Frederico e as almas penadas
Frederico não agüentava mais viver daquele jeito.
Todos os dias uma alma penada lhe vinha bater à porta para lhe pedir algo que a ajudasse a completar o percurso até o outro lado. Claro, Frederico diz isso metaforicamente, já que as almas penadas que lhe chegam todos os dias não batem à sua porta, sequer anunciam a sua chegada próxima.
Ao contrário do que Fred via nos filmes, as almas penadas não eram encantadoras ou interessantes, não guardavam segredos de Estado e não queriam ajudar um ente querido. Ao que parecia a ele, elas apenas queriam se livrar das culpas que os consumiam até mesmo depois da morte. Mães que queriam o perdão dos filhos abandonados; maridos das esposas traídas; empresários dos empregados explorados e até mesmo crianças de seus colegas que de alguma forma foram prejudicados em sua vida.
Frederico, sinceramente, estava se lixando.
Há cinco anos que era taxado de louco. Perdera a namorada Bete, depois o emprego de consultor financeiro, depois os companheiros de beberagem. Voltou a fumar e passou a tomar calmantes para apagar quando não estava suficientemente bêbado.
Não suportava mais acordar no meio da noite sobressaltado com uma presença sinistra ao seu lado, sentado na cama calmamente esperando pelo seu despertar, ou quase morrer de susto com uma aparição repentina no banheiro. Parecia a ele que era só se sentar na frente da televisão para assistir ao jogo de seu time para começarem a suplicar os seus préstimos e chorar seus arrependimentos no ouvido.
Foi então que Fred finalmente tomou uma decisão e procurou por um exorcista. Porém, exorcistas somente o fazem quando o próprio capeta toma conta do corpo do possuído.
Assim também com os espíritas quando a alma penada quer tomar o corpo físico.
Frederico só queria ficar em paz, foi então que viu o cartaz em um poste de iluminação pública:
"Mestre Zezinho do Além./Trago a pessoa amada em dois dias./Curo bico de papagaio e gagueira. Afasto mau-olhado. Expulso alma penada."
Frederico sorriu enquanto ligava para o mestre Zezinho e logo combinaram o horário em que ele iria à sua casa, bem com o material que precisaria ter consigo: pelos de gata preta no cio, terra de cemitério em noite de lua cheia, saliva de um vesgo, folhas de figueira velha, fumo de corda, sangue de galinha preta e cachaça.
Fred quase foi preso quando tentou, à força, extrair um pouco de saliva de um mendigo vesgo, causando grande alvoroço junto aos bancos da praça central mas acabou saindo satisfeito quando o homem cuspiu em seu braço esquerdo, sem saber que sua revolta havia ajudado ao seu incauto perseguidor.
Os outros materiais foram sendo encontrados aos poucos e não demandaram grande busca.
Os espíritos pareciam antever uma mudança brusca em suas (in)existências e tentaram atrapalhar os planos de Frederico, não o deixavam dormir à noite fazendo algazarra e derrubando copos pela casa, mas o rapaz estava resoluto.
Iria fazer o trabalho!
A noite combinada estava chuvosa e fria, uma grande ventania sacudia as copas da árvores das ruas, quebrando alguns galhos velhos que chegaram a danificar automóveis e foram os responsáveis pela interrupção da energia elétrica.
Frederico, no escuro, esperava pelo Mestre Zezinho enquanto ouvia murmúrios e choramingos:
- Não faça isso querido.. Não é boa coisa! – dizia uma voz feminina doce.
- Vai se arrepender, menino tolo! – esbravejava outra voz masculina grave e furiosa.
- Seu idiota! – chorava uma outra, infantil.
Fred ria.
E o Mestre chegou finalmente, trajado com sua roupa ritualística que parecia ter sido encomendada de uma loja de fantasias. Parecia bêbado também, com um forte hálito alcoólico e um pouco cambaleante.
Frederico torceu a boca, mas iria levar adiante a coisa toda.Não estava para brincadeira!
E foi então que o homem passou a desenhar no chão da sala e colocar os objetos e materiais trazidos por ambos, entoando uma canção inteligível que saía como grunhidos de sua garganta rouca e pigarrenta. Vez por outra estalava as articulações das costas, mãos e pés. Se virava todo de um lado para o outro e estremecia de vez quando com os olhos esbranquiçados, tomando cachaça e deixando que muito do líquido caísse à sua volta.
Frederico olhava impassível, ainda que somente vultos poderiam ser vistos a escuridão.
Acendeu as velas que estavam ao lado, mas a ventania não as deixava permanecer acesas e então percebeu que as vozes haviam desaparecido.
Fred, que estava preocupado, sorriu aliviado ao imaginar que aquela bobagem toda estava dando certo. Ia até falar para o homem, porém, não houve espaço para isso. Ele não parava seu ritual.
A voz do homem alternava em tons que pareciam cada vez mais medonhos e vez por outra ele gargalhava, algo arrepiante para o jovem que já começava a temer pelo que estava ocorrendo.
Algo estranho se desenrolava.
Frederico começou a ficar enjoado e ver muitos vultos negros voando à sua volta. Sentiu as mãos suarem e o corpo estremecer enquanto arrepios subiam pela coluna.
- Já chega, Mestre Zezinho! – conseguiu gritar.
Mas o Mestre Zezinho que estava na sua frente, estático, ofegante e babando enquanto ria desgraçadamente, já não era o mesmo. Agora era branco, frio e mórbido como um fantasma e trazia uma estaca em suas mãos. Fred olhou para a estaca, e não acreditou, mas o homem a enfiou em seu peito e gargalhou ainda mais alto.
Frederico caiu de joelhos no chão desenhado, sentiu o sangue escorrer pelo corpo e uma ardência desesperadora no local em que fora atingido.
De sua boca foi ouvido um grito de dor e espanto que acabou engasgado pelo sangue negro que tomava sua garganta. Sua pele se tornou purulenta enquanto suas unhas cresciam como as de um morto, e finalmente Frederico viu que as almas que o acompanhavam até então estavam fugindo de sua presença.
Frederico não pode acreditar no que o homem lhe havia feito. E o fitou com ódio.
Mas o homem voltara a ser como antes e apenas sorria.
- Você não disse que queria se livrar das almas, guri? Você se livrou. Mas agora você é meu e só vai embora quando eu mandar, ou melhor, quando eu ficar rico com os segredos que você vai me trazer.
Frederico teve vontade de chorar. Mas não pode.
Por fim observou seu corpo lânguido caído ao chão, envolto em uma poça de sangue, no centro de um círculo nefasto. Sentiu que não podia se afastar daquele homem e que também não poderia mais dominar seus atos.
Então olhou para a porta e viu o garoto que antes chorava, passar por ela com o horror estampado em seu rosto.
Frederico lamentou não ter dado ouvidos às almas. Olhou de volta para o feiticeiro e jurou que um dia iria se vingar.