Planicies da Escócia - Ilustrado




Aviso: Este é um conto/livro, portanto um pouco mais longo...mas leia...garanto que vai valer a pena. Peço que deixe um comentário no final, pois suas críticas me ajudarão a melhorar. Obrigado!

          O velho Bentley resfolegava e gemia sob a pressão do motor, ecoando surdamente naqueles campos desabitados. Reinald, deixando a estrada de saibro, aventurava-se por um antiguíssimo caminho que parecia abandonado havia muitos anos. Tragando com volúpia as curvas que se apresentavam, embicava o potente veículo que, quase de lado, resvalava, chacoalhava e, dominado pela férrea vontade de seus vigorosos braços, voltava, compulsório, ao centro da estrada. Braços vigorosos, porém mal governados pela mente anuviada pelo excesso de vinho, bebido em boa companhia na Estalagem do Javali, ponto de encontro obrigatório das sextas-feiras à noite no condado de Perthshire.
          A coragem, atributo da juventude, aumentada pelo efeito dos vapores etílicos, fazia com que Reinald acelerasse cada vez mais, superando grandes aluviões nas baixadas, erosões e pedrarias nas encostas, troncos semi-apodrecidos caídos das margens e curvas fechadas, utilizando-se de uma desenvoltura proporcionada, em grande parte, pela adrenalina.
          Porém, é sabido que a impetuosidade advinda da coragem, por si só, sem o controle da mente lúcida e sem a perícia, resultante da prática e do treinamento, não malogra êxito na maioria das vezes. A curva se apresentara excessivamente fechada e, somada à velocidade do veículo, fez com que Reinald conhecesse os efeitos da força G na sua forma mais catastrófica. A escapada foi inevitável, fazendo com que o pequeno barranco da borda do caminho se transformasse na rampa de uma espetacular decolagem. O Bentley aterrissou de bico, tombou de lado, deu mais duas piruetas e parou capotado.
          O despertar do rápido período de inconsciência veio carregado em dores; mas, apesar das várias escoriações e um enorme galo na testa, nada de maior gravidade se apresentava. Pelo menos, não que sentisse naquele momento. Contorcendo-se com dificuldade, saiu do veículo que, todo amassado, descansava com os quatro pneus virados para o céu enluarado.

          Trôpego e meio tonto, sentou-se na turfa encharcada com as costas na lataria do pobre companheiro de tantas aventuras. Sua mente, induzida pelo susto, livrava-se do torpor etílico voltando à lucidez.
          Depois de algum tempo, recomposto, voltou à estrada com o intento de andar até encontrar alguma ajuda. Na verdade não sabia a quantos quilômetros estava da propriedade habitada mais próxima; só sabia que aquelas paragens eram muito despovoadas e poderia estar a quilômetros de qualquer ajuda possível. Percebendo que a estrada fazia muitas curvas - o que lhe parecia alongar inutilmente a trajetória -, resolveu cortar caminho pelos campos. Descendo por uma encosta, deu numa extensa planície pantanosa, recoberta de uma vegetação baixa, entrecortada por um mosaico de lamaçais, pequenos lagos e faixas de terra firme. Uma leve névoa esparramava-se em feixes esparsos, parecendo tecidos brancos, quase transparentes, a cingir as moitas e arbustos. Ajudado pela luz do luar, caminhava sem rumo certo, ora para a direita, ora para a esquerda, sendo conduzido pelas condições de acesso do terreno.
          Conferiu no relógio - passava de duas horas da manhã -; desanimado e enlameado até os joelhos pelos constantes atoleiros em que havia caído, pareceu vislumbrar ao longe, perto de uma colina, um pequeno ponto, tremeluzindo fraco, tão fugaz pela distância, que não conseguia ter certeza se era mesmo um ponto luminoso ou se seus olhos, ou sua mente estavam lhe pregando alguma peça. Mesmo assim, agarrou-se ferrenhamente à esperança de encontrar algum lugar com uma lareira, ou pelo menos um teto, já que, molhado como estava, começava a sentir os primeiros sinais de hipotermia, num tremor convulsivo que não conseguia dominar. Encontrando forças na esperança, caminhava agora mais rápido, ignorando as pequenas poças de água e desviando-se apenas das quais temia afundar. Olhos fixos na direção da colina - conseguiu ter a certeza que era realmente uma luz -, o que lhe redobrou as forças, fazendo com que, em pouco tempo, já conseguisse observar uma propriedade surgir diante de si. Ao aproximar-se mais, percebeu pela intensidade, que a luz só poderia provir de um lampião, vela, ou mesmo um pequeno fogo de chão, pois tremeluzia incerto, sem a placidez habitual das lâmpadas elétricas.

