A VELHA SENTADA NO SOTÃO

Todo local antigo e abandonado tem sua cota de lendas, histórias que despertam pavor, arrepios ou simplesmente gargalhadas céticas, e a velha fazenda Rosa Cruz não é diferente, no interior desse terreno vasto e plano tem uma casa enorme de três andares, que não escapou da fúria do tempo.

Dizem que nos áureos tempos plantações de milho se estendiam para todos os lados e podia ser visto a partir do segundo andar da casa até o limite da propriedade, atualmente resta apenas a sombra do que outrora fora próspero, vestígios das plantações, alguns espantalhos que ainda persistem em ficar de pé e o, igualmente persistente, casarão habitado apenas por uma velha sentada no sótão.

Segundo os moradores, que costumam usar a estrada que passa em frente ao casarão, é comum olhar para a grande rosácea que se encontra no sótão e ver de longe uma velha sentada observando da janela. Entre os jovens da região é como se fosse um rito de passagem ir ao casarão à noite esperar pela aparição da velha, que muitos dizem ser o fantasma da senhora Rosa Cruz. As pessoas geralmente evitam aquele local, embora a estrada seja um atalho que economiza várias horas de quem viaja para o sul da região.

Desde criança temi o casarão, ele habitava meus piores pesadelos e parecia reinar sobre todos os meus terrores noturnos. Sonhava constantemente estar preso naquele sótão com a velha tecendo uma mortalha para mim, e por mais que eu circulasse pelos corredores à procura de uma saída, sempre acabava voltando para o sótão. Outras vezes sonhava que meus colegas me prendiam dentro da casa durante a noite e eu nunca mais saía de lá.

Meu pavor se devia ao fato de que em meu “rito de passagem”, junto com mais dois colegas, não tive coragem de cruzar o portão que separava a estrada da propriedade. Era uma noite escura, sem lua, e como eu me acovardei meus colegas tentaram me forçar a ir lá me empurrando. Um deles viu alguma coisa na rosácea e soltou um grito estridente, ambos saíram correndo, eu fazia tanta força para não ser empurrado para dentro da propriedade que quando me soltaram fui direto para o chão. Levantei mancando com os joelhos esfolados, olhei assustado para rosácea e não vi nada, porém meu pavor não era menor, me arrastei lentamente para longe daquele lugar enquanto sentia que olhos me acompanhavam.

Depois de algum tempo me mudei da cidade para ir morar com meu pai, e só voltei depois de adulto, mas a casa ainda me arrepiava, decidi descobrir qual a história por traz daquele local, pois meus avós haviam comprado a propriedade e diziam que um dia ela seria minha.

Apenas os mais velhos se lembravam do que ocorrera naquele local, e a maioria se recusava a falar. O que descobri de poucos e esguios entrevistados foi que a prosperidade da família Rosa Cruz foi bruscamente interrompida pela morte do patriarca da família e dos dois filhos mais velhos do casal. Um infeliz acidente de carro ceifara a vida dos três membros da família deixando apenas a senhora Martha e o jovem Julio de apenas quinze anos de idade.

Os dois tentaram manter a fazenda, mas não tinham o mesmo trato do falecido dono, a cada colheita as dívidas aumentavam e a fortuna diminuía. A senhora Martha começou a ficar perturbada deixando todo o peso sobre os ombros do garoto. Ela parou de sair de casa e ficava apenas no sótão sentada em sua cadeira de balanço olhando pela rosácea de onde o marido e ela costumavam contemplar a plantação.

Dizem que ela passava o dia inteiro no sótão, e enquanto estava lá parecia satisfeita, não gostava que ninguém entrasse, almoçava, jantava e até dormia sentada na cadeira, seu filho sempre a levava para o quarto enquanto dormia, para que na manhã seguinte e voltasse para lá.

Quando Julio completou a maioridade a fazenda estava às mínguas, então ele resolveu vende-la, e comprou uma casa em uma cidade distante. Os novos proprietários, nunca moraram na casa e nem investiram muito para conservar a propriedade, ao que parece tinham outras prioridades.

