Demônio
Eu estava de olhos abertos. Olhava fixamente uma mulher curvada sobre mim. Ela parecia furiosa. Eu não conseguia ouvi-la, só acompanhava os movimentos dos seus lábios. O som não chegava mais em mim. Meu corpo não se mexia. Nem minhas pálpebras. Entretanto, eu via. A mulher continuava em cima de mim berrando alguma coisa, que eu não conseguia decifrar. Eu estava deitado. Estava com muito frio. Muito frio! Senti meus músculos da perna direita tremerem. Espasmos. Eram os músculos da coxa. Minhas costas despregaram-se do chão, e minha cabeça continuou nele. Meu corpo se apoiava ao solo apenas pela minha nuca e pelos meus calcanhares. Eu formava um arco. Parecia tentar levitar. E agora meu corpo todo dançava alucinadamente. Rock in Roll. Convulsão. Durante o terremoto neurológico esclareci minhas dúvidas. Soube de tudo. Reconheci a mulher que me injuriava. Era Antônia. E suas palavras saiam de sua boca em letras garrafais. Uma por uma. E esmurravam meus ouvidos moucos. “EU TE ODEIO! MALDITO!”. Ela tinha razão para me odiar. As lembranças chegaram em mim quadro a quadro. Como num negativo fotográfico. Culpa. A culpa me inundou e me afoguei nela.
Era sábado de manhã e eu tinha que encontrá-la. Sem ela não conseguia viver. E com ela minha vida se arruinava. Paixão desmedida. Enlouquecedora. Vício.
Leonora, minha esposa, tentou evitar que eu a encontra-se, me vigiou durante três dias, então, no sábado, num vacilo dela, eu fugi. Fui ao encontro da outra e passamos o resto do dia juntos. Bebemos e curtimos juntos. Eu parecia Feliz. Parecia iluminado. Brilhante. Não estava. Ela me deixava inseguro, apesar de toda confiança que ela tentava me dar. Estava paranóico. Não confiava em ninguém. Acabei descobrindo sua traição. Ela mesma confessou. Ela tinha outro. E era ele quem ela amava. Eu era só mais um. Mais um iludido pelo seu corpo branco e sedutor. Era só mais um embriagado pelo seu cheiro suave e seu gosto amargo. Fiquei transtornado. Enlouquecido. Voltei pra casa desesperado. Embriagado. Possuído! Leonora estava no portão me esperando. Quando me avistou começou a me xingar. Disse que iria embora. Que queria o divórcio, que não suportava mais aquela vida. Eu não queria ser abandonado. Não podia ser. Não agora que tinha descoberto a traição da outra. Gritei pra ela que não daria divórcio algum. Ela teria que ficar ao meu lado. Para sempre! Ela esbravejou. Chamou-me de fraco. De vagabundo. Maníaco. Doente. Nesta hora. Tudo escureceu. Meu coração escureceu, e minhas faces enrubesceram. Encarei-a com os olhos injetados de ódio. Pupilas dilatadas. Esmurrei-a, sem dó. Ela caiu na porta da sala, me olhou assustada, e correu para dentro. Alcancei-a e a fiz tropeçar. Ela caiu de novo e bateu o rosto no taco amarronzado da casa, manchando-o de vermelho vivo. Aproveitei e chutei seu rosto violentamente, covardemente. Alguns dentes voaram. Chutei-a mais três vezes. Ela ficou desacordada. Fui até a cozinha peguei um martelo. Espatifei seu crânio. Eu chorava, urrava e martelava. Não via nada. Não sentia nada. Não percebi que um homem tinha entrado em minha casa. Era o vizinho da casa ao lado. Ele ouviu os gritos e veio verificar o que estava acontecendo. Ele chamou meu nome. Eu me virei e parti pra cima dele, com o martelo ensanguentado na mão. Ele pediu que eu ficasse calmo. Não o escutei. Continuei indo em sua direção. Ele estava armado. Esqueci que ele era policial. Foi um tiro só. No peito. Então eu tombei. O martelo também.
Este era o motivo de eu estar deitado sem poder me mexer. Este era o motivo de sentir tanto frio. Meu sangue se esvaia. Logo depois chegou Antônia, minha sogra. Ela morava a algumas casas dali. Quando viu o que fiz com sua filha ela voou sobre mim como uma ave carniceira.
Os espasmos aumentaram, minhas órbitas se reviravam e eu babava sangue. Subitamente, num estalo, meu corpo se acalmou. Meus olhos finalmente vedaram. Morri.
Minha alma foi despertada pelo bafo quente do lugar em que eu estava. Consegui abrir os olhos com muita dificuldade e vi. Minha amante ao lado do seu verdadeiro e único amor. Ao lado do seu mestre. Olhei-a de novo. Que vontade! Tão branquinha! Neste momento toda a culpa que eu sentia se dissipou. Só sentia fissura. Uma desesperadora fissura. Só queria cheirá-la de novo. Pela última vez. Sentir seu gosto entrando pelo meu nariz, escorregando dormentemente pela minha garganta e me alucinando. Nunca a provei novamente. Este foi meu castigo por toda a minha infernal eternidade.