          Era uma daquelas choupanas que, em tempos antigos, abundavam nas charnecas escocesas, onde os humildes que não se sujeitavam a trabalhar nas terras dos grandes senhores, só tinham a escolha de viver de modo paupérrimo, pastoreando animais magros e tão miseráveis quanto seus próprios donos. A cabana, incrustada no sopé da colina, era coberta de palhas, com uma parede lateral e metade da frontal em pedras que pareciam ser remanescentes de uma construção bem mais antiga, onde o restante fora construído em tábuas, agora já velhas e carcomidas pela ação implacável do tempo.
          A origem da luz era uma pequena fogueira junto ao alpendre frontal, quase apagada, de onde pendia, suspenso por um gancho uma antiga panela, de ferro fundido.
          O primeiro impulso de Reinald, tomado por uma aversão endêmica de nobre burguês pela miserabilidade humana, foi de continuar em frente, porém, o frio crescente e a completa falta de orientação, fizeram com que se aproximasse.
Bateu palmas e sentou-se ao lado do fogo, aproximando as mãos para perto das brasas. A porta se abriu devagar, de onde surgiu uma esquálida senhora envergando um longo vestido de algodão, esfarrapado nas pontas e bastante sujo. Pela face encarquilhada, emoldurada por uns cabelos desgrenhados, aparentava bem uns oitenta anos, mas o par de pequenos e faiscantes olhos, de um azul acinzentado e a desenvoltura nos movimentos desmentiam tal conclusão. Não conseguiu antever os traços de personalidade da anciã, porém sua primeira impressão foi de que estava diante de uma eremita. A aversão pressentida anteriormente se acentuou, mas, engolindo em seco, explicou:
          - Desculpe-me pelo incômodo, senhora, mas eu sofri um acidente: meu carro capotou a alguns quilômetros daqui. Procurando ajuda, saí da estrada e acabei me perdendo; preciso de um lugar para passar a noite. Basta que me deixe ficar aqui perto do fogo até amanhecer e me indique o caminho mais próximo onde more alguém que possa me ajudar.

          - Meu filho, você está molhado e ferido; entre em minha modesta casa enquanto lhe preparo um chá quente e alguns unguentos para seus ferimentos.
A voz saiu meiga e pausada. Apesar de denotar um colóquio sem a polidez fleumática da fidalguia à qual estava acostumado, Reinald surpreendeu-se com a discrepância entre a fala e a figura. Mesmo assim, achou melhor não entrar na casa; não por medo, muito mais por asco daquele local tão fora dos seus ambientes.
          - Obrigado, senhora, mas não quero incomodar. Basta que me deixe ficar aqui.
          - Bobagem, você está com muito frio; entre por um momento, não é incômodo. Amanhã bem cedo eu lhe mostro a trilha que leva à propriedade dos Mccormick, que é bem perto daqui. Na verdade, servi a eles por muitos anos. Hoje estou imprestável para o serviço e me deixam morar aqui por caridade.
          Aquela conexão com uma situação corriqueira e normal teve a capacidade imediata de lhe devolver a calma, que, aliás, já havia sido fortemente abalada pela caminhada no pântano, a atmosfera lúgubre daquela cabana perdida no meio do nada, aquela anciã mal vestida e tudo o que já havia lhe acontecido até aquele momento. Num ímpeto de arrependimento por ter sentido repulsa por uma pessoa que lhe tratava tão bem, resolveu entrar na cabana.
          O ambiente interno, parcamente iluminado por um toco de vela em cima de uma mesa tosca e suja, deixava entrever uma profusão de garrafas, umas vazias, outras com ervas e líquidos, que imaginou serem remédios caseiros, na certa o atual ganha-pão daquela insólita personagem. O restante da cabana resumia-se a um estreito catre com alguns cobertores amontoados, um pequeno fogão de barro com várias panelas em cima, dois bancos de madeira e um armário muito antigo com mais garrafas, ervas e outros objetos que, na penumbra, não conseguia definir direito.
          - Sente-se, meu filho, vou pegar uma acha de lenha acesa lá fora para avivar o fogo aqui; num instante lhe preparo um chazinho especial.
