Cemitério Medina
Defronte ao grande portão de ferro com pintura descascada estava eu, sozinho, á noite, e observando quantas letras tinham o cemitério Medina próximo ao lago das laranjeiras. Eram letras torneadas e grossas, feitas por um artesão da cidade que o próprio local já o tinha consumido, o que restara desse velho eram as letras da entrada do Medina.
Um passo relutante que não queria ter, usar dessa maneira para ambientar-me a atmosfera pútrida era o que em meu peito não queria ter, mas, sim a ordem mental de trocar alguns passos entre os sinuosos e lúgubres corredores. A noite espessa e afogada por nuvens controversas de um sopro que vinha do sul e na terra calmaria, assim como a terra molhada e os olhos que ali pertenciam anos e anos maculados.
Não era nada de se contestar toda a vibração tendenciosa que atraia todo e qualquer corpo para dentro desse poço escuro, a curiosidade de enxergar o quanto não sabemos sobre os que já se foram, os esquifes escondidos, saqueados e as tumbas escoriadas por unhas de outrora. O céu apenas dobrava seu olhos para mim, naquela noite onde a lua era uma soturna aliada desde o manto branco que envolvia as árvores até seu semblante agonizante.
Após entregar o óbolo ao porteiro de marfim adentrei ao caminho negro e baldio das intermediações e observei velas e quietude, o vento tomava força contra elas, mas resistiam a ponto de se restabelecerem facilmente. Minha intenção não era fazer parte destes aqui que jazem há anos ou há horas. Sim encontrar paz em meu espírito.
Julgo que estivera com a pele pálida como uma seda Indiana e pés firmes como de um cavalo forte. Sem vacilar aos que os outros temem e chamam de fantasmas. Fantasmagórico era o aspecto singular da capela, a cabo de paus envergados, telhado de telha fina, porta e janelas diluídas pelo tempo e a chuva. Sem vitrais ou maçanetas. Havia mais insetos e vermes do que um altar ou bancos, era uma capela esquecida, após a morte do coveiro, dissimulada pela população um suicídio sinistro, com o uso de ossos e crânio de sua antiga e finada amante, Julia, a chamavam.
De toda minha estupidez, a estapafúrdia idéia de me colocar perante ao doce local onde minha querida sobrinha descansava, fez-me questionar quantos dias passei sem a visitar e como ousei deixá-la a minha espera, estava tão negra a terra de tristeza que meus sapatos se adentraram a viscosidade úmida da terra e eu sabia que os olhos dela choravam. Querida e dócil sobrinha, morta aos treze, após beber eserina no chá misteriosamente, ocorreu no inverno de 1935, quando ainda havia em seu corpo um ventre juvenil e intacto.
Havia mais de uma década que a deixei enlodada naquele imundo terreno com pessoas que jamais vi e pássaros de olhares sugestivos. Esqueci quantos dias mais teria de tentar conhecê-la, e usar de minhas artimanhas para ganhar sua amizade, seu amor e carinho, como sinto saudades da minha jovem e loura Ana, que em seus pequenos dias já estava numa festa entre os burgueses da região e nos braços de minha querida Irmã.
A noite era tão longa e extensa como um livro maltrapido e inconstante de um mero escritor de botequim que ganhava sua vida com romances e contos feitos entre a volúpia feminina e o teores alcoólicos demasiados, próximos aos esgotos e subúrbios infestados de ratos e as boas intenções do mundo.
Era uma aposta feita com minha bengala de que seu vacilasse uma só vez ela poderia me asfixiar deixando sem ar e me entregando aquele local, se ocorresse de me descuidar e trepidar em uma vala aberta, caindo, eu de bruços e sustentado apenas por ela em meu pescoço a ponto que somente içado por dois ou mais homens escaparia de meu triste fim.
As respostas de meu inconsciente não entregavam para mim mesmo uma súmula de minhas arquitetadas possibilidades de me tornar um grande e superior homem, sabia que ali onde estava era um lugar de descanso não era de me surpreender se uma hora ou outra eu fosse tragado para o chão ao preço de reinar o silêncio pretendido. Minhas mãos estavam gélidas e passos vagarosos circulando o tempo todo ao pensar de como e quanto tempo despendia meu interesse alheio das convicções passadas de muitos que ali passaram.
Ao cabal ato abaixei a tentar sentir o cheiro das rosas murchas entregues ao lado de onde Ana jazia há vinte e quatro anos, sentir o frescor e o som sereno da terra, observar a umidade escorrendo entre os grãos da terra e saciar minha sede de estar próximo a minha amada sobrinha. Encostei meu rosto, a maça tocara o chão, frio e pastoso, fui adentrando as entranhas esquecidas e invadindo o que estava escondido ali, entre uma festa de algazarras e assovios em minha mente sobre o frescor que meu corpo absorvera veemente. Podia já sentir alguns ossos duros, mas não podia os vê-los, já estava estagnado e prostrado face a face ao crânio de Ana, se era realmente o preterido não sei, mas presumia pelos cálculos mentais. De longa e abrupta insistência do solo de me acolher, eu perdi a luta e abracei minha querida, onde com grande entusiasmo sempre quis estar.
Sem me dar conta, adormeci para o sono dos mortos com um traje elegante e caro, sem me questionar qual foi a intenção de assassinar minha querida que hoje me abraçara tão carinhosamente. E por qual motivo usei de minha sagacidade para atraí-la para casa dos fundos da mansão e convidá-la para um chá, se todos na casa já estavam dormindo e eu seminu esticara meu braço para acolhê-la. Hoje creio que ela tenha me acolhido em seu seio com toda e bela reciprocidade.
- M. Leite
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