O vale dos prazeres mortais:

Por Giomar Rodrigues

Os últimos raios do sol já haviam se dissipado há muitas horas já passadas, quando os gritos de euforia oriundos da alegria e embriaguez atravessavam o silêncio das ruas da cidade de Seldric, vindos diretamente da famosa taverna conhecida como o antro dos prazeres e dos ossos quebrados, também chamada pelo singelo nome de “Meio Cálice”.

Mas o barulho não era o que tornava os seus vizinhos preocupados, mas sim o fato de que na manhã seguinte um corpo certamente seria encontrado próximo dali. O cadáver seria vítima da simples selvageria humana, pura e cruel, vinda de uma discussão sem sentido e abraçada fortemente pelo álcool. Mas tudo isso apesar de ser assustador para se pensar. Não era nada mais que outra noite em Seldric.

Todavia, tanto o estabelecimento quanto sua violenta fama ainda era desconhecida para o viajante que estava amarrando a corda de seu cavalo em uma grande tora ao lado de fora da taverna. Seus passos lentos e firmes se aproximavam da entrada da grande porta de madeira que separava a animação do local da grande noite umbrosa.

Ao abrir a porta, a silhueta do viajante tornou-se a atração de todos os olhares que ali residiam, até que a iluminação da lua se esvaecesse e tornando-se rapidamente nítida para a figura musculosa e imponente que adentrava o local, fazendo com que sussurros sobre sua pessoa ressoassem sobre todo o ar do local durante alguns minutos.

O silencioso homem, não seria assim definido por todos, pois até mesmo um infante notaria pelas linhas serias de seu rosto que se tratava de viajante nórdico, ou seja, um guerreiro bárbaro das colinas congeladas do norte. Embora nenhum deles ainda soubesse que a sinistra figura chamava-se Dorth, o filho de Dutren. Um valente guerreiro frio como o gelo que carregava a fama de ser indestrutível em batalha, tal qual seu falecido pai.

Quando Dorth se aproximou do balcão pediu ao taberneiro, visivelmente incomodado pela sua presença, um grande cálice de hidromel e um bom pedaço de pão. A bebida desceu rapidamente por sua garganta, enquanto que o pão era meio velho e rançoso, embora ainda comestível. Em seguida deu um murro no balcão, abrindo a mão em seguida para deixar cair três moedas de prata.

- Dize-me homem, onde poderei encontrar prostitutas de qualidade em uma cidade com esta? – disse seriamente o bárbaro ao taverneiro.

- Viajante, esta cidade está repleta de meretrizes de todas as cores, mas nenhuma delas ousaria se deitar com um selvagem como você. Sugiro que parte desta para outras paragens, onde provavelmente será visto com outros olhos pelos seus semelhantes nórdicos. – respondeu o taverneiro rispidamente.

- Não me é necessário ser um cão citadino como o senhor para que eu compreenda seu insulto, e saiba que logo tornarei o rumo de minha viagem. Dessa forma pedirei apenas mais um cálice de hidromel e partirei em seguida. – disse o bárbaro colocando uma moeda sobre o balcão.

- Como desejar bárbaro... – retrucou o taverneiro com um sorriso no rosto, enquanto cuspia na bebida e a entregava dando uma violenta gargalhada.

- Acho que deixou cair algo de sua boca seu imbecil, talvez isto! – vociferou o bárbaro antes de acertar um soco certeiro na boca do taverneiro fazendo com que o mesmo caísse desmaiado no chão como se estivesse morto e afogado pelo sangue e os dentes que agora jaziam no fundo de sua garganta.

E em menos de um segundo muitos homens já estavam cercando o guerreiro com facas e punhais em busca de vingança pelo amigo. Foi assim que uma cruel briga se formava novamente e percorria os limites da taverna através das janelas do local em direção as ruas, agora manchadas por sangue. Tão rapidamente quanto a confusão começou, ela imediatamente teve fim, pois nenhum dos homens que ali estava era guerreiro ou páreo para tal.

