A INTOLERÂNCIA DOS TOLERANTES (O horror da vida real)
Nota:
Ao longo dos últimos dezoito meses tenho postado uma série de textos subtitulado “O Horror da Vida Real”. Neles tento ressaltar alguns lamentáveis aspectos de nossa existência enquanto humanos e ainda que, em sua maioria, sejam calcados em nossa realidade, talvez – quem sabe - alguns possam ter um apelo mais universal. Ainda que sejam – em sua essência - contos “realistas”, procuro evitar – como na maioria dos meus textos – estilo e abordagem direta e realista. Frequentemente recorro a fábulas, sonhos, fantasia, surrealismo, absurdismo etc. por crer em uma linguagem “indireta” como o modo de expressão mais adequado para alguns temas e idéias. “Felicidade é uma Cadela” foi o primeiro conto desta “série temática” e o primeiro em que percebi que algumas imagens e ideias podem servir como potentes símbolos para a condição humana. Se eu consegui transmitir minhas intenções, neste e outros textos, é com você leitor.
Obs: Crônica baseada - e inspirada - em um papo que eu tive com um brother cordelista e amigo de longa data.
A intolerância dos tolerantes
Por Ramon Bacelar
Em uma fria manhã de domingo – um domingo como outro qualquer -, durante uma missa como todas as outras, um som oco e repentino ecoou no recinto como um vago lamento. Absortos nas palavras do padre, os fiéis não perceberam que nos fundos, escorado na porta com uma garrafa de pinga na mão, um bêbado de cabeça baixa confessava a si próprio pecados que só ele sabia. Não se passou muito tempo antes que suas palavras ecoassem no púlpito; o padre continuou o discurso sem perceber que o maltrapilho - sonolento e bocejante - cambaleava pelo corredor em direção ao confessionário, porém antes de ultrapassar a quinta fileira de bancos, um fiel lhe aponta o dedo pedindo-o para abandonar o recinto; o maltrapilho coça a cabeça e responde serenamente:
-Se o meu Pai me deixa entrar e dormir em sua casa, quem é o senhor pra me colocar para fora.
Com estas palavras o pobre diabo estilhaça a garrafa, faz o nome do pai e despenca - mais uma vez - no abismo silencioso de mais um sono sem sonhos.
FIM