A BRUXINHA
Por Ramon Bacelar
Não era o cumprimento da promessa que intrigava vovó Joana, muito menos o beijo carinhoso com que o rabugento Noel surpreendeu a netinha antes de presentear-lhe com uma pesada caixa adornada com caveiras; mas o tom de voz com que lhe desejou feliz aniversário e o modo como o fez.
Vovô Noel, O Cético; vovô Noel O Incrédulo; vovô Noel O Descrente: Feliz aniversário bruxinha, fique com... Deus.
Estaria vovô Noel, como picolé no sol, amolecendo com o tempo?
***
Keilinha não se conteve de felicidade quando rasgou o papel e retirou da caixa um kit de bruxa completinho com chapéu de cone, caldeirão, varinha e livro de feitiço. Vovô Noel de olhos marejados, sorria, sorria, sorria.
— O que está acontecendo com você teimosão, agora deu para ficar molão chorando pelos cantos? -suspirou vovó Joana com olhos incrédulos.
Vovô não retorquiu, riu.
***
Um sorriso de intensa satisfação e felicidade retornou a Keilinha quando se olhou no espelho: bruxinha, bruxinha, chapéu de cone e fitinha, três numeruzinhos, toque no vidro com a varinha.
Sorrindo de encanto pelos cantos, abriu o pesado volume, mas foi engolfada por uma camada de poeira que pairava nas páginas como espectros de pó. Sentou-se e com dedos ansiosos sentiu a textura da capa de couro e correu o indicador pelo relevo das letras douradas e lombada arredondada; levantou-se com um misto de gratidão e decepção e falou para si mesma: “Vovô... aaaahh vovô, pão duro como sempre”.
Em meio a espirros e coff-coffs percorreu as páginas com olhos arregalados: examinou, consultou, vasculhou, mas só encontrou uma série de palavras rotineiras e tediosas que mudou o seu humor, intimidou a imaginação: “Aaaahh vovô...”.
— KEILINHAAA!!!!! Me ajuda com a água aqui embaixo!- berrou vovó Joana.
***
COMO ARRANJAR UM NAMORADO
COMO CURAR FRIEIRA
COMO EMAGRECER
COMO...
Examinava o índice enquanto aguardava vovó Joana na cozinha: olhou, buscou, duvidou, não encontrou. Persistiu, insistiu, não desistiu... O dedo apontou, a testa suou, o olho brilhou: Riu.
***
Splasshhh, Splasshhh:
Absorta em promessas de infindáveis travessuras e encantos duradouros, Keilinha jogava a água do caldeirãozinho enquanto vovó ensaboava e esfregava a vidraça da divisória que dava para a sala; do outro lado, vovô Noel, sorrindo para ela, inquietava-se na poltrona com movimentos bruscos e ansiosos.
Splasshhh, Splasshhh:
Abstraída nas ondulações da vidraça, Keilinha, fascinada, contemplava as distorções excêntricas na superfície vitrificada.
Splasshhh, Splasshhh:
Cadeiras ovaladas, carpetes irregulares, espelhos ondulantes: a bruxinha se perdia no delirante universo de possibilidades à sua frente.
— Keilinha mais água!
Splasshhh, Splasshhh:
Paredes pulsantes, lâmpadas obesas, gotas mutantes.
Splasshhh:
Caqueiros transmutados em jardins irregulares, flores gotejantes, espinhos gigantes.
Splasshhh:
Quadros duplicados, superfícies espelhadas, cantos arredondados.
Splasshhh:
Aquários triangulares, peixes tentaculares.
— IUUHÚÚÚÚÚÚÚ!!!! - a bruxinha ardia de felicidade, pulsava de encanto - OBÁÁÁÁ!!!!
Splasshhh:
Esferas quadrangulares, cores amalgamadas, junções desencontradas.
Splasshhh:
Cruzes fragmentadas, fins inacabados, frestas alargadas: sorrisos...sorrisos...sorri...
Por um instante a vidraça vitrificou as retinas de Keilinha com a figura ondulante do velhote encarando-a com olhos de bolha de sabão, queixo de espuma e uma caricatura de boca como um borrão negro do nariz às orelhas. Menos vovô Noel que um ogro obeso, um Buda desconexo de sorriso ardiloso e demoníaco.
Splasshhh:
Pegou o caldeirão no mesmo instante que um zumbido semelhante ao esguicho de um gato estrangulado invadiu sua audição.
Splasshhh:
— Chega de água amorzinho.
Splasshhh, Splasshhh:
Continuou Keilinha, contemplando o colorido, embebendo o surreal (hihihihi, huhuhuhu!); outro esguicho de risadas nervosas invadiu sua audição; retornou à vidraça e achou vislumbrar um distorcido e abismal funil de sucção no lugar da boca do vovô: Hihihihi, huhuhuhu!!!!!
Splasshhh, Splasshhh:
— Keilinha chega de água, não ouviu?
Splasshhh, Splasshhh, Splasshhh:
A risada pertubava, o sorriso deformava e ela, hipnotizada que estava no universo febril de indefinições e metamorfoses, mergulhava nas ondulações com inefável felicidade: queria amalgamar-se a absurdos permanentes, irrealidades dissolventes.
Splasshhh:
— Aaaaahhh!!!!
O grito da bruxinha retornou à vidraça como a personificação do puro horror: O funil, agora uma fissura abismal entrecortada por lâminas brilhantes e ossudas, petrificou os seus sentidos, no mesmo instante que uma risada cavernosa atravessou a divisória. O ogro estrebuchava e berrava com as mãos na barriga, era como se sua personalidade viesse à tona, reforçada e intensificada: Duvidando, chacotando, zombando, gargalhando de tudo e todos:
Splasshhh:
— HIHIHIHHIHI!! HEHEHEHE!!
Splasshhh (Chega de água amorzinho!!!)
Keilinha suava, vovô gozava.
— HÚHÚHÚ!!!!!!
Splasshhh:
Keilinha tremia, vovô ria.
Ela berrava (Aaaahhhhh!!!!), vovô chacotava: HUHUHUHUHUUUAAHAHAAA!!!
Splasshhh:
Inchava.
— AHAHAHAHAAHAHAH!!!!!!
Deformava.
— AHAHAHAHAAHAHAHAHAHAH!!!!!!!!!!!! (Splasshhh)
Amalgamava.
— AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAAHAHAHAHAHAH!!!!!
A água esparramava, a chacota aumentava, a risada gargalhava.
Splasshhh, Splasshhh, Splasshhh (Chega de águaaaaaa!!!).
Silêncio.
Com o último berro de vovó Joana, a bruxinha foi arremessada do seu estado catatônico ao mesmo tempo em que a varinha mágica do caldeirão tocou a vidraça; do outro lado, com as formas da sala solidificando enquanto a água da vidraça escasseava, filetes de sangue escorriam das orelhas e tocavam as bochechas de um certo teimosão e, por um curioso capricho do destino, ao lado da bruxinha, a página 666 do livro de feitiços anunciava: Como curar um cético.
FIM