Reinald sentou-se ao banco e, cansado como estava, deixou-se relaxar, fechando os olhos momentaneamente. Em pouco tempo, uma pequena panela soltava espirais de vapor e um cheiro acre de erva sendo cozida. Derramando o resultado da infusão em uma caneca, a velha ofereceu ao rapaz, dizendo:
          - Tome, beba tudo! É uma mistura de ervas que vai lhe aquecer o corpo e tirar o cansaço.
          Em goles curtos, sorveu toda a beberagem, sentindo um gosto ácido e ao mesmo tempo adocicado. Tão logo a bebida lhe bateu no estômago, um calor intenso invadiu seu corpo, sentiu as têmporas pulsarem intensamente; sua visão ficou turva e sentiu um forte zumbido na cabeça.
          - Sinto-me tonto – disse, fechando os olhos.
          - Você está debilitado; acho que fiz o chá muito forte, deite-se um pouco e se sentirá melhor.
          O rapaz, pensando no catre sujo, preferiu deitar-se ali mesmo no banco. Tentou falar alguma coisa, porém sua língua estava adormecida. Sentiu seu corpo agrilhoado a uma moleza intensa e a mente perder a lucidez, como se estivesse sonhando com aquela situação. Depois de algum tempo - que não saberia dizer se minutos ou horas -, ouviu a cantilena lenta e monótona de uma voz gutural, enjoativa, pronunciando palavras cujo significado não conseguia discernir. Entreabriu os olhos, sonolento, percebendo que a voz vinha da velha, sentada ao seu lado em estado de hipnótica prostração. Aquela ladainha penetrava fundo na sua mente, dificultando o raciocínio já embotado pelos efeitos do chá misterioso. Pôde ainda perceber, nos últimos instantes antes de desacordar por completo, que chegara mais alguém na cabana. Mesmo quase inconsciente, apavorou-se quando ouviu uma voz masculina, cuja ressonância parecia ecoar longe, dizendo:
          - Vamos levá-lo.
          Despertou numa cela de pedra escura e úmida, fechada por uma imensa porta, feita com grossas pranchas de madeira ligadas por hastes de metal cravejadas com grosseiros rebites. Não havia nenhuma janela nas paredes, apenas uma pequena abertura com grades na imensa porta, por onde entrava uma fraca luminosidade avermelhada. Intuiu imediatamente estar num calabouço subterrâneo.
          Ao gosto amargo na boca e à intensa dor de cabeça, juntou-se um medo profundo, uma inquietante sensação de perigo. Espiou pela janelinha da porta e viu apenas um corredor com uma tocha acesa ao fundo, perto de uma escadaria de pedra, o que confirmava sua hipótese de estar num subterrâneo.
Gritou a plenos pulmões, batendo com força na porta, sem, no entanto, receber resposta alguma.
          Abatido e sem alternativa, deitou-se no pequeno catre suspenso na parede por duas correntes enferrujadas e aguardou. Horas mais tarde, semi-adormecido, teve um sobressalto com o barulho metálico vindo da grande porta, que, num rangido áspero, raspando no solo de pedra, entreabriu-se, esparzindo uma luminescência que lhe feriu os olhos, cujas pupilas estavam dilatadas pela escuridão.
          Três homens entraram na câmara; dois deles aparentando seus quarenta anos de idade, parecidos entre si, com um aspecto rústico, atarracados, uma musculatura forte, lábios grossos adornando cabeças desproporcionalmente grandes para sua altura, de onde pendiam cabelos muito lisos e negros, narizes achatados e olhos escuros. O outro, na casa dos sessenta, era alto, magro, olhos inquietos, de um azul penetrante, lábios finos, adornados por um bigode amarelado, nariz adunco e sobrancelhas revoltas, de onde sobressaíam alguns fios muito compridos. Pela maneira de se vestir e pelos gestos decididos parecia ser o chefe. Reinald, já de pé, foi ao encontro dos três com maneira firme dizendo em tom áspero:
          - Senhores, que brincadeira é essa? Exijo uma explicação!
Nem bem terminou de pronunciar a frase e um dos dois homens se aproximou e, sem lhe dar tempo de reação, desceu-lhe um violento soco no estômago, fazendo com que caísse de joelhos, sem fôlego.
          - Recomponha-se! – disse secamente o que parecia ser o chefe. Você não está em condições de exigir nada.

