O Reflexo da Criatura
O Reflexo da Criatura
Os músculos tensos, de frio e de medo, começavam a tremer. Daniel quase não respirava. Agarrado fortemente aos grossos galhos da figueira centenária assistia, apavorado, ao desfile gracioso da criatura que sempre acreditara ser fruto do imaginário popular. Seu suor era gelado, e sua mente viajava entre o pavor do momento e a dúvida sobre o destino de Luciana. Não sabia o que pensar, mas nem de longe conseguiria prever o que veria a seguir.
No início, tudo correu bem. Chegaram ao hotel no horário, embora a longa viagem tenha sido um pouco cansativa. Devidamente instalados, os estudantes prepararam seu material para o trabalho de campo que começaria no dia seguinte. Faziam parte da turma do quarto semestre de Biologia da Universidade Federal e, cumprindo parte do currículo, começavam mais uma etapa de trabalho prático, exigido pela instituição de ensino. Não era, na verdade, nenhum sacrifício para os estudantes. Muito ao contrário, eles aproveitavam cada momento deste tipo de atividade para diversão. E flertar fazia parte do negócio, assim como estudar, é claro.
O alvo da pesquisa era um anfíbio da espécie Rhinella Marina, um sapo de grandes dimensões e comum desde o Rio Grande de Sul até a América do Norte. No Brasil, este espécime sempre foi mais conhecido como Sapo-cururu. Porém, sua ocorrência na região da campanha, perto do Uruguai, poderia ser considerada rara. Esta circunstância era, então, o objeto do estudo. Como a observação só poderia ser realizada a noite, os estudantes passaram o dia planejando a atividade. Seria feita uma divisão em grupos que explorariam pontos diferentes, as margens do rio Ibirapuitã. Chegava o momento de escolher os parceiros. Normalmente, esta era a fase preferida pelos exploradores. Olhares e sorrisos se cruzavam, denunciando o interesse. Nem sempre no sapo.
Daniel percebeu o olhar de Luciana enquanto arrumava sua mochila. Não se lembrava de tê-la visto antes. Porém, isto não importava. Aliás, ficava melhor ainda. A menina não se fez de rogada e foi ajudá-lo com os apetrechos. O rapaz ficou maravilhado com a beleza e satisfeito com o desprendimento da garota. “Promete”, pensou Daniel. Ele não estava acostumado a este tipo de atitude. Tímido, o ex-seminarista ainda se sentia retraído nos assuntos da sedução. Na confusão de idas e vindas das muitas pessoas que integravam o grupo, o futuro biólogo perdeu a parceira de vista. Sua apreensão não durou muito. Quando a noite chegou, perto da hora da partida, Luciana reapareceu.
Assim que os estudantes chegaram à beira do rio, houve a separação. Os vários grupos tomaram caminhos diferentes, devidamente alertados pelos monitores para não se afastarem demais uns dos outros. A noite estava escura e o céu, encoberto. Luciana levava seu parceiro pela mão. Ele não prestava atenção à escuridão da noite, ao caminho tortuoso ou a distância que já estavam das outras duplas. A maciez e o calor da mão de Luciana pareciam encantar o ex-candidato a padre. Perto da grande figueira, junto a uma das muitas curvas do rio, a moça largou a mão de Daniel e foi até a água. A escuridão escondia os movimentos de Luciana, mas Daniel percebeu, pelo ruído, que ela entrara rio. Ele, preocupado, apontou o facho de sua lanterna na direção do som. A visão revelada pela luz fraca deixou o rapaz boquiaberto. Luciana estava em pé, com a água pelos joelhos, e inteiramente nua.
As horas passavam céleres. Vários dos grupos de pesquisa voltavam ao local de reencontro. O coaxar vigoroso do Cururu facilitara o trabalho e pouco restava a fazer. Algum tempo depois, os coordenadores deram o sinal do encerramento das atividades. A monitoria, porém, quando fez a chamada de verificação, percebeu que não estavam todos lá. Buscas foram organizadas. Grupos saíram em diversas direções, mas não tiveram sorte. Apreensivos, os organizadores resolveram voltar para a cidade em busca de ajuda.
A primeira reação de Daniel foi abaixar sua lanterna para preservar a intimidade da moça. Mas, logo a seguir, ele ouviu a voz delicada de Luciana chamando pelo seu nome. Era como se fosse um canto, uma melodia mágica. Daniel iluminou novamente o corpo de sua colega. Sua bela imagem, refletida nas águas calmas do rio, emprestava um ar romântico ao momento. Por instantes, ficou apenas olhando, admirando a beleza desinibida e sedutora. Um novo chamado tirou-o daquele semi transe. Daniel atendeu ao chamado. Em pouco tempo, os dois estavam juntos, como se fossem apenas um.
