Cabeças encolhidas
 
O grande avião estava mansamente encravado na areia. A água turva fazia pequenos redemoinhos em volta de suas asas, e as algas jogadas na praia teciam mortalhas esverdeadas em seu torno. Parecia um pássaro pré-histórico abatido. Um peixe marrom de dois metros assomou-se até a porta escancarada, cheirou, soltou borbulhas de ar e decepcionado fez meia volta e afundou de novo no mar, satisfeita a sua curiosidade.
Os dois netinhos de nove anos não olhavam mais boquiabertos o avião. Ficaram duas semanas com os olhos voltados para aquele gigantesco pássaro de metal cegando os olhos com sua cor prateada, agora cuidavam do troféu oferecido pelo avô, sentados junto ao mar, espantando os mosquitos impertinentes com tapas em seus rostos negros e brilhantes, mexendo com os pés a areia úmida, quente, que grudava em suas nádegas descobertas.
O avô, cinco metros adiante, de cócoras, manipulava outro troféu, os dedos ágeis, conscientes, donos da vontade, enfiando-se por todas as reentrâncias e tirando de seu interior todo o imprestável. Era como um artista, ali, imóvel, os braços parados, os dedos escarafunchando as entranhas do troféu. Um mosquito passeava por sua face com placidez, lambendo o suor ácido que escorria do cabelo grande, pixaim, deslizando pelo rosto com sinuosidade, escapando dos pelos duros, cinzentos e brilhantes, que brotavam aqui e ali. O sol açoitava a água, varava sua superfície, mordia as rochas, brilhava nas copas das árvores da selva brotando após a praia.
Um dos netinhos com muito brilho na testa suada, com uma argola no nariz parecendo ser uma aliança larga de ouro, chutou subitamente as costas do irmão gêmeo, recebendo o revide quase que instantaneamente. Engalfinharam-se rolando pela praia tendo como arma os fortes dentes de inacreditável brancura. O avô depositou cuidadosamente no chão o troféu inacabado, limpou no peito as mãos de nervuras e veias salientes que se agitavam a cada movimento, como se fossem cobras sob a pele, levantou-se e caminhou lentamente em direção aos meninos chutando a areia com displicência. Em sua língua rápida, parecendo que chicoteava o ar, perguntou o que estava acontecendo. O garotinho de argola no nariz limpou os olhos chorosos com o antebraço franzino:
– Ele roubou o meu troféu – lamuriou-se. O outro guri riu safadamente.
O velho, com uma agilidade de leopardo, arrebatou o troféu do menino e levou-o junto aos olhos, analisando criticamente a cabeça de mulher do tamanho de um punho fechado – gostava particularmente daquele trabalho por causa dos cabelos longos e louros. Alisou os cabelos cheios de sol com uma mão suave e experiente de escultor clássico, deslizou o dedo polegar pela face tostada – e entregou-a ao menino de argola no nariz. O outro garotinho perdeu o sorriso maroto e fitou o avô com raiva, levantou-se da areia e chutou a canela dura do velho. O avô, contraindo os músculos faciais onde saltaram os maxilares pontiagudos, apontou com o braço esticado o grande rochedo que saía do mar em diagonal, adentrando a selva. No rochedo, cintilando de luz solar, via-se as dezenove cabeças dependuras em tiras de couro ressecado. As cabeças continham em seu interior areia e ervas preparadas, encolhendo-se sem que a pele enrugasse.
– Pegue um daqueles – disse o velho.
– Quero esse – teimou o guri, apontando o troféu em poder do irmão.
O velho enfiou um dedo ainda sujo de ervas preparadas no nariz e coçou a cavidade lenta e prazerosamente, deixando na borda da narina uma mancha esverdeada, enquanto pensava.
– Se quiser, terá que pegar um daqueles – disse finalmente.
Os netinhos se entreolharam, raivosos. E o preterido saltou de surpresa sobre o irmão de argola no nariz, disposto a arrancar nacos de carne com seus dentes sadios. O velho separou-os com violentos safanões.
– Por que quer logo esse troféu? – indagou o avô.
O menino apontou os cabelos louros. O velho levantou os olhos para o rochedo, para a fila de cabeças encolhendo-se sob o sol forte – não havia nenhuma cabeça dourada. Lembrou-se, então, que alguns sobreviventes, embrenhados na floresta, eram louros.
– Vamos procurar um troféu igual pra você – disse.
Tirou dos ombros másculos o arco, e neste gesto e cipó cantou como uma corda de violino ao se ver livre do corpo. A flecha, embebeu-a no veneno que trazia dentro de um saquinho amarrado à cintura. Depois saíram em fila indiana. O avô caminhava ereto, as pernas de musculatura vigorosa com a flexibilidade de um atleta; o neto de argola no nariz ia logo atrás, já desencantado com o seu troféu louro, arrastando-o na areia pelos cabelos longos e abundantes; o último olhava o avô à frente e ria: achava graça no boné azul do piloto que o velho trazia no cocuruto de cabelos brancos e suados.


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Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 05/12/2011
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