O Encontro com os Üdernostd - II - A Fuga
O Encontro com os Üdernostd – Parte II
A Fuga
O. S. Berquó
Os primeiros raios de sol despontaram em um horizonte estranho. Como uma aquarela somente em tons azuis, com o gelo celeste das montanhas quase se fundindo às formações das nuvens que adornavam o amanhecer, a paisagem não parecia real. O vento era fraco e gelado. Um silêncio tumular invadia cada canto do grande casarão, com cheiro de mofo e sabor de morte. Will abriu os olhos e ficou ofuscado pela claridade. Alguns instantes de desorientação o apartaram da dura realidade. Mas foram breves. O latejar de sua perna parcialmente amputada, aliado ao forte cheiro de sangue pútrido o trouxe de volta ao casarão. Aquela construção, pendurada num dos pontos mais altos do fiorde sul, fora seu abrigo e sua masmorra. Lembrou-se de Brian. Imagens da noite anterior vieram a sua mente despejando uma torrente de desespero e medo: as criaturas esquálidas, macilentas, horrendas, o ataque ao seu amigo Brian, devorado vivo e a amputação de parte de sua perna cobravam seu preço. As lágrimas e os tremores não foram contidos. Seu queixo batia com tanta violência que quase fraturava os dentes mais salientes. Foram momentos de desespero. Enquanto aquele filme grotesco da noite terrível passava por sua mente atordoada, ele maldizia o instante em que resolveram apontar a proa do barco para os mares do norte. Os tremores diminuíram com o passar do tempo. “Tenho que me controlar”, pensou Will. Respirou fundo. Minutos depois, mais calmo e se sentindo protegido pela claridade do dia, o jovem navegador inglês começou a planejar sua fuga. Ficara evidente no ataque da noite anterior que as criaturas só saiam na escuridão. Estariam, portanto, naquele momento, escondidos em alguma caverna escura e fétida. Isto lhe daria um bom tempo para a fuga.
Com muito esforço e dor, levantou o corpo, se apoiando no parapeito da janela, para espreitar o lado de fora. Nada se movia. Tudo continuava quieto. Esticou-se mais um pouco, queria ver por cima da borda do barranco, de modo a enxergar o Archibald. O veleiro branco ainda estava lá, a sua espera, movendo-se lentamente ao sabor das ondas, como um amigo que aguarda ansioso por algum retorno. Mais um sopro de esperança invadiu seu coração. Os tremores diminuíram, mas não cessaram. O caminho até o barco seria longo e tortuoso. A encosta íngreme parecia um precipício intransponível para alguém em seu estado. Mas ficar ali seria a morte certa. Os marinheiros do vilarejo não viriam, ele sabia, embora, em seu íntimo, clamasse por ajuda.
A manhã avançava célere, indiferente as dificuldades do rapaz ferido. Will percebeu que precisava se apressar. A luz do dia era sua única proteção contra aqueles demônios sanguinários. Reuniu os pertences necessários e os acomodou na mochila. Atenção especial foi dispensada a faca e a morfina. Em breve teria que se aplicar uma nova dose. A primeira etapa parecia ser a mais fácil. Arrastar-se escadas abaixo não era um obstáculo tão difícil.
Embora com dor e ainda perdendo algum sangue, a descida até o salão não demorou além de alguns minutos. Mais um pouco de esforço e chegou até a porta de entrada. Sentiu uma alegria estranha quando atingiu o lado de fora e se deparou com o brilho do sol refletido na colina nevada e recebeu o vento gelado a acariciar-lhe o rosto. Era como um carinho, um sopro de vida. A esperança o impulsionava.
Revigorado pela beleza da paisagem, Will se arrastou até o início das escadas de acesso ao alpendre do casarão. Apenas cinco degraus de madeira o separavam da saída definitiva daquela casa dos horrores. Antes de descer, porém, calculou a distância a ser vencida até a borda do topo do fiorde. Uns cento e cinqüenta metros os separavam. Imaginou precisar de um pouco mais de uma hora para atingir seu primeiro objetivo. Daquele ponto até o mar, mais uns quatrocentos metros, muito íngremes. Seriam, então, no mínimo umas quatro horas pendurado nos paredões de rocha gelada. Chegaria até lá no meio da tarde. Tempo suficiente, portanto, para estar no barco antes que a escuridão da noite despertasse as criaturas. Inspirou fundo e se ergueu com a força dos braços e do entusiasmo. Deu um pequeno impulso para frente e deixou o corpo cair sobre o primeiro degrau. Um rangido forte seguido de uma vibração estranha denunciou a podridão da madeira. A escada começou a ceder. Will, em desespero, tentou se agarrar ao corrimão... Mas ele ruiu junto com a estrutura. Na queda, uma grossa lasca de madeira úmida e podre perfurou as bandagens que protegiam o ferimento da perna amputada. Um grito de agonia ecoou pelas encostas geladas. A seguir, o silêncio tomou conta do lugar.
Will despertou com o corpo molhado de suor e com tremores convulsivos. A dor era quase insuportável. Sangue brotava das bandagens atravessadas pela lasca de madeira. Com as mãos trêmulas, ele tateou dentro da mochila até encontrar a seringa de morfina. Cravou a agulha em sua perna ferida e injetou o líquido salvador. Uma sensação quente foi, rapidamente, aliviando o sofrimento. Sem demora, apertou o torniquete e puxou a pequena lança cravada em sua ferida. A dor foi suportável, mas cobrou alguns minutos para que ele pudesse se recompor. Livre da dor e com os tremores sob controle olhou para o caminho que teria que seguir. Foi aí, então, que percebeu o sol.
