O Encontro com os Üdernotsd
O Encontro com os Üdernotsd
Um vento gelado fez Will voltar a si. Ele não sabia quanto tempo ficara desacordado, estava tonto. Aliás, ainda permaneceu desorientado por um bom tempo após recobrar os sentidos. E, na verdade, achava que seria melhor não ter acordado. Um suor frio escorria pelo seu rosto e tremores começavam a sacudir-lhe o corpo de modo incontrolável, novamente. Em poucos minutos, voltou a perceber a gravidade do que estava acontecendo. O cheiro de sangue o deixava enjoado e, tristemente, denunciava sua presença. Totalmente desperto e ciente da realidade, ele não conseguia definir se tremia de fraqueza, dor, frio ou medo.
A pequena fresta entre as tábuas envelhecidas da pequena torre sul deixava entrar o vento gelado e alguma luminosidade. Um luar de tons azulados, mesmo com o nevoeiro, permitia uma boa visão do que acontecia ao redor do casarão. Nada se movia. Estranhamente, aquela ausência não trazia conforto. Ele sabia que poderia ser apenas uma questão de minutos até ter que usar a faca novamente. E, o pior, a morfina estava no fim.
Em meio aos delírios e tremores que tomavam seu corpo, pensava em Brian. Sonhava com tudo o que aconteceu antes de chegarem até ali e desejava nunca ter se atrevido a velejar naquela direção. Partiram de Mouth Harbour, em Dunbar, condado de East Lothian, na Escócia, no início da primavera. Aquela viagem era apenas mais uma dentre as muitas que Will e Brian, seu melhor amigo, já tinham empreendido. Normalmente tomavam o rumo sul. O Archibald, um veleiro branco de 24 pés, cortava as ondas com elegância e se dava muito bem em águas mais quentes, assim como os dois aventureiros. As belas garotas da Côte d’azur, o sol quente e as areias brancas do Mediterrâneo, tinham seus atrativos. Mas especial predileção eles nutriam pelas ilhas gregas. Ios e Mikonos sempre faziam parte do roteiro, além das ilhas que costumavam chamar de “desinibidas”, onde podiam ver mulheres nuas à vontade. Mas desta vez procuravam algo diferente.
Nesta última viagem juntos, desgraçadamente, decidiram mudar de ares. Traçaram rumo norte, atraídos pelas belas paisagens dos fiordes noruegueses e pelo mistério do desconhecido. Era a primeira aventura em águas do Mar do Norte. Chegaram às docas ainda muito cedo. Após as verificações de praxe, se fizeram ao mar. Velas enfunadas e sem rizes faziam o Archibald pinotear graciosamente sobre as ondas do canal. Brian gostava de ficar sobre o gurupés de braços abertos. “Mania de Titanic”, pensava Will, sem se importar. Pararam em várias cidadezinhas ao longo da costa da Noruega. Quanto mais avançavam para o norte, mais fria e bonita ficava a paisagem. Fiordes de centenas de metros, inicialmente cobertos por uma capa de um verde deslumbrante, foram, com o passar dos dias de viagem, dando lugar a montanhas estéreis, pintadas de branco.
Cansados do frio e satisfeitos por ter chegado tão longe, resolveram atracar em uma minúscula vila de pescadores. Ficava no fundo de uma grande enseada protegida por picos nevados. Jörgmen Sea era o nome do lugarejo. Precisavam reabastecer o barco de combustível e mantimentos, cerveja inclusive. O pessoal simples recebeu os visitantes com hospitalidade, mas com ar desconfiado. Não estavam acostumados com forasteiros. Porém, nada há como umas canecas de cerveja para quebrar o gelo. Em meio a uma confusão de norueguês, inglês e dialetos diversos, descobriram que os eventuais olhares severos que eram disparados contra eles, quando os pescadores falavam em “Üdernotsd”, nada mais eram do que preocupação. Aquela palavra estranha atiçou a curiosidade dos rapazes.
Perceberam a advertência, mas achavam a história muito bizarra. “South, Tree, Fiord”, eram palavras repetidas á exaustão. Gargalhadas para cá e para lá quando ouviam aqueles nomes estranhos, faziam os nórdicos ficarem de olhos arregalados. Saciados e cansados, foram para o barco passar a noite em meio a risadas e tropeços. “O que esses caras colocam na cerveja?” Perguntou Brian, com cara de bobo, antes de deixar tudo o que tinha e o que não tinha dentro do estômago logo na entrada do píer. “Brian esta com a razão”, pensava Will, aquela cerveja mais parecia uísque com espuma.
O sol bonito, e raro naquelas latitudes, contrastava com as caras amarrotadas no dia seguinte. Brian soltou as cordas e puxou as defensas enquanto engolia goles e mais goles de sal de frutas. A velejada prometia. Foram melhorando da ressaca com o vento frio e constante que batia em seus rostos. Ao final da tarde, como era previsto, estavam próximos a terceira enseada, sul. Lembraram dos pescadores, os amigos da cerveja atômica. Como o sol se punha e precisavam de um lugar para passar noite, decidiram visitar os tais “Üdernotsd”. Fosse lá o que fosse isto. “Quem sabe até tiramos umas fotos com eles para mandarmos para nossos amigos de Jörgmen Sea”. Propôs Brian, alegremente. Fundearam o Archibald em local protegido e foram com o bote até a base da montanha. Dava para ver o casarão lá no alto. A escalada foi puxada, mas não muito difícil. Mesmo com um risquinho de sol ainda no horizonte, a lua já despontava. Seria uma noite de lua cheia.
