O casarão

O velho casarão permanecia ali, imponente, mas abandonado há muito tempo. Contrastava com as construções modernas. Seu portão estava tão enferrujado quanto o corrimão que acompanhava a longa escadaria que dava acesso à sala de entrada que ficava no segundo andar.

Havia algo de sinistro e misterioso nele. Suas janelas de madeira sempre estavam fechadas e já mostravam sinais de podridão. Na fachada, uma data mostrava sua idade. Fora construído em 1932. Mas eu não tinha noção da data em que fora fechado. Na verdade, sempre me sentia desconfortável ao passar por ele e sempre evitava passar pela calçada onde ele repousava, guardando seus segredos.

Uma escola de informática se estabeleceu bem próximo do casarão e acabei tendo que fazer um curso de reciclagem e, consequentemente, eu tinha de passar toda noite defronte ao tal casarão.

Eu evitava olhá-lo, mas algo me fazia fixar os olhos nele. E percebia que não havia nada de estranho: ele estava lá, imóvel, escuro e perturbador.

Numa quinta-feira chuvosa, ao sair do curso, tive minha visão atraída por algo estranho e assustador. Uma luz fraca vinha da janela, que agora estava semi-aberta.

Olhei ao redor e notei que mais ninguém estava na rua, apenas eu. Tudo estava apagado, inclusive o prédio de onde eu acabara de sair após o curso.

Não conseguindo controlar meus passos, eu me aproximei do portão e ele se abriu, como se me esperasse.

Entrei. E, como se flutuasse, rapidamente me vi no topo da escada. Vi a porta aberta. Dentro estava parcialmente escuro, apenas uma fraca luz que parecia vir de uma vela ou lampião.

Entrei e estremeci ao ouvir a porta se fechando logo após minha passagem.

Na sala, alguns móveis cobertos por tecidos pareciam fantasmas. Eu me dirigi até a janela que vi da rua, e que estava semi-aberta. Olhei para fora.

Não acreditei no que vi. Tudo estava mudado. Era como se eu tivesse viajado no tempo. Uma paisagem do ano de 1940, aproximadamente.

Ouvi alguns gemidos assustadores. De dor, de angústia. Saí da sala e procurei encontrar a pessoa que emitia aqueles sons. Apesar do medo, comecei a percorrer a casa, escura e estranha.

Havia muitos cômodos, o casarão parecia ainda maior por dentro.

Entrei por um corredor, de onde se podiam ver várias portas em ambos os lados.

Uma delas estava aberta, deixando sair uma fraca luminosidade e também os sons que me assustaram.

Ao entrar, eu me deparei com uma cena que meus olhos nunca mais esqueceram.

Dois corpos pendiam pendurados a uma viga do telhado. Um casal. Suas roupas já estavam podres.

No canto do quarto uma garota sentada, abraçada aos joelhos, estava me olhando fixamente, com olhos que me causaram uma sensação de medo, de pavor e, ao mesmo tempo, de piedade.

Fiquei ali por alguns segundos, parado, tentando assimilar a cena. Ao me aproximar da garota notei que ela estava sentada numa poça de sangue. E tinha um cheiro horrível. Ela mantinha seu olhar fixo em mim, como se me hipnotizasse.

Gelei...

Antes que eu pudesse ter qualquer tipo de reação, além dos tremores que pareciam me atingir até os ossos, a garota se dobrou para frente e vomitou um jorro vermelho-vivo sobre o linóleo, engrossando a poça viscosa que a cercava.

Meus joelhos ameaçaram me derrubar, mas eu sabia que, caso me deixasse envolver pela atmosfera sobrenatural do casarão, de duas, uma: ou eu ficaria louco de pedra, ou eu iria morrer - ter um infarto, ou qualquer coisa que um homem da minha idade e da minha condição física tivesse, sob circunstâncias como essa que se apresentava.

Apesar do pavor que a cena me inspirava, havia também a impressão de que eu estava ali por algum motivo crucial. Afinal, eu fora atraído. E, como todo bom cristão, eu acreditava em Deus. No Diabo. E nas forças e coisas que habitam o véu entre o Céu e a Terra. Portanto, eu acreditava que havia uma razão para que eu estivesse presenciando aquele horror.

A garota terminou de expelir mais uma golfada sangrenta e, sem se dar ao trabalho de se limpar, firmou aquele olhar ambíguo na minha direção. Seu queixo branco – aliás, toda ela era tão branca quanto uma folha de papel -, manchado por trilhas de cor carmim, movia-se rapidamente, para cima e para baixo, formulando as palavras que penetraram na minha cabeça como tapas no meu rosto:

— Eles não aguentaram, não aguentaram e se mataram, mas não foi minha culpa. Eu disse que não era minha culpa, mas eles não acreditaram em mim e agora eu fico aqui, para sempre...

Ela soltou os joelhos, apoiou-se sobre as mãos e, dobrando o tronco para frente, despejou um rio fétido de sangue negro aos meus pés. Havia pedaços de carne se mexendo pelo meio, rastejando, feito lesmas gordas. Meu coração batia na garganta, tornando difícil respirar. A corda que prendia os suicidas balançava suavemente e enquanto a garota apontava para os dois, a face inchada e coberta de larvas do homem ficou bem diante dos meus olhos lacrimejantes.

