Superfície
Nota: Sempre tive dificuldades em classificar os meus contos. Publico neste espaço poir mera fora do hábito.
Té mais.
Superfície
Por Ramon Bacelar
Janeiro 2011
Murilo contemplava a imensa lâmina de prata que era o Lago dos Reflexos no fim da tarde com inefável interesse. Não fossem as sutis ondulações e súbitas erupções promovidas pela movimentação dos patos e trutas, poderia muito bem passar por pinceladas Pré-Rafaelita em fundo azul celeste.
-Ainda se admirando Senhor Narciso?
Não foi preciso se virar para identificar as palavras e entonação irônica do colega.
-Não fala mais com os amigos? – continuou Carlos.
-Claro Senhor Ironia. – balançou a cabeça.
-OK, desculpe; sinceramente Murilo, de uns tempos para cá... – mediu as palavras –... Conversa pouco, quase não vai ao boliche e menos ainda lá em casa; até mamãe anda comentando.
-Você está exagerando. – a voz saiu flácida e impessoal, como se a superfície vítrea do lago sugasse seu interesse.
-Exagerando? – arqueou as sobrancelhas - Levante a cabeça, tire a poeira e saia...
-Gosto daqui. –interrompeu bruscamente - Além do mais, já fico muito tempo em casa. Pelo menos tenho ar fresco e posso... esperar. – suspirou - Diga a sua mãe que no fim de semana irei visitá-la.
-Esperar? Meu caro, eu falei para você sair... - apontou para a testa do amigo -... de dentro da sua cabeça.
Silêncio.
-Vai ficar parado aí contemplando o vazio pro resto da vida? Esperando não sei o quê?
-Você sabe o quê. E têm medo que seja verdade.
Carlos tocou nos ombros do amigo.
-Medo? Sim, mas eu temo pela sua sanidade... E a minha se continuar conversando contigo.
Murilo se virou e examinou o banco à sua direita.
-Está vendo?
-Vendo o quê?
-Aqui. – apontou para a lateral do banco – A mancha do batom... Quando encontrei a garota dos olhos azuis escorada bem aqui.
Carlos preferiu não ironizar. Encostou o dedo indicador do amigo na mancha e continuou.
-Olhe bem, não é batom... Só uma palavra solta escrita com outro material. – olhou-o nos olhos – A garota dos olhos azuis não existe, não e-xis-te. Você deveria...
Antes de Carlos concluir, Murilo se afastou e novamente contemplou: esperou.
10 de Novembro de 2010
-... Garota? Garota está me ouvindo?
- Desculpe, ontem perdi a noite. Estou tão cansada que acabei cochilando neste banco duro.
-Posso? Queria respirar um pouco antes de voltar para casa.
-Claro, pode sentar.
-Você vem sempre aqui? – Murilo se aproximou olhando-a de lado.
-De vez em quando; esse lago é tão...
-E de um azul como seus olhos.
-Quê?!
-Desculpe, estava pensando alto. – suspirou - Bem... Alto.
Silêncio.
-Garoto... Garoto está me ouvindo? – imitou-o com sua entonação – Está cochilando alto? – Riu para si mesma.
-Desculpe, é que... Ei... Garota?
Murilo examinou seus arrredores em um giro de trezentos sessenta, mas o que retornou foi um mosaico úmido de silêncio e realidade azul-prata.
-Cadê você?
Janeiro 2011
-Quer dizer que vai continuar nessa?
Insistiu.
-Aproveita e dá um mergulho para limpar a mente.
Murilo não reagiu ao sarcasmo do amigo, mas pediu-o para se aproximar do lago.
-Sim... Doutor Introspecção? – tocou nos ombros seguindo-o com os olhos.
-O que você vê? - olhou para baixo.
-O que eu vejo? Huumm.. Com certeza... - coçou a barba -... Não o mesmo que você.
Murilo parecia não se incomodar; Carlos continuou.
-Água ora.
-Olhe com atenção. – o tom devocional denunciou mais que escondeu.
-Sim, atenção... Muita, muita, muita água; bem molhadinha! – gargalhou.
O amigo não insistiu nem retrucou: silenciou.
17 de Novembro 2010
-Olha quem está aqui. Quem é viva sempre aparece fujona.