Depois de um ano Julio voltou à cidade, sua mãe adoecera muito, sua única vontade era voltar à casa, e ele conseguira permissão dos proprietários para levar a senhora Martha até lá. Algumas pessoas da cidade, antigos amigos da família os acompanharam, e são exatamente esses que se recusaram a contar o estranho acontecimento que teve o sótão como palco.

Eles andaram pela propriedade, relembrando os velhos tempos com Julio, enquanto a senhora Martha preferiu visitar o sótão. Enquanto andavam podiam vê-la pela rosácea, embaçada pela poeira, balançando satisfeita em sua antiga cadeira.

Quando o dia já se acabava, após longas horas de um passeio saudosista, Julio fez um sinal a sua mãe para que ela descesse, pois já iam embora, mas ela olhava fixamente para onde ele estava e parecia não vê-lo, continuava olhando pelo vitral. Impaciente o jovem gritou algumas vezes e não obtendo respostas subiu para buscá-la.

As pessoas que o aguardavam em frente à propriedade se assustaram com um grito de desespero do rapaz, subiram as escadas correndo para ver o que acontecera e constataram que a velha havia desaparecido, após longas procuras não houve sinal da senhora Marta. E foi só isso que consegui descobrir sobre esse estranho caso, logo após o misterioso desparecimento as pessoas começaram a dizer que o local era assombrado. Alguns que transitavam pelo local, inclusive os compradores da fazenda afirmam ter visto a desparecida senhora sentada no sótão olhando pela rosácea.

Mas eu já estava muito velho para acreditar nessas histórias, cheguei a ir várias vezes à propriedade e fiquei observando por horas, esperando ver algo que me convencesse. E por mais que meu ceticismo imperasse, nunca ousei entrar na casa, eu não podia admitir, nem para mim mesmo, mas tinha receio, um medo inconsciente me dominava.

Na última em vez que estive na propriedade convidei dois amigos para me acompanharem, os mesmos que tentaram me forçar a entrar lá na infância, pois ambos compartilhavam de minha curiosidade pela aparição da velha. estávamos decididos a entrar na casa, porém ao chegar lá eles se recusaram a entrar e disseram que me esperariam do lado fora. Apesar do meu inaceitável receio, me senti encorajado em saber que haviam pessoas do lado de fora, tomado por uma coragem tola entrei na casa.

Embora estivesse velha e precisando urgentemente de reparos o interior da casa não tinha o aspecto medonho que eu sempre imaginara. Subir as escadas de madeira foi um desafio, muitos degraus afundavam facilmente quando eu pisava, demorei tanto a subir que meus amigos gritaram impacientes, pareciam estar mais receosos do que eu.

À medida que aproximava do sótão o clima da casa mudava, cada parte da casa parecia incitar meus medos juvenis, terrores a muito subjugados pelo meu amadurecimento voltavam à tona. Não ouvia mais a conversa de meus amigos, era como se eu estivesse só, pensei em voltar, tentei me enganar dizendo que não era importante vasculhar aquele sótão, eu estava sendo tolo em levar aquelas histórias tão a sério a ponto de tentar constatar pessoalmente sua veracidade. Mas todo esse discurso só tentava esconder o meu medo, um medo que eu não podia admitir nem em meu íntimo.

Após o debate que tive em meus pensamentos resolvi prosseguir, abri a porta que levava do terceiro andar para o sótão, e ela rangeu provocando um eco na casa vazia. O bater de asas de vários pombos que se aninhavam no sótão fez meu sangue gelar por alguns segundos. Ao me recuperar subi a escada que parecia mais firme que as outras, mas só parecia, no quinto degrau meu pé afundou esfolando minha perna na madeira apodrecida. Um de meus amigos gritou se estava tudo bem, senti-me aliviado ao ouvir a voz dele, mas não respondi, a casa se encontrava em um silencio tão profundo que temi quebrá-lo.