Dei um passo para trás involuntariamente, escorreguei na poça de sangue e, ao cair, quebrei um dos pulsos. A dor me fez trincar os dentes, mas não foi tão forte quanto a vertigem que me dominou. Um toque frio no meu ombro e um bafo indescritível no lado do meu rosto, fizeram-me despencar numa espiral de imagens fugazes.

— A culpa não foi minha – ouvi a garota soluçar, levando-me à origem de toda a sua desgraça.

Minha cabeça começou a rodar. Vi luzes coloridas. Ouvi gritos e vozes se perdendo no ar. De repente senti que estava caindo num abismo sem fim. Até me estatelar no chão, frio e úmido. A escuridão era total, mas mesmo assim sentia uma presença a meu lado. Era ela, a garota do casarão.

Senti sua mão gelada pegando a minha e me puxando. Acompanhei. Andamos calados por um bom tempo até visualizarmos uma pequena luz fraca a uma certa distância.

Andamos mais um pouco até chegarmos na luz. Puder ver o que gostaria de não ter visto.

A garota era apenas restos de um corpo. Seu rosto desfigurado, sua carne caiam dos ossos. Ela estava morta há muito tempo.

A luz vinha de uma porta semi aberta. Entramos. Me apavorei ao notar que estávamos novamente no quarto do casarão. Porém, os corpos não mais estavam pendurados.

E a garota aos poucos foi voltando ao normal. Novamente reconheci a garota do quarto.

Ela me disse: Olha.

Obedeci e dirigi meu olhar para onde ela apontava. Para uma parede branca.

Imagens apareciam como se projetadas. Era uma casa, o casarão onde entrei, mas estava bem mais conservado.

Para meu espanto, me vi entrando em um quarto e minha esposa estava comigo.

A garota insistia em dizer que não teve culpa.

As imagens se embaralharam, uma confusão em minha mente.

Tive medo. Vi nesse instante a garota entrando também no quarto, mas junto dela um vulto seguia.

Ela sorria, mas u sorriso assustador, demoníaco, perverso e frio.

Minha esposa se agarrou em mim. O vulto era o demo. A garota era minha filha.

Em que época? Há muito tempo.

Nas imagens projetadas na parede pude ver o desespero estampado em meu rosto e de minha esposa.

A garota veio até nós, uma corda pendeu das vigas do telhado. Ficamos ali imóveis.

Sentimos ela colocando a corda em nossos pescoços mas nada pudemos fazer.

O vulto negro tinha os olhos vermelhos ficou ali vendo tudo.

Senti o nó apertando minha garganta. O ar ficando escasso. O fim. Olhei para minha esposa e vi que já estava morta.

A garota se encolheu num canto da cômodo e ficou ali olhando.

Eu não tive culpa. Foi ele. Ele me prometeu muitas coisas e disse que vocês iriam atrapalhar tudo.

As imagens foram ficando fracas até desaparecerem.

Eu estava molhado de suor e tremendo. Olhei para a garota, ali no canto chorando. Eu não tive culpa, ela repetia.

Ela estava morta, estava no inferno. Senti que queria que a perdoasse. Ou nunca sairia de lá.

Fechei os olhos e desejei muito nunca ter olhado para o casarão.

Já não sabia mais se estava vivo ou morto. O que era real e o que era pesadelo.

Ela olhou dentro de meus olhos, puder ver seus olhos vermelhos, mas não eram de chorar, eram de maldade.

Eu não tive culpa. Não tive. Foi ele.

Nesse instante pude ver o vulto se aproximando e ficando ao lado dela. Ela era dele agora.

Eu não podia fazer nada.

Fechei os olhos e comecei a repetir para mim mesmo que estava vivo.

Puder ouvir a garota gritando, agora com ódio e com a voz rouca e animalesca.

Eu não tive culpa. Eu não tive......

Antes que ela terminasse a frase gritei ainda de olhos fechados:

Teve culpa sim, você é a culpada, não te perdôo. Quero minha vida de volta.

Volte para o inferno que é o seu lugar. Você quis assim. Você fez um acordo. Cumpra sua parte.

Ela urrava com ódio. Não tive culpaaaaa.

Tudo ficou escuro. Me senti caindo novamente. Gritos, vozes, choro, ranger de dentes...

Quando voltei a minha realidade estava sentado em um banco em uma praça, do outro lado da rua, em frente ao casarão. Estava novo como se estivesse recém construído. Da sacada uma linda mulher me acenou com uma criança nos braços. Minha esposa e minha filha.

Eu segurava um jornal nas mãos. Olhei para a data. 01 de Dezembro de 1932.

Fim

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Conto escrito em parceria com Andhromeda.

Valeu aí. Fizemos um bom trabalho. Eu achei.

Paulo Sutto
Enviado por Paulo Sutto em 02/12/2011
Reeditado em 02/12/2011
Código do texto: T3368728
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