-Será que sou... Estou? – retrucou em tom questionador.
-Com esses azuis vivos ... Não têm como não estar. – “Essa foi péssima.”, pensou.
-É sua palavra predileta não é?
-Azuis, garota ou... – olhou para o lago sem prosseguir.
-Você sabe.
-Agora é. – encarou-a como se contemplasse um mistério celeste.
-Depois de uma dessa acho que estou viva... mesmo. – riu com as mãos na boca.
-Não foi uma cantada. – ponderou. - Encare mais como uma tentativa de... O que está fazendo?
De costas para Murilo, rabiscava letras no encosto do banco com um giz.
-Garota misteriosa.
Silêncio.
-O que você escreveu?
-Não escrevi.
-Que?
-Exorcizei.
No encosto do banco, curvas bruscas e ângulos nervosos gritavam uma palavra solitária em giz vermelho-sangue: SUPERFÍCIE.
- Exorcizou? Tão bonita quanto estranha. Sua palavra predileta.
-Não. – respondeu secamente.
O azul de suas órbitas pulsava como dois oceanos lânguidos.
-Não?
-Gosto de expelir o que me faz... Sei lá, me sentir... Menor? Insignificante? Gosto mesmo é de sangrar. – Olhou para as letras vermelhas como se respondesse para si mesmo.
-E logo uma palavra tão rica em potencialidades e sugestões, tão real.
-Mesmo?
-Olhe para a superfície do lago.
-Real? – Piscou os olhos.
Olhou:
Círculos concêntricos ondulantes, extinguindo-se na totalidade aquosa como anéis de fumaça úmidos.
Atentou:
Penas levadas ao vento, tocando a superfície laminada com a leveza de dentes-de-leão.
Contemplou:
Bolhas semi-liquescentes, revestidas em reflexos multicores, explodindo em gotículas e consistências de cristal líquido.
Encarou:
Rajadas de vento frio, sulcando a placidez da vida úmida como invasores invisíveis.
Não sonhou nem imaginou, simplesmente abarcou:
Cores e transparências de pureza e harmonia Pré-Rafaelita, clamando território como um conforto onírico na rigidez acadêmica de uma pintura realista.
A garota mergulhava com os olhos, contemplava com os sentidos, mas parecia não se comover.
-Então?
-Acho que não me expressei corretamente.
-Sim?
-Não é a beleza. Nem o lago em si. – mordeu os lábios - O problema talvez seja... – “Comigo?”, pensou. - Talvez esteja em todas as superfícies... Ou em tudo que... – ponderou batendo a palma da mão no banco.
-Em tudo que? Dama Misteriosa.
Retirou o giz da bolsa e escreveu na superfície ao lado da outra palavra: SOLIDEZ.
-Superfície e solidez. – Murilo girou o pescoço. - De onde vens e quem és tú... – simulou um gesto afetado com as mãos e olhou para o céu. - ... Ò alma misteriosa feita de azuis, languidez e vapor!
Ela continuou.
-Talvez seja apenas comigo, mas... - pausou -... Superfícies são previsíveis, reducionistas, enganadoras e desinteressantes; carentes de potencialidades e vazias de significado; no fundo... Não têm fundo. –riu - Não passam de... Superfícies.
-Está falando em aramaico?
-Olhe para o lago.
-Minha vez?
-Sim.
-Bonito?
-Lindo.
-Já imaginou abaixo da superfície?
-Claro.
-Mas, só imagina não?
Murilo não respondeu.
-Aí é que está o problema; para você mergulhar é preciso aprender a nadar, e como qualquer aprendizado envolve riscos... E quando aprendemos, trocamos os riscos por outros, porque precisamos por em prática nosso aprendizado com mergulhos em águas mais e mais profundas, escuras e misteriosas... ad infinitum. A vida é tão curta.
Silêncio.
-Onde você quer chegar com esse papo?
-Lá. – olhou para o lago – Superfície é o aspecto menos interessante, porém mais seguro de qualquer...
-Que tal mudar de assunto?
Continuou.
-Aquela pessoa que você detesta, mas sabe que precisa dela, e ela sabe que você sabe, e você também. – riu - Uma relação de amor e ódio, um mal necessário.
Murilo não replicou, ela continuou.