A casa estava caindo aos pedaços. Dava até medo de entrar naquela construção abandonada. Não que temessem algum fantasma ou outro tipo de entidade do terceiro setor, mas aquilo poderia cair na cabeça deles. De qualquer forma, impelidos pela queda vertiginosa da temperatura, resolveram armar a barraca na sala do casarão. O cheiro de mofo incomodava um pouco, contudo, o cansaço e o calor dos sacos de dormir facilitaram o sono.
Will acordou repentinamente. Sons grotescos vinham do lado de fora. Brian estava em pé junto a uma das janelas, tentando ver alguma coisa. Will perguntou o que estava acontecendo, mas seu amigo fez sinal para que se calasse. Ele, então, juntou-se ao companheiro para ver de onde vinham sons tão assustadores.
Inicialmente, mesmo com o luar, foi difícil ver alguma coisa. Mas os uivos e os gritos estavam mais próximos a cada instante que passava. “Temos que sair daqui!” Gritou Brian. Will teve que segurá-lo para que não saísse porta a fora. Seria um suicídio. A esta altura, eles já conseguiam ver, através das pequenas aberturas, a origem daqueles berros indescritíveis. “Não são humanos” disse Brian, com os olhos parados, como se estivesse hipnotizado. Ficaram apenas olhando as criaturas por algum tempo, enquanto elas se aproximavam, sem saber o que fazer. Era evidente que aquelas coisas sabiam que estavam ali. Eram esquálidas, pálidas, grotescas e enormes. Mãos com garras assustadoras começavam a forçar a porta. Pegaram suas mochilas e correram para a escada que dava acesso ao andar de cima. Tudo ocorreu muito rápido. Will ouviu quando Brian gritou, e olhou para trás. Duas das criaturas puxavam-no pelas pernas. Quase paralisado de medo, Will viu o terror nos olhos do amigo, e a gula no olhar das criaturas. Ele nada conseguiu fazer para ajudar Brian. Assim que as criaturas saíram arrastando seu amigo, Will correu até a janela, mas quisera não ter feito isto. Ver aquelas coisas arrancando os membros do seu amigo, ouvir seus gritos enquanto era devorado ainda vivo, nunca mais sairia de sua mente.
Os seres disformes carregaram o que sobrou do corpo de Brian para uma espécie de caverna que ficava numa dobra da montanha. Enquanto partiam, um dos menores, e mais grotescos, olhou direto para onde estava Will. Aquele olhar pareceu penetrar a madeira que o protegia, e trouxe a certeza de que voltariam. Ficou petrificado. Alguns minutos de um choro convulsivo afastaram o jovem velejador de sua vigília. Ainda apavorado, assim que se recompôs, foi procurar sua mochila. Precisava achar a faca. Era uma faca de um aço especial, muito duro e afiado. Trabalhou no escuro, não queria chamar a atenção, denunciar sua presença. Quando, finalmente, encontrou o que procurava, sentiu um sopro gelado logo atrás de si. Will foi virando a cabeça lentamente até se deparar com o que não queria ver. Olhos perversos estavam fixos nos dele. Correu para as escadas. Quando estava chegando ao andar superior, a criatura agarrou seu pé esquerdo. Lutou. Desferiu golpes e mais golpes naquela coisa. A enorme faca parecia não ter efeito nenhum contra ela. A adrenalina não deixava Will sentir, mas ele podia ver. A besta estava devorando seu pé. Em desespero, enfiou a lâmina afiada na própria coxa, logo acima do joelho. Com os golpes desesperados que deu e os puxões furiosos da criatura em meio a seus gritos de desespero e dor, a parte inferior de sua perna se soltou. Com olhos esbugalhados e respiração ofegante, Will ficou assistindo aquela coisa horrenda indo embora, devorando parte de sua perna.
A dor começou pouco depois. Muito ferido, mas consciente, ele via as golfadas de sangue que esguichavam de sua perna descendo escadas abaixo. Enfiou o dedo indicador na artéria femoral rompida para estancar a hemorragia e buscou o estojo de primeiros socorros dentro da mochila ao seu lado. Estava tonto, mas sabia que se desmaiasse seria o fim. Encontrou a morfina e aplicou na coxa. Alívio imediato. Sem dor, usou seu cinto para fazer um torniquete e se arrastou até perto da janela para poder ver o lado de fora. Queria estar preparado, caso voltassem. O cheiro do próprio sangue era seu pior inimigo naquele momento. Ele não tinha como se esconder. Lembrou de Brian. Talvez o fim dele tivesse sido melhor do que lhe reservava o destino. “Pelo menos foi mais rápido”, pensava Will. Tremores e calafrios voltavam a atormentá-lo. Mas ele sabia que sua única chance seria a chegada do sol. Caso as criaturas terminassem o banquete antes do amanhecer seria o seu fim, tinha certeza. Desmaiou.
Will voltou a si com o vento gelado esfriando o suor de seu rosto. Ainda era noite, mas não demoraria muito para raiar o dia. Seria sua salvação. Mas, então, com sobressalto, pensou ter ouvido aqueles uivos guturais novamente. Talvez fosse apenas o vento, talvez sua imaginação. O sol sairia em breve. Precisava distraí-los por algum tempo, pelo menos. De qualquer modo, sendo vento, imaginação ou outra coisa qualquer Will precisava estar preparado. Esticou a mão e apanhou sua faca, verificou o fio. Ele sabia que ela seria inútil contra aquelas criaturas, mas ainda sobrara um pouco de morfina e a outra perna. Estava decidido a ficar vivo. E sabia exatamente o que teria que fazer para ganhar o tempo necessário.