Enquanto o sono não vem
Por Ramon Bacelar
-... e viveram felizes para sempre.
-Conta outra vovô!
-Não querido, está tarde; agora você vai dormir e sonhar.
-Não estou com soninho não, além do mais...
-Sim matraquinha? – Interrompeu-o com olhar tenro e curioso.
-Sabe... É que prefiro sonhar acordado ouvindo estórias com meus olhinhos bem esbugalhados, como os daqueles horrorosos monstrengos carecas... Assim! – Escancarou-os rindo.
-Não, da última vez que te contei este conto...
-Sim! Foi um pesadelo de mentirinha viu? – Pulou no colo. – Enquanto ela não vem, prefiro sonhar acordado e esperar. Junto de você não tenho medo de nada. – Apertou a mão do avô.
-Mas o sono não vem desse jeito querido... E não é ela, é ele: Aquele que não gosta de barulho... Tem pálpebras cerradas, barba de sombra e voz de silêncio.
-Veste-se de escuro, e solta pum que ninguém ouve né vovô? – Riu - Gostei da cara do sono, mas não é ele, é ela: estou esperando a mamãe!
As palavras atingiram o velho como icebergs verbais: ondas de vapor frio congelaram costelas como parasitas de gelo: afogaram membranas e cataratas oculares em umidades gélidas e pegajosas.
-Vovô? - Olhou para o escuro da janela abraçado ao pescoço. - Quando ela volta? Parece que essa viagem não acaba nunca né?
Silêncio.
-Sua... Sua mãe... – Balançou a cabeça como se dissipasse um pesadelo - Está bem querido. - Mordeu os lábios – Vou contar mais uma.
-Obááá !! – De um pulo, o neto se enfiou no cobertor com a cabecinha de fora como uma tartaruga centenária. – Então invente uma em que um garotinho acorda de um sonho feião e encontra sua...
-Não! – Interrompeu bruscamente e suspirou. – Não amor... Vou te contar um conto de fadas: A Menina dos Fósforos.
-Ui que frio!!
-Espere um pouco.
Desceu as escadas e fechou as janelas da sala, porém ao retornar ouviu o neto sonhando alto no décimo sono. Beijou-o na testa com o entendimento que a hora tinha chegado, mais uma vez.
Em seu quarto calçou as galochas e verificou a mochila. Desceu as escadas revisando pela milésima vez as coordenadas no mapa: no canto esquerdo, sinais e anotações de velhos amigos desaguaram memórias reprimidas como represas em fúria: engoliu-as em seco com um fechar de pálbebras.
Abriu a porta, mas antes de ir à procura do Poço das Almas próximo ao elusivo Castelo das Sombras, ouviu sorrisos do neto em sonos de sonhos: “Mamãe... Mamãe...”
Abaixou a cabeça, apoiou-se na bengala e mais uma vez partiu em busca de seu sonho sem sono: o sonho de um pai herói que resgatou a filha de um lendário poço de monstros, e de como o reencontro de uma mãe ausente com o filho carente, transmutou um pesadelo sem fim em sonho real.
FIM