-É no fundo que se escondem os tesouros e perigos. Vale à pena? Olhe...
-Prefiro olhar para você. – interrompeu bruscamente.
-Dá no mesmo. – riu – Você nunca vai me conhecer. Se não aprender a nadar e mergulhar... Não passam de tentativas... Meras tentativas.
-Preciso me beliscar.
Olhou-o nos olhos.
-Ninguém, ninguém conhece ninguém.
Murilo sentiu um frio cobrir a espinha como uma manta gélida: as palavras solidificaram, afogaram na saliva.
-De certa maneira, solidez é uma extensão ou até sinônimo de superf...
-Que tal mudar de assunto de uma vez por todas?- suspirou. - Você às vezes me assusta com essa conversa misteriosa.
Encarou-o tocando em suas pálpebras:
-Tampe os ouvidos e feche os olhos.
-Como?
-Vamos relaxar. – falou em tom brincalhão - Quando eu tocar em seus lábios você abre os olhos.
Silêncio.
Ele aguardou: ela tocou... Abriu.
-Ei...
Murilo destampou os ouvidos e girou o pescoço, mas não foi o suficiente para silenciar o silêncio nem preencher o vazio que envolvia a paisagem como uma ausência invisível.
Abaixou o pescoço.
-Cadê você?
Janeiro 2011
-Vamos sentar um pouco.
-Estava sentado.
-Ok, ok... Plano B em ação. – Carlos tentou outra via de acesso - Quero te ajudar meu caro.
-Claro!!
-Nunca vi você falar desse jeito.
-Ironia é contagiosa, não sabia?
-Tá bom, tá bom, não deveria ter falado com você daquele jeito. – suspendeu as mãos – Mea culpa, mea culpa.
Silêncio.
-O que você pretende Murilo?
Carlos continuou.
-Você sabe por que vim aqui?
-Pelos mesmos motivos de sempre. – as palavras escaparam com acidez ríspida.
-Sua família me procurou; estão preocupados com você. O Júlio me falou que essa sua fixação com a garota pode ser mais um sintoma da sua...
-Eles também!
-Também! Estão saturados com essa história de “a garota dos olhos azuis”... O profundo mar azul, o azul-prata do lago... O azul celeste disso, o azul piscina daquilo, a merda cerúlea de... – Carlos suspirou como se asfixiasse ondas de temor e ironia. - “Não agora.” pensou. – Às vezes você me passa a impressão de... – pausou medindo as palavras -... Sei lá... usar a cor como um gancho (desculpa?), lembrete ou gatilho psicológico, uma justificação para a perpetuação de uma fantasia, um conforto ilusório: o azul dos olhos de uma ilusão lhe vigiando, perseguindo, possuindo e controlando.
-Acredita mesmo no que está falando, Senhor Freud?
-Jung... ooppss!
Carlos puxou as rédeas.
-Ninguém nunca a viu no boliche, em sua casa, muito menos neste parque... Nem você.
Murilo riu, mas não retrucou.
-Exagero?
-Você...
-Olhe para sua roupa! – interrompeu bruscamente. - Qual a cor? E sua meia? Será que são do mesmo tom da superfície do lago ou de seus borrões no canvas que você gosta de chamar de... Como é mesmo? “Representações abstratas de estados de espírito em pinceladas livres azul-cerúleo?” ou “Órbitas celestes ocultas em transparências azul-royal.” – tocou nos ombros do amigo antes de tomar fôlego. – Acho que são da mesma cor dos olhos da sua garota.
-Acabou?
-Não.
-Quer mesmo me ajudar, ou me convencer de verdades que não acredito?
Carlos avançou como se adentrasse um campo minado.
-Sua mãe me pediu para não tocar no assunto até conversarem com você. Mas preciso te falar antes de minhas férias.
-Que assunto?
Era como se o éter solidificasse em um iceberg de temor e silêncio.
-Desembucha meu caro.
-Amanhã o doutor Ambrósio estará te esperando.
-Como?
-Você terá que retornar à clínica para continuar o tratamento.
-Mas não houve interrupção.
-Segundo o doutor, se fez necessário um período de observação. Os procedimentos da segunda etapa estarão intrisincamente ligados às conclusões da primeira.
Murilo sentiu a textura das palavras do banco com os dedos e olhou para o lago.