O coração de Will disparou quando ele se deu conta de que seu desmaio tinha roubado horas de sua fuga. O sol parecia indicar meio da tarde. O desespero invadiu o jovem marinheiro. Um choro incontrolável o dominou enquanto se arrastava rumo à borda do fiorde. Soluços que quase o engasgavam atrapalhavam a marcha e lhe surrupiavam as forças. De vez em quando, Will olhava para trás. A visão do rastro de sangue que ele mesmo deixava, tirava ainda mais suas esperanças. Aquelas coisas eram atraídas pelo sangue e ele próprio estava indicando o caminho. Pensou em desistir.
O sol estava se aproximando do pico de uma das montanhas mais altas. Em breve começaria a escurecer. A borda já não estava tão longe. Will precisava chegar até lá antes de a noite cair. Sabia que não conseguiria chegar ao barco, mas precisava chegar até a borda do penhasco assim mesmo. Seu objetivo tinha mudado. Ele só não queria ser devorado vivo por aqueles monstros disformes, como tinha acontecido com Brian.
O sol já brilhava fraco quando Will chegou até a beira do penhasco, decidido. Seu coração, porém, quase parou quando ele olhou para baixo. Os tons avermelhados do final de tarde tingiam o mar da enseada e o Archibald o aguardava, sereno. Mais a direita, um veleiro de três mastros começava a recolher velas indo na direção de seu barquinho branco. Ele ria e chorava. Acenou, tentou gritar. Sua garganta e seu estado físico, contudo, não permitiram que fosse ouvido. Com o peito cheio de entusiasmo e esperança renovada, ele começou a descida. Não haveria tempo de chegar até lá antes de escurecer. Porém, caso os marinheiros resolvessem procurá-los, ele já estaria no meio do caminho. Era uma chance. Com a perna anestesiada, ele se pôs a descer as paredes de rocha escura. Por vezes, chegava a se deixar rolar quando via alguma saliência que apararia sua queda. Ganhou muitos metros, rapidamente. Parava de quando em quando para ver se seus salvadores estavam subindo a montanha, vindo ao seu encontro. Ainda estavam no barco. Continuou a descida. Quando parou novamente para tomar fôlego, pode ver, satisfeito, que os ocupantes do veleiro, finalmente, abordaram o Archibald. Em poucos minutos eles veriam que o barco estava sem os tripulantes. Logo estariam a caminho. Um sorriso se estampou no rosto de Will, que retomou a descida.
O sol acabou por se esconder atrás da montanha a nordeste. Apenas a luminosidade que vinha além das cordilheiras menores chegava até a enseada. O mar começou a ficar negro. Will parou para descansar e ver se eles já estavam subindo. Ainda não. A movimentação era estranha. O jovem marinheiro em fuga teve que apertar os olhos para vencer a falta de claridade e perceber o que estava acontecendo. Os tripulantes do veleiro estavam saqueando o Archibald. Coisas estavam sendo retiradas de seu barco e levadas para a nau dos piratas. Will não podia acreditar no que estava acontecendo.
Uivos foram ouvidos. Urros terríveis ecoavam pelo fiorde, vindos do alto da montanha. Ele olhou ao redor com as lágrimas rolando pelo seu rosto. Seu corpo estava exausto e seu espírito, desesperado. Gritou. Gritou tudo o que podia gritar. Os homens que estavam no barco ouviram os berros de Will e a movimentação se intensificou. A escuridão já tomava conta do lugar, nada se podia ver. Will estava decidido. Quieto, já sem lágrimas ou lamentos, inclinou seu corpo para frente e se deixou cair no vazio.
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Brian dizia alguma coisa. Ria, falava bobagens e voltava a dar gargalhadas. “Deve estar bêbado”, pensou Will. Seus olhos começaram a piscar. Não conseguia fixar imagens, estava ofuscado pela claridade. Ouviu uma gritaria. Aos poucos foi se adaptando a luminosidade. Quando, finalmente, conseguiu abrir os olhos, viu vários homens barbados olhando para ele. Um DVD era exibido na TV com imagens antigas do Archibald. Tentou falar, mas foi impedido. Ouviu um dos nórdicos balbuciar alguma coisa como “não fale”. Will não entendia o que estava acontecendo. Quando, horas antes, ainda no meio do paredão do fiorde, se deixou cair, tinha certeza que “acordaria morto”. Mas nenhum daqueles branquelos que acabara de ver se parecia com Thor ou Odin, portanto, devia estar vivo. Um suspiro de alívio antecedeu o sono profundo.
Dois dias depois, Will começava a escrever um novo diário. As conversas entrecortadas com os tripulantes foram suficientemente esclarecedoras para que ele entendesse o que tinha acontecido. Não era um saque o que os pescadores faziam em seu veleiro. Eles estavam recolhendo pertences para encaminhar aos familiares, já que imaginavam o pior, e usariam o barco como armadilha para os Üdernostd. Após ouvirem os uivos das criaturas e os gritos que vieram a seguir, perceberam que algo rolou pela encosta nevada e acabou por cair no mar. Em uma operação rápida o resgate foi efetuado. O Archibald, seu querido veleiro branco, acabou por ser explodido assim que os pescadores perceberam que algumas criaturas entraram na embarcação a procura de sangue. Saber deste fato ainda era um pouco dolorido, mas pelo menos servia para aplacar um pouco a dor e a raiva que ele sentia pela atrocidade que acontecera com Brian.
A noite começava a escurecer as águas frias do Mar do Norte e o tenebroso Terceiro Fiorde Sul tinha ficado para trás. Will fechou o diário com um ponto de interrogação. Não sabia se voltaria um dia para vingar a morte de seu melhor amigo ou se conseguiria esquecer a pior viagem de férias da sua vida.