha "casinha" instalada no centro da praça central.

Infelizes. Pobras crianças. Acreditando em papai noel. Vivendo nessa cidade desgraçada.

A maioria dos pais viciados em crack e as mães se prostituindo pelas ruas.

Papai Noel.

Um dia eu também acreditei nele. Há muito tempo atrás.

Mas a realidade entrou em minha vida muito cedo e descobri que tudo isso era mentira.

Meus pais foram assassinados porque deviam a traficantes.

Fui jogado na rua. Me vicie. Me vendi.

E nada de papai noel. Dentro de meu ser só raiva e ódio. De tudo e de todos.

Até que um dia algo aconteceu.

Voltava para casa depois de mais um dia de bebedeira.

Ao entrar em casa, senti um cheiro forte me invadir as narinas. Um cheiro repugnante.

Sentado no sofá da sala, o mesmo que me encontro hoje, estava um ser estranho.

Alto, vestindo um terno preto e fumando um charuto.

Fixou seus olhos em mim. Gelei. E fiquei ali imóvel.

Como ele entrou ali? O que queria comigo?

Nunca havia visto tal criatura.

Me chamou pelo nome e disse que tinha uma missão para mim.

Não me interessa. Respondi.

Ele insistiu para que o ouvisse.

Aceitei. Me sentei de frente para o tal elemento e fiquei ouvindo o que ele queria.

Uma criança por ano. Só isso. Ele me falou e deu uma risada insana.

Te levo para onde eu escolher e você me pega uma criança.

Em troca e dou tudo o que você quiser.

Tudo? Respondi.

Sim. Tudo.

Pense e volto amanhã.

Aceitei.

Aceitei mas não consegui cumprir o pacto.

Impossível. Perdi tudo. Sempre fui um infeliz. Um bebado, mas isso nunca faria.

Onde eu teria mais contato com crianças? Vestido de papai noel.

Sei que hoje ele vem para prestarmos conta do combinado.

Tomo mais um gole da garrafa.

E outro mais. Quero ficar anestesiado para quando ele chegar.

Sinto seu cheiro. Ouço seus passos. Batidas na porta.

Está aberta. Grito do sofá.

Continuo sentado esperando meu fim.

Ele entra. Fica parado em minha frente.

Infeliz. Diz. E me olha com despreza.

Nem vou te levar. Você já tem seu próprio inferno aqui.

Seus dias restantes aqui na terra serão piores que se eu te levasse ao inferno.

Me olhou nos olhos e por indrível que pareça, acho que sentiu pena de mim, se é que o diabo consegue sentir isso.

Comecei a chorar e abaixei a cabeça. Quando a levantei ele já não estava mais lá.

Só tenho mais um gole na garrafa. Minha letra está quase ilegível.

Sobre a mesa uma arma descansa esperando o momento de ser usada.

Ele sabia que iria me fazer tomar essa decisão por conta própria.

Meu inferno é aqui ou em qualquer outro lugar onde eu esteja.

Vou tomar o resto do whisky.

Posso sentí-lo aqui na sala.

Vou cumprir a minha parte do pacto.

Vou me embora.

Esta carta foi encontrada no dia 25 de dezembro pelos vizinhos quando foram levar um almoço especial para o Papai Noel.

Junto à carta havia uma garrafa vazia, uma arma desacarregada e no sofá apenas a roupa toda suja de sangue.

Nunca mais o encontraram, mas algumas pessoas dizem ve-lo circulando na época de natal pela praçã da cidade.

Feliz Natal.

Paulo Sutto
Enviado por Paulo Sutto em 15/12/2011
Código do texto: T3390563
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