No hotel que abrigava o grupo de estudantes e monitores, o clima era tenso. Esperavam a chegada das autoridades. Quanto antes começasse as buscas, maiores seriam as chances de sucesso, tinham certeza. O temor maior dos organizadores era a probabilidade de chuva. Caso o tempo piorasse, menores seriam as possibilidades de início dos trabalhos de resgate.
Daniel estava em êxtase até sentir o corpo de Luciana amolecer. Era como se a moça estivesse desmaiando. Sem entender o que estava acontecendo, ele, então, carregou-a até a margem. Em desespero, olhou em todas as direções em busca dos colegas, de alguma ajuda. A escuridão era total. Não havia sinal de vida pelas redondezas. Daniel, sem saber o que fazer, resolveu aquecer Luciana. Aos poucos ela foi voltando a si e assim que ficou melhor, eles se colocaram em marcha, em busca de abrigo. O vento aumentava, anunciando a chuva que se aproximava.
Foi uma caminhada penosa. Conseguiram chegar a uma casa de fazenda pouco depois das duas horas da madrugada. A escuridão da noite sem luar trouxe muitas formas e vultos assustadores aos olhos do jovem casal durante o caminho. Uma chuva fininha e gelada começava a cair. Latidos de vários cães assustaram os caminhantes e alertaram os moradores, de modo que não foi preciso bater à porta. Um senhor de bigodes grossos e grisalhos abriu o postigo de vitral colorido, com um lampião a querosene na mão. Luciana, ainda fraca e com medo, se achegou mais um pouco.
- Boa noite, senhor! – Disse Daniel, com voz firme. – Desculpe incomodar a essa hora da noite. Estamos caminhando há algum tempo e estamos perdidos. O senhor poderia nos ajudar?
A pergunta de Daniel saiu em meio a lábios apertados de tensão e expectativa. O vento começava a soprar com mais força, o frio se intensificava. Com olhar desconfiado, o velho gaúcho ficou a examinar os forasteiros por um bom tempo. Fechou a portinhola. Minutos depois, um barulho de trancas e ferros foi ouvido do lado de fora e luzes podiam ser vistas através dos vidros coloridos. Seu Inocêncio abriu a porta e convidou o casal para sua casa. Foi um alívio para os jovens estudantes.
O interior da casa de madeira era simples, mas aconchegante. Dona Maria, esposa de seu Inocêncio, atiçava as brasas do fogão a lenha para aquecer a sopa. Cansados e com frio, os visitantes não recusaram a gentileza. Enquanto sorviam o caldo quente e grosso, com muitos legumes e reforçada com pedaços de carne de ovelha, contavam aos anfitriões sobre seu infortúnio.
−E foi assim que aconteceu. Depois que começamos a caminhar, logo, logo já não sabíamos onde estávamos. – Explicou Daniel.
−Cês tiveram sorte, menino. Caso não avistassem nossa casa, passariam a noite no campo. Não tem outras moradas por estas bandas, não. – Disse seu Inocêncio, coçando o bigode e oferecendo o chimarrão.
−E para que lado fica a cidade, afinal? – Perguntou Daniel, ao apanhar a cuia.
−Seguindo a estrada para o norte, na direção do capão grande. Para o outro lado fica o Caverá e, seguindo pra riba, chega à fazenda dos Cunha. – Respondeu o anfitrião, fazendo gestos de localização. – Mas hoje vocês não vão a lugar algum. A chuva tá chegando, e vem forte. – Advertiu seu Inocêncio.
Como Luciana continuava com sinais de mal estar, dona Maria se apressou em preparar a cama do dormitório que fora de seu filho para acomodar a visita. Daniel, apreensivo, foi ver como estava a garota antes de dormir. Depois, acomodou-se no chão da sala, em uma cama feita com pelegos de ovelha. A chuva chegou forte. Ventos uivantes sacudiram a casa, como se quisessem arrancá-la do chão. Mas, mesmo com a tempestade, a tensão e o cansaço cobraram seu preço e Daniel adormeceu profundamente.
Assim como chegou, rápida e forte, a tempestade se foi. Mas outros sons surgiram em substituição aos trovões. Grotescos, fortes, assustadores. Daniel acordou com a agitação e as luzes dos lampiões trazidos por seu Inocêncio e dona Maria. O barulho de um trotar forte parecia rondar a casa. Mas o pior eram os urros, gritos sinistros que pareciam fazer tremer as paredes de madeira. Variavam entre berros ameaçadores e guinchos de lamento.
−Deus do céu! – Exclamou dona Maria, erguendo as mãos como em uma prece.
−O que está acontecendo? – Perguntou Daniel, de olhos arregalados.
−Só pode ser ela. – Disse o anfitrião, meio sem pensar.
−Ela, quem?
−A mula!
−Deus nos ajude. – Disse dona Maria, procurando seu rosário.