-Superfície e solidez, palavras menores e mesquinhas, reducionistas e limitadoras, sem dimensões nem possibilidades, queria mesmo...
Carlos balançou o amigo.
-Desculpe estava pensando alto. –abaixou a cabeça.
-Olha Murilo, não foi só pela sua família que vim lhe ver, e confesso que estou arrependido pela maneira como lidei com o assunto. Para falar a verdade não viajaria sossegado se não falasse contigo.
-Você sabe há quanto tempo te conheço. Se você não tivesse esses defeitos, não seria o Carlos que conheço. – sorriu para o amigo.
-Vai se cuidar?
-Amanhã conversarei com o doutor, antes de falar com mamãe.
-Isso meu caro.
-Só que a garota...
-A garota não... – arqueou as sobrancelhas em arrependimento. – Então? Vamos comer alguma coisa? Meu vôo sai às 14:00 e só vou te ver daqui há dois meses.
-Acho que vou ficar por aqui.
-Mesmo?
Silêncio.
Murilo não insistiu.
-Ok, se vai continuar contemplando... Até mais.
-Não estou contemplando.
A observação de Murilo intensificou o silêncio que se seguiu.
-Estou esperando. – olhou pro lago.
Carlos engoliu em seco.
-Boa viagem, amigo.
-Se cuida rapaz.
Virou as costas e sumiu na luminosidade do início da tarde. Murilo não contemplou: esperou.
2 de Dezembro 2010
-Está me esperando?
-Olha quem apareceu. A garota invisível que vem do nada e some como... – estalou os dedos. – ...Puufff.
-Quem dera.
-Hein?
-Queria que fosse assim.
-Assim como?
-Sem peso, gasosa, quase invisível e livre como... Como...
-Sim, Senhora Enigma?
-Sem superfície nem solidez, uma imprevisibilidade de mercúrio e acaso. Deveria ser assim né?
-Vai começar com esse pseudo-sei-lá-o-quê? Não, não deveria ser assim.
-Já imaginou?
-O quê? Qual o problema?
-Isso - apontou -, superfície e solidez.
Tocou-o na mão sentindo sua textura como se examinasse um carvalho centenário.
-Somos presos a carne, rigidez, superfícies e aparências. Dominados pela rotina e previsibilidade.
-Acho que sei o que quer dizer garota. – apontou para o céu. – Acho que todo mundo, em algum momento, mais cedo ou mais tarde, almeja uma liberdade absoluta não? Tenho inveja daquela pomba.
-Eu não.
-Não?
-Estou me referindo a algo mais... – olhou para cima - ... Solto? Um pássaro é livre até certo ponto. Assim como nós, está preso à carne e uma rotina, talvez mais previsível e tediosa que a nossa; além do mais para voar é preciso um membro que lhe permita tal ato. – pausou. – Para voar é preciso, primeiramente, estar preso a uma asa.
-Nossa, que papo é esse!
-Mercúrio, água, liquidez, fusão, transmutação: acho que é por isso que eu adoro aquela canção.
-Qual?
Abriu os olhos:
-... Uma metamorfose ambulante. Inconstante, inefável, mutável, incompreensível, inatingível, imprevisível... Leve, livre e solta.
Tocou-a nos lábios de olhos fechados.
-Superfície e solidez: Quanto menos te conheço, mais gosto de você. – cochichou em seu ouvido. – E olha que não sei nadar. - Beijou-a no rosto.
Ela afastou os lábios acariciando sua mão.
-Acho que todo mundo, em algum momento, quer ser outro; outra coisa. Quando eu era pequena cismei que queria ser... – riu balançando a cabeça.
-Você me lembra a minha avó.
Ela não respondeu, Murilo prosseguiu.
-Quando eu era criança, ela me falava que era só desejar e fechar os olhos colocando o dedo mindinho em cada pálbebra que... O que está fazendo? – gargalhou.
-Eu quero... Quero...
-Você está usando o indicador, é com o mindinho e com os olhos bem fechados.
A garota parecia se divertir com a simpatia, Murilo continuou.
-Tem outra em que você cruza os dedos e imagina...
-Vamos para o lago. – interrompeu.
-Vamos, está quente demais.
Sentaram na beira.