          Gemendo de dor, ainda quis protestar, mas um violento pontapé o fez entender que era melhor ficar quieto e obedecer àqueles loucos.
Os dois ajudantes levantaram-no pelos braços e empurrando-o com violência, ordenaram:
          - Siga-nos sem resistir, ou será pior para você!
          Saindo da cela, seguiram pelo corredor até outra grande porta, adentrando em um recinto com abóbadas muito altas, iluminado por diversos archotes presos à parede. O chão era de terra, de onde brotavam várias pedras estreitas, entalhadas com estranhos símbolos. Ao fundo, uma espécie de altar de pedra com uma enorme e grotesca estátua, esculpida também em pedra, representando uma bizarra criatura que só poderia ter sido concebida por um escultor em estado de profunda loucura. Abaixo do altar, alguns degraus e dois imensos braseiros. Completando a cena, uma mesa estreita formada por uma grossa prancha de madeira, comprida e com cintas de couro presas às laterais, apoiada em duas outras pedras também esculpidas.
          - Tire a roupa e deite-se na mesa - ordenou o que parecia ser o chefe.
          Mil pensamentos passaram pela sua mente; todos eles funestamente sombrios. Teve a certeza de que, ao se deitar naquela mesa, onde estaria completamente imobilizado pelas correias de couro, algo de muito ruim aconteceria. Decidiu que tentaria uma reação, mesmo com escassas chances de êxito. Empurrou o mais próximo dos dois ajudantes e debandou numa corrida desenfreada, porém não foi longe; os dois homens o alcançaram e derrubando-o, bateram impiedosamente.
          Dominado, foi despido e deitado à força, sendo imobilizado pelas largas correias afiveladas por toda a extensão do seu corpo. O senhor de bigodes, aproximando-se com um olhar de escárnio, pousou-lhe a mão suavemente sobre a cabeça; os lábios, quase tocando seu ouvido esquerdo, sussurraram de forma lânguida:
          - Schhhhhtttt, faça silêncio! Está em um ambiente sagrado. Logo você receberá explicações e compreenderá o quanto a sorte está lhe sorrindo, meu jovem! Terá a honra de participar de algo maravilhoso. Muitos dariam tudo para estar no seu lugar.
          - Senhor, só quero ir embora daqui. O que fazem é um crime hediondo: não podem forçar alguém a ficar contra a sua vontade.
Ignorando os seus apelos, os três homens saíram em silêncio, deixando-o só naquele estranho mausoléu.
          Cerca de meia hora depois, sentiu passos leves ecoando no corredor. Amedrontado, imaginando as coisas horríveis que ainda estariam por vir naquele antro desconhecido, viu entrar na sala a velha que o havia drogado.
          Um arrepio de terror percorreu seu corpo nu, cuja pele já estava em diversos pontos bastante machucada pelas rústicas correias que o apertavam.
A anciã chegou perto e, sem ao menos lhe dirigir um olhar, deitou uma velha bolsa de couro ao chão; abrindo a mesma, retirou alguns objetos que ele, da posição em que se encontrava, não conseguiu distinguir o que eram. Foi em seguida para a frente do altar, acendeu os dois braseiros e jogou um punhado de folhas em cada um. Delgadas espirais de fumaça amarelada subiram ao teto. Um cheiro de mofo impregnou o ambiente.
          A velha apanhou os objetos retirados da bolsa, depositou-os na frente da escultura e ajoelhou-se, balbuciando palavras numa estranha linguagem. Reinald não conseguia entender o que significavam; a língua parecia a mesma da cantilena ouvida antes na cabana.
          Terminada a oração, voltou-se até ele, trazendo os objetos e largando-os ao seu lado, em cima da mesa. Reinald, agora, pôde definir que se tratava de uma pequena adaga cuja lâmina era estreita e longa, com o cabo que parecia ser de osso, finamente entalhado com sinais parecidos com o das pedras, um pequeno pote com alguma substância viscosa de cor negra, dois pequenos ossos redondos, com grosseiras agulhas de metal nas pontas e um bastão também de osso, cuja ponta abria-se como se fosse um pequeno malhete.
Olhando-o fixamente nos olhos a velha disse com ar solene:
          - Não deve ficar assustado, você cumprirá um papel muito importante, deveria sentir-se honrado com isso.
          O sentimento de medo deu lugar a uma intensa fúria. Debateu-se violentamente, tentando desvencilhar-se das correias vociferou:
          - Velha maldita! Não quero cumprir papel nenhum, só quero ir embora. Em que espécie de hospício eu vim parar? Vocês tem consciência do que estão fazendo?
