Os Alpinistas
 
            Eram montanhas. E havia também os penhascos e suas profundidades abismais. Tudo era vermelho, empoeirado. Durante o dia tínhamos o sol com o seu calor abrasador a nos castigar a ponto de bater um verdadeiro desespero de pensar naqueles abismos como ponto de saída. À noite vinha a tortura de um frio incansável. Fogueiras não eram o bastante. Dormíamos apinhados uns sobre os outros e nossas vestes, modernas e pesadas, não eram garantia suficiente de cobertura. Aqueles trajes, que nos salvavam durante a noite, pesavam durante o dia.
            Para onde olhávamos somente surgiam mais e mais montanhas. Suas grutas, por vezes, nos serviram de abrigo durante as gélidas noites. Pensei, um dia, em ficar ali para sempre, mas fui convidado a prosseguir ao amanhecer e o convite era irresistível. Não podíamos parar. Deter a jornada seria perecer e nossos instintos nos obrigavam a seguir adiante, fosse pelo que fosse. Cheguei a um ponto de cansaço que não sabia mais porque estava ali e nem quem era aquele grupo de sete pessoas e nem do meu nome tinha maior certeza.
            O certo é que devíamos prosseguir, andar, parar e nos alimentar com as sobras do que ainda tínhamos nas mochilas. O grupo sempre em silêncio. Entre o calor e o frio, com a chegada do inverno, os dias se transformaram em noites. A poeira virou gelo e o vermelho passou a um branco cansativo. Escalávamos, já sem forças, as encostas pontiagudas com nossas botas, cordas e picaretas. Certo era que tínhamos medo de pensar e de perguntar ao líder quando se findaria a jornada. Um dia tentei e ele me pegou pelo pescoço, com seus braços maçudos, suspendeu-me à beira de um abismo e bradou:
            - Quer saber por que estamos aqui? Você quer mesmo saber por que estamos aqui?
            Abaixo de mim havia o nada. Pelo menos não se podia ver nada, a não ser uma neblina que cobria o solo, ou o que deveria ser o solo. Nunca mais ousei dirigir-lhe a palavra. Apenas ordenava para subirmos, depois para descermos e íamos vencendo aquela cordilheira interminável. Apesar de tudo, comecei a marcar, na sola de minha bota, cada dia que passávamos. Algumas perguntas começaram a me inquietar. Percebi que quando acabava minha ração, pedia nova ao líder que delas dispunha. Sua mochila não era muito maior que a nossa e ele distribuía rações para todos, no entanto, o volume da mesma nunca se esvaía. Isso inquietou-me. Quem nos proveria quando tudo acabasse? Somente notei que não acabava. No solado contei uma semana, quinze dias, trinta e avançava.
            Outra inquietação: não importa o quanto escalássemos, a paisagem mudava pouco. Tinha agora a impressão nítida de que estávamos sempre na mesma montanha. Depois de algum tempo, notei que a contagem da minha bota sumia e devia zerar de novo, e de novo, e de novo. Acreditei que enlouquecia.
            Em uma manhã que se perde no tempo, dentro daquele inverno que agora era eterno, vimos algo que nos aterrou: uma série de corpos dispostos na montanha congelados pelo vento. Aqueles não tiveram melhor sorte, ou talvez tivessem. O guia ordenou que não olhássemos:
            - Nada podemos fazer. Retirar os corpos apenas nos consumiria as forças. Vamos em frente. Não olhem, não encarem.
            Quase todos foram obedientes. Deixei que se afastassem e fiquei por último fingindo ajeitar meu equipamento. Assim que se afastaram, aproximei-me de um dos corpos. Precisei escalar alguns metros para vê-lo melhor, visto o vento e nebulosidade formarem uma cortina ora tênue, ora densa. Aproximando-me, vi que suas botas, no solado, possuíam as mesmas marcas que eu fazia para não me esquecer da passagem do tempo. Forcei um pouco as vistas e reconheci, naquele rosto congelado, o reflexo das minhas feições.Veio então uma certeza que não queria ter. O frio não era mais da montanha, nem do clima, mas era uma geleira que crescia dentro de mim, consumindo-me, integrando-se ao meu ser e dando a ampla certeza de que jamais sairíamos dali...