Cuidadosamente alcancei o topo da escada e me deparei com um sótão amplo e vazio, exceto pela cadeira de balanço em frente à grande rosácea por onde a luz entrava fracamente devido ao grande acúmulo de poeira. Meus medos se intensificaram naquele lugar, inicialmente não havia nada visível que pudesse justificar minha postura, eram apenas sensações, todo meu ceticismo forçado se foi quando presenciei a mais insólita de minhas experiências.

O que vi naquele local me fez correr desesperado escada abaixo, descendo os degraus de dois em dois, até hoje acho incrível que nenhum deles tenha cedido sob meus pés e proporcionado uma queda que me levaria à morte certa. Meus amigos não entenderam nada quando sai assustado da residência, também não dei muitos detalhes, entramos ás pressas no carro e partimos daquele local. Eu disse a eles que a casa estava em ruínas e que quase sofri um acidente. Eles não acreditaram e só riram dizendo que tive medo e saí correndo da casa, eles estavam completamente certos, só não deduziram que meu medo tinha fundamentos.

Pela primeira vez volto a esse assunto, nunca contei para ninguém o que ocorreu. Tenho certeza que a pavorosa experiência que tive só irá despertar risos e descrença em quem ouça. Mas durante anos convivi com isso, um frio terrível me percorre a espinha sempre que relembro o assunto, acho que estou superando tudo, pois agora me sinto mais a vontade para contar o que aconteceu naquele sótão.

Enquanto eu andava pelo sótão e olhava cada canto daquele lugar funesto percebi que a fraca luz que entrava pela rosácea não condizia com o céu limpo e azul daquele dia, o sol certamente deveria encher aquele aposento de luz mesmo com a poeira que se acumulara no vidro. Me aproximei vagarosamente da rosácea empoeirada, desviei-me da cadeira de balanço que me deu arrepios e passei a mão no vidro para limpa-lo. Imagine qual foi a minha surpresa e pavor quando me deparei com o crepúsculo no horizonte, não eram nem meio dia, e ao invés de uma propriedade abandona vi uma bela plantação de milho, e em frente casa, no lugar onde deveria estar um tronco seco, estava uma frondosa árvore.

Sob a sombra da árvore estavam sentados três pessoas, um homem e dois jovens, os meninos brincavam enquanto o homem estava recostado no tronco. Fiquei paralisado diante daquela cena insólita, e fui despertado pelo grito de um de meus amigos dizendo: “vamos embora”, sacudi a cabeça e quando olhei novamente vi que o homem e os jovens encaravam insistentemente a rosácea, depois começaram a fazer gestos me chamando. Apavorei-me e novamente ouvi meu amigo gritar “vai ficar parado aí ou descer?”.

Não tenho palavras para descrever o profundo terror que tomou conta de mim quando ouvi uma voz vinda de trás dizendo: “já vou querido, espere só o sol se por”, era uma voz feminina, arrastada e cansada. Virei-me rapidamente e a cadeira de balanço estava vazia, balançando. Afastei-me rapidamente, da rosácea e da cadeira, a luz parou de entrar pela janela e quando arrisquei lançar um ultimo olhar para a fonte de meu medo, estava uma escuridão lá fora e pude ver pelo reflexo do vidro que a cadeira estava ocupada pelo que parecia ser um cadáver de uma senhora, foi nesse momento que reuni as forças que ainda restavam e corri para fora da casa.

Escrevo esse relato senhor Fernando para alertá-lo sobre a propriedade que vendi para o senhor. Sinto-me culpado por não ter falado nada antes de assinarmos o contrato, porém tenho certeza de que não me daria nenhum crédito. O que seus filhos viram na rosácea eu também vi, mantenha sua família longe do sótão, não saberei dizer que tipo de força opera naquele lugar, muito menos se é benigno ou maligno. O que aconselho a fazer é derrubar a casa e construir uma nova em outra parte dessa vasta propriedade. Não tenho mais nada a dizer sobre o assunto, já foi difícil relembrar tudo isso para sanar suas dúvidas, estou a disposição para responder qualquer outra que o senhor tenha.

Atenciosamente Alvaro Falcão.