          - A sua fúria torna o regozijo daqueles que o aguardam ainda maior, pois será na sua dor que eles terão o seu deleite e poderemos mantê-los saciados, assim como acontece desde que o Rei Drest, filho de Erp ajoelhou-se neste altar para pedir ajuda ao deus, cuja estátua você pode admirar.
          - Deus? Não vejo nenhum deus, apenas uma imagem que algum louco ou alguma corja de supersticiosos deve ter esculpido em tempos remotos e que agora é objeto de adoração de outros malucos, mas deixe estar que não escaparão impunes; alguém lhes descobrirá e castigará adequadamente.
          Reinald descarregava sua fúria em palavras, mas em seu íntimo intuía que estava perdido, pois já ouvira falar que, em tempos remotos, naquela região, muitas pessoas haviam desaparecido; velhas lendas, sussurradas nas noites frias, em volta das lareiras, contavam sobre sacrifícios humanos, oferecidos a tenebrosos e cruéis deuses desconhecidos.
          - Você não sabe tudo que se passa aqui, nem por que fazemos isso. É minha missão fazê-lo entender: os servos de Oberon preferem que sua oferenda lhes conheça a origem e que sua alma seja tomada do mais absoluto pavor – disse numa gargalhada esganiçada. - Muitos séculos atrás, existiu nessas planícies uma grande aldeia picta, cujo rei foi o heroico Drest, filho de Erp. Orgulhoso e feroz, lutou durante setenta anos sem perder uma só batalha na defesa do seu povo; porém, um novo inimigo muito mais poderoso chegou: a organizada e disciplinada força do império romano. Após muitas derrotas, percebendo que a invasão só seria detida se usasse outros meios, que não o heroísmo e a ferocidade, Drest mandou erguer esse altar que agora contemplamos, em honra a Oberon - deus que havia muito era venerado pelo seu povo. Ao sacrificar no altar a sua própria filha, suplicou ao deus que o ajudasse a expulsar os inimigos de suas terras. Esse, aceitando seu sacrifício de sangue, convocou dos abismos subterrâneos de uma terra distante, perversas criaturas, remanescentes de uma era anterior ao grande cataclismo que devastou a terra. Esses seres - medonhas criaturas de aspecto horrivelmente deformado - atacavam as legiões romanas durante a noite, semeando pavor e morte. Os romanos, apavorados, recuaram, protegendo-se atrás da muralha de Adriano, a qual nunca mais ousaram ultrapassar.

          Cada vez mais, Reinald se convencia de que aquelas pessoas eram completamente loucas e, se não conseguisse escapar logo dali, estaria perdido. Tentava o tempo todo afrouxar as correias que o prendiam, sendo seus gestos ignorados pela velha, que continuou:
          - Porém, as criaturas, não haviam saciado sua sede de sangue e todas as noites saíam das profundezas da terra para atacar as pessoas da aldeia. Drest ajoelhou-se novamente ao altar de Oberon e suplicou-lhe ajuda; o deus, no entanto, não atendeu aos seus apelos. Desesperado, o rei mandou alguns servos em busca de um velho Druida que, segundo diziam, conhecia muitos segredos de eras anteriores ao grande cataclismo. O Druida, conhecendo as fraquezas dos horrendos seres, explicou a Drest como detê-los, aprisionando todos nas entranhas da terra. Desde essa época, guardiões são eleitos de maneira sucessiva para proteger o segredo que se esconde neste templo em que nos encontramos e velar para que os amaldiçoados súditos de Oberon não saiam à luz do dia. Para isso, um sacrifício deve ser executado a cada cinco anos, a fim de saciar as criaturas. Seu papel, rapaz, é precisamente o de vítima do sacrifício – disse, rindo de uma forma que denotava o intenso prazer que lhe causava provocar medo nele.
          - Oberon, segundo as lendas celtas, não é um deus mau, protestou Reinald. É apenas o deus dos duendes, que são criaturas benéficas.
          - Ora meu rapaz, às vezes as lendas são visões distorcidas de realidades que os povos querem esquecer. Nesse caso em especial, com o passar do tempo, as criaturas passaram a ser lembradas como salvadoras dos pictos, o que, na realidade, não deixa de ser verdade. O tempo se encarregou de transformá-los, na memória do povo, em criaturas bondosas e veneradas por todos. Assim como Oberon, que era uma divindade cruel e sanguinária, e se transformou no rei dos duendes bonzinhos.