-Eu quero...
Murilo segurou os dedos.
-Primeiro você coloca os mindinhos em frente dos olhos bem abertos, depois os fecha devagarzinho e deseja. – simulou.
-Eu quero...
-Não, assim não; é preciso desejar pensando. - fechou os olhos simulando.
-Sim.
-Meu professor me falou que é bom para estimular a...
-Sim!!
“ADEUS.”
-Que?
Olhou para o lago.
De expressão confusa e tonalidade azul piscina, encarando Murilo com lábios transparentes e olhos ondulantes, seu reflexo no lago retornava seu assombro com intensidade redobrada: ao seu lado, onde antes uma garota de olhos azuis desejava secretamente, agora uma ausência silenciosa ocupava o espaço como um desejo intangível.
-Cadê você?
Murilo esperou.
10 de Março 2011
O terceiro toque da campainha retirou-o do seu cochilo matinal.
-Carlos! Como têm passado meu caro! – a surpresa inundou o colega com ternura incontida.
-Eu é que pergunto teimosão. – abraçou-o.
-Estou bem. Apenas uns exames de rotina e um acompanhamento psicológico. Recebi alta antes do previsto.
-Só um minuto. Vou falar com a dona Matilde; ela me ligou para reclamar da minha ausência.
-Estou sozinho, mamãe foi... – olhou para a cozinha. - ... Fazer a feira. Diga aí como passou as férias.
-Acho que o curioso sou eu, não teimosão? – O amigo riu.
Continuou.
-Você é outra pessoa, amigo; outros ares, isso é muito bom. Minha ausência lhe fez muito bem.
-Senti falta das suas ironias. – gargalhou. – Fiquei te devendo aquele almoço.
-Estou faminto!
-Nesse caso...
Cortaram pela escada de serviço, mas antes de saírem do estacionamento, um suspiro seguido de um lamento incomodou Murilo.
-E agora José? – falou assoviando como se pensasse alto.
-Algum problema Carlos?
-A bateria arriou.
-Vamos no meu. Na volta você aciona o seguro.
-Pode ser.
-Tem uma ótima churrascaria nova próxima...
-Vamos logo, sou capaz de devorar um boi com espeto, berro e tudo, múúúúúú´!
Cortaram pela avenida principal e seguiram pela orla.
-Não sabia que levava jeito para linha e agulha.
-Que? – a expressão de Murilo denotava mais curiosidade que apatia.
-Costurando os veículos como está, vai entrar no restaurante com fome e carro.
-Não estou com muita fome. Na verdade estou ansioso para te mostrar.
-Mostrar o quê? Não estamos indo para a churrascaria?
-Sim...
- Ei pé de chumbo, acabou de ultrapassar o vermelho.
-Vermelho? Não. Olhe para fora, lá em cima. – colocou a mão fora da janela.
Carlos não entendeu, mas não insistiu.
-Sol forte e céu limpo, sem manchas nem borrões, nada que perturbe a harmonia e consistência do azul, não?
-Que diabos você está falando, eu me referi ao semáforo!
-Infelizmente é vermelho. – continuou. - Ficaria mais interessante um alerta azul turquesa.
-Murilo, não é possível, você, você... Meu Deus. – arqueou as sobrancelhas abrindo as narinas. – Que cheiro é esse?
-Não notou nada diferente no carro? – apontou para o teto.
Abarcando-os de ponta a ponta, como um firmamento vertiginosamente espiralado composto em pinceladas soltas e bruscas, órbitas azul-celeste refulgindo nos centros de círculos concêntricos azul royal, contemplava-os com cílios imponentes e olhos de mistério: no centro de uma pupila abaixo de Murilo, uma série de estrelas arranjadas em posições irregulares gritava questionamentos em brilho azul-prata, como um misterioso alfabeto celeste: “Cadê você? Adeus?”
-Meu Deus... Você está bem?
-Ainda não está seco, mas o revestimento do teto absorve bem. Têm cheiro forte, mas não é tóxica.
-O que significa isso!
-Uma releitura de A Noite Estrelada do Van Gogh, mas achei por bem substituir as estrelas por olhos azuis. Não, não... Incorporei distintas intensidades de brilhos, refulgências e radiâncias estelares em seus olhos de estrelas. – petrificou subitamente como se invadido por memórias aparentemente extintas. - Muito mais sugestivo e poético não?