Diante da expressão interrogativa do rapaz, seu Inocêncio resolveu falar sobre suas suspeitas. A coisa tinha se afastado. Os trotes pareciam longe e os urros diminuíram. Daniel, incrédulo, ouviu pacientemente as histórias do velho gaúcho. Internamente ele achava graça daquelas crendices, mas, educado, não desdenhou das palavras daquelas pessoas simples que o tinham abrigado tão gentilmente. O barulho fora muito estranho e os urros, assustadores, contudo, Daniel procurava uma explicação mais racional para o acontecido.
−Mas nem igreja temos por estas bandas! – Disse dona Maria. – O que dirá, padre. – Completou, em meio as suas orações.
−Já ouvi isto antes, minha velha. Este tipo de coisa a gente não esquece.
−Mas aonde o senhor já viu acontecer coisa parecida? – Perguntou Daniel, apenas para ser gentil.
−Há muitos anos, no interior de Anta Gorda, um bicho destes matou todas as reses da fazenda do seu Armando. Até conheci a guria que seduziu o padre. – Disse seu Inocêncio, se referindo a lenda da Mula, a moça que seduziu o padre e foi amaldiçoada.
Quando seu Inocêncio falou em guria, Daniel se lembrou de Luciana. Pediu licença e foi até o quarto. Voltou rapidamente e apavorado. A moça não estava na cama e, após uma rápida busca, perceberam que ela não estava em parte alguma da casa.
−Ela deve ter saído, não estava se sentindo bem. Deve ter ficado desorientada ou algo assim. – Disse Daniel, dirigindo-se para a porta.
−Aonde você vai, moço?
−Tenho que encontrá-la.
−Mas é perigoso, a coisa está por ai.
Desconsiderando a advertência, o rapaz pegou sua mochila e partiu. Não precisou acionar a lanterna, as nuvens tinham se afastado e a lua cheia facilitava a visão. Procurou fazer o caminho de volta, imaginando que Luciana poderia ter feito o mesmo. Caminhou por quase uma hora até que avistou a grande figueira. Nunca se esqueceria daquele lugar. Nutria a esperança de encontrá-la por lá. Quando chegou até a margem, bem junto à árvore, viu que se enganara. Luciana não estava em lugar algum. Quase não conseguia mais conter o choro. Um misto de aflição e culpa tomava conta de seu coração.
De repente, sons estranhos começaram a chegar aos ouvidos do rapaz, tirando-lhe do torpor em que se encontrava. Era o barulho de um trotar muito forte e que vinha em sua direção. Os urros, semelhantes aos que escutara na casa de seu Inocêncio, também começavam a ficar mais altos e próximos. Ele nunca acreditara naquele tipo de história sobrenatural, mas estava com medo. Logo a seguir, percebeu que um ponto luminoso também se aproximava. Era parecido com fogo, alguma espécie de tocha. Aquele barulho grotesco ficava mais alto a cada instante e Daniel, em pânico, sem saber bem o que fazer, subiu na figueira. Ficou ali, oculto pela espessa folhagem que, de certa maneira, o protegia. Pôde ver claramente toda a aproximação da criatura. Não podia acreditar no que tinha diante dos olhos. Um suor gelado escorria pelo seu rosto. A situação terrível o fizera até se esquecer, por momentos, de Luciana. A criatura parara com os urros assustadores e andava calmamente na beira do rio, como se fosse beber água. A descrição que seu Inocêncio fizera se encaixava perfeitamente. A mula soltava chamas por onde deveria ter a cabeça. Daniel agradecia a Deus por aquela coisa não tê-lo visto. Ele estava tenso, seus músculos doíam, quase não respirava. A criatura chegou mais perto da margem, logo abaixo da figueira. Quando o ser entrou nas águas, Daniel, estupefato, pode ver claramente sua imagem refletida nas águas escuras. Ele nunca se esqueceria das curvas, dos seios e do rosto de Luciana.
Pouco depois, aquele animal bizarro foi embora e Daniel ficou escondido na figueira até o amanhecer. Traumatizado, só desceu de seu refúgio quando uma viatura do grupamento de resgate se aproximou. As buscas foram encerradas e Daniel levado ao hospital da cidade. Mas a principal preocupação dos responsáveis pelo trabalho de campo não era a saúde física do aluno. Seus relatos sobre a existência de seres que vivem apenas no folclore popular intrigavam médicos e professores, mas eram atribuídos ao trauma causado pela noite difícil. O que causava maior estranheza era a insistência do rapaz em perguntar por uma colega chamada Luciana. Nenhuma aluna com este nome estava matriculada naquela turma e muito menos constava da lista de passageiros.
No dia seguinte, Daniel retornou para Porto Alegre. Queria se afastar de toda aquela história. Tentava esquecer. Mas seus sonhos, dali para diante, seriam povoados por aparições em que Luciana estaria sempre presente. Dias depois, já com a passagem nas mãos, o rapaz arrumava sua mochila novamente. Voltaria até aquela figueira centenária. Se encontraria Luciana novamente, não sabia. Ele só tinha uma certeza, fora naquele lugar que havia perdido sua paz e seria lá, então, que encontraria seu destino.