          - O que pretendem fazer comigo?
         - Eu sou a atual sacerdotisa de Oberon e vou lhe preparar como oferenda, numa libação de sangue aos seus súditos - essas mesmas criaturas de que lhe falei até agora. O velho que o prendeu aqui é um dos últimos descendentes dos Mccormick, uma antiga família que sempre ajudou os sacerdotes de Oberon, recebendo seus favores em progresso financeiro e poder. Os dois lacaios que o ajudam são descendentes dos antigos pictos, fiéis seguidores de Oberon. Agora, chega de conversa; tenho que prepará-lo devidamente para agradar àqueles que habitam a escuridão. - Dizendo isso, arrochou mais as correias que agora já começavam a afrouxar devido às vãs tentativas de libertar-se.
          Voltando a entoar a enjoativa cantiga, que Reinald ouvira antes de adormecer na cabana, a velha cobriu-lhe pacientemente o corpo todo com estranhos sinais, riscados com um pequeno pedaço de carvão apontado. Após isso, apanhou um dos ossos com agulha na ponta e, molhando-o na viscosa substância preta do pote, começou um arcaico e doloroso trabalho de tatuagem, seguindo os riscos anteriormente feitos a carvão.
          As rápidas batidas do malhete sobre a extremidade do pequeno osso faziam com que agulha penetrasse na pele nua, provocando uma dor lancinante. Reinald, sentindo qualquer resquício de esperança abandonar-lhe o espírito, teve por diversas vezes espasmódicos enjoos, chegando mesmo a vomitar, sem qualquer sinal de atenção da perversa criatura que lhe profanava o corpo e a alma.
          As horas se passaram e o trabalho de tatuagem avançava sobre todas as partes do seu corpo, agora uma pústula de cor amarronzada, uma vez que a velha não limpava a pele por onde já havia trabalhado, deixando o sangue misturar-se à tinta preta. Durante muitas horas, apenas o tac tac tac de osso sobre osso e a dor foram seus companheiros.

          Quando a horrenda anciã sentia-se cansada, interrompia o trabalho por algumas horas, retornando mais tarde para continuar a sua sádica faina, fazendo-se completamente surda aos seus suplícios e apelos.
Tantas foram as horas de cruel sofrimento, que de um ponto em diante, a dor parecia ter sumido. Sua mente vagava pelas infindáveis e intrincadas fronteiras entre a sanidade e a loucura. A velha, percebendo o fato, chamou-o novamente à realidade com duas bofetadas à face dizendo:
          - Acorde, meu rapaz, esta fase de sua preparação está concluída; e já que está divagando em sabe-se lá quais sonhos, nada melhor do que uma experiência mais profunda e inspiradora para animar-lhe a ser uma boa oferenda aos servos da escuridão. - Dito isso, apanhou o punhal e abrindo-lhe as pernas, acariciou seus órgãos genitais com olhos ávidos.
          O gesto conseguiu o intento de esmaecer imediatamente o torpor que o acometia. Reinald, intuindo a intenção da velha, disse com voz amedrontada:
          - Espere! O que está pensando em fazer? Por favor, nãoo!
          - O ato da castração tem um significado simbólico muito profundo. A renúncia da masculinidade simboliza a renúncia da firmeza da vontade, do ego, da sua própria individualidade em detrimento de uma entrega total àqueles a quem será oferecido. As criaturas reconhecem o ser masculino e não o aceitam como oferenda; por isso, se a oferenda é masculina, através da castração torna-se feminina.
          Ato contínuo, sem dar-lhe tempo de emitir qualquer súplica, afundou a lâmina em seus testículos.
          O ato, tão rápido quanto dramático, provocou um turbilhão de dor e pânico muito além do suportável a qualquer pessoa. Ao sentir o aço frio dilacerando-lhe a masculinidade, retesou-se de tal forma a ponto de estourar as correias; porém, as correias eram muito fortes, tão fortes, que nenhum ser humano seria capaz de rompê-las. Um gutural e angustiante gemido foi a sua última ação antes de desmaiar.
          Acordou com a cabeça zumbindo, como se um ninho de vespas tivesse se alojado nela. Olhou em volta; não estava mais amarrado. Logo reconheceu a cela onde estava antes de o levarem ao templo.