Em meio à confusão Dorth percebeu que um sujeito jovem, gordo e uma estranha figura para tal espécie de local, permaneceu imóvel durante toda a chacina que absorvia o estabelecimento. O jovem levantou e aproximou-se cautelosamente do bárbaro que limpava o sangue de sua espada nas vestes de um cadáver.

- Com licença senhor, eu não pude deixar de notar que é um guerreiro formidável e que busca nesta noite os prazeres da carne. Eu acho que posso lhe ajudar nesse assunto. Meu nome é Ollevi e eu conheço um lugar onde o senhor encontrará o que deseja. – disse o estranho jovem que parecia tentar conquistar a confiança do guerreiro.

- Onde fica tal lugar? – questionou Dorth.

- Fica a duas milhas daqui, em um vale secreto ao sul próximo de Nagraf. Você reconhecerá o lugar correto quando vir um templo antigo e abandonado bem próximo do local. – disse Ollevi.

- E o que eu encontrarei neste lugar? – perguntou novamente o bárbaro meio suspeito.

- Lá encontrará uma mulher, seu nome é Engevina, com certeza a mulher mais bela de toda a terra. Ela poderá ser sua por uma noite apenas se assim desejar. – respondeu o jovem com os olhos ardentes em um tipo de euforia, talvez pela lembrança de tal mulher ou apenas pelo prazer que lhe traziam os relatos de velhas histórias.

- Se existe algo que sei desta vida é que todas as mulheres têm um preço. As prostitutas lhe custam dinheiro enquanto as outras mulheres nos custam nosso tempo, algo bem mais valioso. Então me diga qual o preço desta mulher? – perguntou o bárbaro meio duvidoso.

- Certamente que existe um preço, pois nada nesta vida pode ser de graça, a não ser que realmente valha o tempo da própria mulher se é que você compreende o que digo! – concluiu o jovem e permaneceu em silêncio com seus pensamentos mundanos.

- Certamente encontrarei o local, tão certo quanto os serviços dela me serão gratuitos. – murmurou o bárbaro montando em seu cavalo e partindo pela obscura noite deixando ao longe as luzes da taverna.

***

O Bárbaro cavalgou por algumas horas em meio à noite densa e lúgubre que cobria todo o trajeto em meio ao silêncio quase que completo da floresta até então desconhecida para ele. Talvez tenha se desviado um pouco de seu caminho o que acabou acarretando em um atraso imprevisto, fazendo com que encontrasse no horizonte o tal templo apenas nas primeiras horas do clarear da manhã seguinte. Assim que se aproximou com seu cavalo do antigo templo, sentiu uma estranha sensação de desconforto pela visão do local, pois se tratava de um templo de adoração a um deus monstruoso e abominável, coisa que nem para um bárbaro parecia algo aceitável como digno de veneração. A visão de tal besta fez com que um pensamento ou uma antiga lembrança lhe cortasse a mente para reviver um momento do passado onde seu pai lhe disse quando ele ainda era apenas uma criança que os deuses dos homens civilizados não passavam de uma abominação para toda a casta celeste, e que passaram de demônios temidos para deuses venerados apenas pela sua força e crueldade, mesmo que não fossem dotados da razão.

- De demônios para deuses? – se questionou o bárbaro enquanto sorria aliviado pelo templo estar em ruínas e não haver sinal algum de qualquer discípulo por décadas.