-Faça o retorno, almoçaremos com sua mãe.
Murilo mordeu os lábios antes de responder.
-Não têm almoço. Na verdade mamãe saiu para comprar meus remédios.
Silêncio.
-Pare, eu pego a direção.
-Desculpe amigo, esqueci de sua com fome; é bom apertar o passo.
-Olha o semáforo!
-Vermelho opaco. Azul é mais bonito e potencialmente mais sugestivo! – acelerou.
-O que está fazendo!
-É tudo tão sólido e superficial, eu queria ...
Engatou a quinta.
-Pare!
Não freiou: avançou.
-Livres, estamos livres !! – gargalhou.
Colocou a sexta.
-Pare!!
-Eu e ela, livres de tudo, sem asas no céu azul !!!
-Vai, vai bat... pare porraa!!!
O cheiro de borracha queimada invadiu as narinas no mesmo instante que uma cacofonia de gritos, buzinas e imprecações arremessou-o do seu casulo de auto-centrismo.
-Desculpe.
De cabeça baixa no volante, Murilo emitia uma mistura de lamentos e sussurros irregulares.
-Passe para cá rápido, vou estacionar.
Pegou a direção.
-Pronto, agora fique aqui enquanto eu ligo para sua mãe.
-Não é preciso. Chegamos.
-Onde?
Carlos não notou que a poucos metros à sua direita, o Lago dos Reflexos fazia jus ao seu nome anunciando em sua superfície vítrea a placa ondulante de um restaurante flutuante, pairando em suas águas com a serenidade e languidez de uma balsa solitária vinda de algum oceano dos sonhos.
-Vamos almoçar Carlos. Desculpe, agora estou melhor.
-Não, você não... Você... Ok . – suspirou.
Seguiram pela calçada em silêncio, porém antes de subirem a passarela que dava para a entrada Murilo estacou.
-Espere um pouco, preciso respirar um pouco.
-A gente toma algo para relaxar, você está tenso.
-Ali. – apontou para o lago.
Carlos não seguiu, mas observou-o sentar no mesmo banco próximo à beirada.
-Murilo, Murilo!
Após duas cervejas e quarenta minutos, decidiu buscar o amigo.
Mediu os passos na areia como se ganhasse tempo, antes de tocá-lo no ombro.
-Por que não vem?
- Veja que absurdo.
Apontou para o encosto do banco: abaixo das duas palavras, outra em giz vermelho sugava sua atenção: ADEUS.
-Não, nunca! – apalpava freneticamente a calça e camisa.
-Que merda tá fazendo?
-Acho que tenho um aqui no bolso. – falou para si mesmo.
Carlos observou-o escrever a lápis uma interrogação na última palavra.
-Lá !!
Engessado e sem capacidade de reação pelo grito, observou-o correr para a beira do lago. Sentou.
Silêncio.
-Murilo! Vamos!
À medida que se aproximava da beirada, Carlos achou ouvir risos abafados por baixo da pressão ventosa. Olhou para trás sentindo o burburinho urbano como silêncios móveis: um psicodrama cotidiano resvalando em uma fortaleza invisível.
De costas, sentado na margem de concreto de cabeça baixa, Carlos visualizou-o como um fantoche desconexo à espera do seu destino.
-Então, qual a piada risadinha? – ajoelhou-se tocando nos ombros; de olhos vidrados nas ondulações, o amigo parecia rir em sintonia com os movimentos aquáticos.
-Eu sabia.
-Vamos almoçar.
-Olhe... Olhe bem fundo.
-Vamos almo... – parou bruscamente. “Vai começar de novo.”, pensou.
Resolveu fazer o jogo.
-O que você vê?
- O mesmo que você, o lago hoje está bonito.
- Não, na superfície não; ali, bem no fundo. - apontou com o indicador.
- Sim, três filhotes de truta ao lado de... de d...
Murilo riu olhando para o amigo.
- Murilo... O que é ... Meu Deus... meu... o que... que...
Carlos não entendeu, mas emudeceu quando da periferia da visão, vislumbrou dois olhos azuis se perdendo no fundo do lago em um sutil movimento de leveza e liberdade.
FIM