         Ao se lembrar de como havia desmaiado, um arrepio lhe correu a espinha. Levou instintivamente as mãos ao meio das pernas; uma dor aguda e novamente o desespero: havia apenas uma grande pústula com as abas inchadas e infeccionadas no lugar onde antes residia sua masculinidade.
          A velha maldita havia lhe castrado, de fato! Mas como não morrera? Haveria de ter se esvaído em sangue, o que teria sido uma bênção.
Estranhamente, ao invés de, como sugerira a velha, ficar apático e desalentado, uma grande raiva invadiu sua mente. Haveria de aplicar todo o restante de suas exauridas forças para se vingar daqueles desgraçados, mesmo que para isso tivesse que morrer. Nada mais importava agora: somente o ódio e o desejo de vingança lhe animariam a continuar vivo.
          Viu, no canto, sobre uma mesinha, uma tigela com água, dois pequenos pães e duas fatias de queijo. Apesar da situação, estava faminto e comeu com avidez, recompondo um pouco as forças.
          Algumas horas depois, os dois servos entraram na cela, amarraram-lhe os pulsos e novamente o levaram. Reinald caminhava com dificuldade por causa da horrenda ferida que vazava uma mistura de pus e sangue , escorrendo-lhe pelas pernas nuas. Foi conduzido mais uma vez ao templo, onde o esperava o velho Mccormick; ao vê-lo, Reinald faiscou um olhar de ódio.
          - Maldito! E maldita também aquela velha asquerosa! Vocês vão me pagar por tudo isso!
          O velho ignorou-o, ordenando aos lacaios que o levassem para trás do altar onde havia um estreito túnel, por onde continuaram caminhando. O túnel, uma galeria natural, continuava por cerca de 20 metros, desembocando em um grande salão de pedra calcária, iluminado por archotes presos às paredes por anéis de ferro, cuja luminescência dava contornos espectrais às muitas estalactites que pendiam do teto. As paredes estavam forradas com sinais semelhantes aos tatuados em seu corpo. Da metade para frente, o chão da gruta inclinava-se e as laterais afunilavam, terminando numa parede mais achatada, onde havia uma grossa porta de madeira com reforços de metal, cujas dobradiças eram cravejadas diretamente na rocha.
          Próximo à tosca porta encontrava-se um braseiro, também de metal ao lado do qual, a velha remexia as brasas, jogando sobre elas grandes punhados de folhas. O mesmo cheiro nauseabundo que já havia inalado quando estava preso no templo enchia o ambiente.
          Ao ver a velha, Reinald teve um ímpeto de ódio tão intenso, que seus olhos amiudaram e seus doloridos músculos se retesaram, numa ânsia de se desvencilhar das cordas que prendiam seus pulsos para trás. Seus dois condutores perceberam, e, rindo empurraram-no com violência até a frente da velha.
          - Bem-vindo, meu rapaz, vejo que meus unguentos contiveram o sangramento em sua chaga. Bem-vindo! É chegada a hora mais especial da sua trajetória. Logo você terá a honra de conhecer aqueles que habitam a escuridão.
          Compreendendo que, atrás daquela porta estava a sua perdição, Reinald explodiu em fúria, e arremessou-se de cabeça contra a pérfida velha. O ato, inesperado, pegou a todos de surpresa e a cabeçada acertou em cheio, jogando a anciã sobre o braseiro. Esse, que era uma espécie de bateia que descansava solto sobre um arco de metal soldado a um tripé, caiu ao solo ainda com as brasas dentro, sobre o qual a velha, desequilibrada, estatelou-se, enterrando as mãos e os braços nas brasas. Seu vestido incendiou-se de imediato.
          Soltando horrendos berros, levantou-se com agilidade insuspeitada para a idade. Com as mãos em carne viva, ajudada pelos lacaios, conseguiu desvencilhar-se do vestido em chamas. Gemendo, sentou e contorcendo-se em dor fitou Reinald com ódio, proferindo diversos palavrões em uma língua desconhecida. Logo, pareceu arrepender-se e levantou-se com dificuldade. Estava, agora, seminua da cintura para cima; as tetas, longas e flácidas balançavam de maneira grotesca. Com a boca semi-aberta, de onde escorria uma baba grossa e amarelada, disse:
          - Ora, vejam: parece que nossa oferenda ainda não se desvencilhou totalmente de sua masculinidade. Mas deixe estar, bastardo, logo perderá esta fúria toda. Abram a porta! ordenou aos lacaios.