Mesmo mais aliviado ele atravessou o enorme monumento de pedras antigas com velhas inscrições estranhas com certa desconfiança para ver mais adiante uma pequena cachoeira que desembocava em um rio tão vasto quanto sua vista podia alcançar. Aproximou-se e desceu de seu cavalo para beber um pouco da água límpida que ali corria lentamente. A bebida saciou sua sede e pareceu revigorar as suas forças novamente, mas seus olhos insaturáveis perceberam que havia alguma coisa naquele rio e então recuou alguns passos e sacou a espada como que por reflexo e esperou pela saída da criatura da água. Ele sabia que era algo grande e vivo pelos movimentos estranhos na leve correnteza do rio, mas mesmo assim ficou perplexo ao notar que para seu assombro a figura que emergiu da água era de uma mulher. Não era uma mulher como qualquer outra, ele soube de imediato que era Engevina, tal qual uma ninfa ela era linda, sua pele de mármore refletia a luz do sol. Seus cabelos negros ondulados como um mar revolto de desejo envolvia seus olhos verdes como rubis, enquanto seus lábios carnudos e rosados parecia ser o mais perigoso portão para o mais perigoso dos paraísos, ainda assim o mais atrativo. Apenas a água envolvia seu corpo nu parecendo não ficar incomodada pela visão de sua nudez ela se aproximou lentamente deslizando os pés pequenos sobre a grama com toda sua sensualidade feminina, ficando a menos de um passo de Dorth.

- Por que a espada em seu punho guerreiro, por acaso deseja me ferir? – disse a mulher bem baixinho quase em seu ouvido, fazendo com que o bárbaro largasse a espada ao chão ainda perplexo pela formosura de sua anfitriã.

- Estou aqui para vê-la, vim de muito longe para encontrar-te, disseram-me que neste vale encontraria a mais bela das mulheres, embora agora me sinta um tanto quanto enganado, já que a lenda não faz justiça a sua verdadeira beleza. – disse o bárbaro com seu ar galanteador.

- E então vieste de tão longe apenas para ver-me não deseja ao menos tocar-me? – questionou a mulher com um ar malicioso.

- Desculpe se estou parecendo um jovem tolo e apaixonado, mas nunca havia mesmo em meus melhores sonhos imaginado tão rara flor... – disse Dorth enquanto envolvia Engevina em seus braços cheios de cicatrizes e velhas histórias ainda não contadas.

***

As horas passaram voando para os dois durante o encontro de seus corpos, acalentados pelo desejo vulgar e a luxúria quase que religiosa do ato sexual. Mas como se desperto de um belo sonho Dorth vestiu-se rapidamente ao final de tudo e sorrindo com a duvida sobre a história do pagamento que o jovem lhe contara na outra noite tratou de perguntar para a mulher ainda deitada sobre a grama como uma modelo esperando por seu artista.

- Agradeço pelos momentos de prazer que me proporcionou e desejo retribuir com uma quantia em pagamento, o que me diria quanto a isso? – disse o bárbaro fitando os olhos de rubi da ninfa pretensiosa.

- Esqueça disse meu amado, tu foste único para mim neste dia e assim desejo conservar em minha lembrança a sua pessoa. – respondeu a mulher.

- Fico contente que tenha gostado de minha companhia e agradeço-lhe profundamente, mas devo seguir viagem tão rápido quanto o vento. Então adeus! – despediu-se o guerreiro montando em seu cavalo e acenando já de costas para a bela mulher.

- Espere um momento meu amado! – gritou a mulher agora em pé e continuou. – Disse que guardaria sua pessoa em minha lembrança, pois tudo tem um preço seu bárbaro ignóbil! – concluiu a mulher com uma gargalhada sinistra.

No momento em que o bárbaro voltou seu olhar para a figura a suas costas percebeu que algo a mais estava na paisagem, era algo assustador, algo abominável e inumano. Logo atrás da mulher estava uma gigantesca criatura com tentáculos grossos como troncos de árvores, saindo do rio como um demônio que salta das profundezas do inferno em busca da mais agonizante carnificina. Ele tentou fugir, mas uma das patas de seu cavalo fora pega pela criatura, dessa forma saltou para longe enquanto via seu companheiro ser despedaçado em poucos segundos e devorado pela enorme boca que surgiu embaixo da besta com suas presas pontiagudas e apodrecidas.

Ele lamentou a perda do cavalo, mas certamente lamentaria mais perder sua própria vida para tal criatura e sabia que se fosse morrer naquele dia morreria como sempre viveu, como um verdadeiro guerreiro. Buscou a espada com uma das mãos e saltou em direção da fera bestial como um animal selvagem faria e golpeou um dos tentáculos esverdeados com toda a força e selvageria que possuía, embora para sua surpresa a criatura não sofreu dano algum, sua pele era grossa e parecia impenetrável. Ele recuou alguns passou e continuou se desviando dos ataques rápidos da mesma, pensando em um modo de derrotar esta coisa vinda de algum pesadelo. Mas tudo que ele tentava parecia não surtir efeito algum sobre fera e sua morte parecia cada vez mais algo inevitável. Com muita força arremessou um grande pedaço de uma pilastra do templo sobre a criatura e apesar dela emitir um som pela dor afligida, não a fez recuar ou cessar seus ataques.

Quando Dorth pegou sua espada no chão novamente sentiu que um dos tentáculos se enrolou em sua perna direita, embora tentasse se soltar de qualquer forma parecia impossível. Os tentáculos o envolveram de tal forma que tinha apenas o movimento do braço direito com sua espada. Segundos depois ouviu o som estridente da gargalhada da mulher quando estava a poucos metros da bocarra da besta. E sabendo que a morte não era o que lhe incomodava, mas a gargalhada que lhe assombraria mesmo no além, tomou uma decisão difícil e arremessou às cegas sua lâmina em direção do angustiante som e sentiu o silencio da morte tocar seus ouvidos. Sabia que havia sido abraçado pela morte ou assim pensou por um segundo antes de abrir os olhos.

A criatura que o prendia havia se transformado em pedra e começara a desmoronar, conseguindo assim sua liberdade. Viu a besta de pedra ser engolida pelo rio como um sonho desavisado para sumir de todo aquele cenário, embora ficasse a lembrança da bestialidade para sempre em seus pensamentos.

Ele se lembrou da mulher e questionou qual seria situação dela no momento, teria fugido ou estaria escondida? Sua visão ainda embaçada pelo ataque que sofreu fez com que demorasse a perceber a mulher caída próxima a escadaria do templo com sua espada cravada em seu peito, como cruz em um túmulo. Ao se aproximar percebeu que a corpo belo da jovem estava ainda em movimento, ainda havia vida nela, mas ao olhar atentamente para seu semblante notou uma transformação horrenda que acontecia, seu corpo estava a definhar instantaneamente, sua pele lisa dera lugar as rugas da idade e aos poucos sua respiração diminuiu até parar, fazendo com que sua forma física ficasse em um estado deplorável. O silêncio mortal do vale reinou novamente por alguns instantes enquanto o som do aço de sua espada cortou o ar antes de ser seguramente guardado em sua bainha.

O bárbaro se perguntou se o jovem da taverna teria tido o mesmo destino que a mulher e achou que deveria verificar apenas para que sua mente tivesse ao menos a ilusão de conformidade. Dessa forma seguiu sua viagem a pé retornando pelo mesmo trajeto que o trouxe para tal inferno, lembrando das histórias que outrora seu pai lhe contara.

- “De demônios temidos para deuses venerados apenas pela sua força e crueldade, mesmo que não fossem dotados da razão.” – murmurava o bárbaro perdido em seus próprios devaneios.

“Que tipo de pacto macabro a jovem teria feito com o demoníaco monstro em troca de sua juventude?” pensou novamente ao longo da caminhada que viria, ansiando apenas por um pouco de repouso e talvez uma bebida.

* FIM *

Giomar Rodrigues
Enviado por Giomar Rodrigues em 12/12/2011
Reeditado em 31/12/2011
Código do texto: T3384199
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