          Um rangido forte e o esforço dos dois homens denunciavam que a porta não era aberta havia muito tempo. Um túnel muito escuro, como uma bocarra negra, engolia toda a luz, sem deixar entrever o que havia lá dentro.

          A velha, depositando mais um punhado de folhas no braseiro - agora, restabelecido ao seu lugar-, entoava novamente e com mais força a sua cantilena; as espirais de fumaça entravam pela porta e sumiam dentro do túnel.
          Reinald foi compelido a beber à força o conteúdo de uma caneca; um líquido viscoso e de sabor muito amargo. Depois de alguns minutos, as paredes da caverna pareciam iluminar-se; um redemoinho de cores brincava ao seu redor e um vigor anormal tomou conta do seu corpo. Era, na certa, o efeito alucinógeno da droga que acabava de tomar. Não conseguia mais raciocinar; sua mente viajava em sensações indescritíveis, até que, depois de algum tempo - que não sabia distinguir se tinham sido minutos ou horas, voltou à realidade; porém, agora, seu corpo parecia recuperado dos efeitos dos flagelos sofridos anteriormente. Nenhum dos ferimentos, nem mesmo a ferida de sua castração, doíam mais.
          Logo após, foi empurrado pelos lacaios para além da porta, que se fechou com um baque surdo às suas costas. Fixando os olhos no interior do túnel, tudo o que via era uma escuridão intransponível. A angustiante sensação de ser engolido por aquela negritude absoluta, quase palpável, tomou conta de seu ser. Seus músculos se retesaram, esperando ser atacado ali mesmo e devorado por sabe se lá que horror.
          Passados alguns minutos, nada aconteceu. Tateando, procurou seguir em frente; era como se tivesse completamente cego. Nada via, nada ouvia, apenas o roçar de seus próprios pés e mãos sobre a rocha fria daquele lugar amaldiçoado.
A inquietante sensação de ser observado tomou conta dele; ruídos furtivos, tão leves que mal se ouviam, mesmo naquele silêncio sepulcral denunciavam a presença de alguma coisa na escuridão. O ar tornou-se pesado, carregado de um odor exótico; não que fosse um mau cheiro: era diferente, difícil de determinar; algo que mexia com seu sistema nervoso e provocava uma excitação anormal. De repente, pequenas fontes de luz acenderam ao seu redor. Eram olhos; olhos de uma luminescência amarelada que piscavam continuamente; poucos no começo, logo se tornaram muitos.
          Sentiu, roçando em sua pele, alguma coisa viscosa; toques de membros gosmentos, parecendo mãos, braços e pés de tamanhos desproporcionais para a altura em que se situavam os olhos; também havia a sensação de pedúnculos, como se fossem pequenos bulbos roçando todo o seu corpo. O cheiro se acentuava, e a sensação de medo profundo transformou-se aos poucos em uma excitação cada vez maior, quase um êxtase orgástico.
           Ainda sentia medo, porém, havia uma ânsia por mais e mais toques daqueles membros nojentos. Reinald já não sabia onde se encontrava, nem o que estava acontecendo ao seu redor; muitas mãos agarraram-no, deitando-o ao solo, onde a poeira acumulada, em contato com os corpos gosmentos transformava-se em lama. Corpos se esfregavam nele com volúpia, como se fossem cobras malditas a se contorcerem de encontro ao seu. Sentia membros sexuais enrijecidos tocando sua pele, seu rosto, sua boca, seu ferimento, seu ânus, e não conseguia esboçar qualquer oposição. Penetravam-lhe agora por todos os orifícios, inclusive na ferida infeccionada por onde escorreu uma densa cascata de pus e sangue. Um medonho êxtase tomou conta dele; viajava a um céu negro, abismo arrepiante de delicias profanas, onde nenhum ser humano jamais sonhou penetrar. As primeiras mordidas de dentes afiados provocavam uma dor intensa e, ao mesmo tempo, extasiante. Sentia-se parte deles; esfregava-se a eles voluntariamente, deliciando-se em ser devorado em suas carnes, numa libação carnal apavorante. Aos poucos, todas as sensações foram sumindo...sumindo...

FIM

Comentários serão muito bem vindos, mesmo os que forem críticas....como no dito popular: Falem, mesmo que falem mal, mas falem!!!
Laucio Evaristo
Enviado por Laucio Evaristo em 10/11/2011
Reeditado em 19/12/2011
Código do texto: T3328891