"Corpo Fechado"

Toda vez que um cientista consegue descobrir algo, é porque acidentalmente coloca um componente em estado crítico, aí acontece à fusão. Com isto são feitas descobertas que ajudam à humanidade. Comigo aconteceu, mas nunca fui cientista e experiência nunca foi meu forte. Morava eu em um barraco na Comunidade Bandeirante, antes favela do Sapé, divisa de São Paulo/Jundiaí. Embora não tenha estudado, sei ler e escrever faço bico de chapa (descarga de caminhões) e nos meus vinte e cinco anos, nunca deixei de ganhar o do aperitivo e o do rango. Nunca guardei dinheiro porque conheço gente que guarda, mas antes de fazer alguma coisa, vem alguém e limpa seu barraco.

Trabalhou, ganhou, mas não gozou. Guardou e dançou, meu nome é Antonio Donizete Reis.

Como sou órfão, meu nome era só Antonio Donizete e eu não tinha documentos. Na comunidade veio um pessoal do governo, a Assistência Social, e nos deu documentos. Eu não tinha sobrenome então lembrei dos reis e falei: "Também sou reis", e é por aí, então ficou. O cara da venda falou: "Ta errado. É rei e não reis.

- Te dou porrada, você entende de pinga, não de reis e acabou.

Daí meu nome Antonio Donizete Reis com muita honra. Quando falo meu nome todo mundo fica admirado, até falam: "Tem cara de reis mesmo.", eu fico todo metido, é isto aí. Mandei por um risco de ouro no dente e uso três correntes douradas das grossas, parece ouro. Bem eu tenho quase dois metros de altura. Sou magro, mas não é de fome não, jogo bola e trabalho feito louco. Quando ganho bastante, separo trinta ou quarenta contos, que coloco na roda para os amigos do copo tomar uminha por minha conta. Quando os trinta acabam, nem que desça o menino Jesus do céu... Só se beber fiado. Não empresto dinheiro para não perder o amigo, mas já fiz uma parada, para aliviar alguém em cana. Nisto todos da comunidade são unidos. Como todo mundo do morro, digo da comunidade, sou espírita, freqüento terreiro e tudo, até já fiz a cabeça. Outro dia baixou o pai de santo mandingueiro, que gostou de mim. Disse que iria me dar um presente. Tirou de dentro de uma sacolinha que trazia ao pescoço um olho de cabra. "Quando precisar coloca na boca e deixe o resto comigo". Agradeci, fiz minha oferenda e fui embora. Já tinha me esquecido do presente, quando voltava do trampo por volta de sete horas da noite. Você sai da pista, atravessa uma pinguela, depois começa a subir para o morro, digo a comunidade. Ao virar uma curva, encontrei o bicho, o pessoal do pavor, estava parado esperando o primeiro freguês. O sistema é o seguinte, você pega tudo que tem e segura na mão. Um deles vem e dá uma geral, se encontrar um fósforo, você vai apanhar muito. Senão pegam tudo e falam pra não olhar pra trás, aí você perdeu o dia vai para casa passa fome até conseguir outro dinheiro. Tem cara que nem trabalha mais, porque todo dia é pego pelo pessoal. Vi os caras a dez passos e pensei: dancei. Num reflexo coloquei a sementinha na boca, passei pelo meio deles esperando o comando que não veio aí corri para casa ajoelhei no chão da cozinha e rezei e agradeci meus santos protetores. Havia ganhado duzentos e oitenta reais de novo.

Antonio Donizete Reis.

Filho de mãe solteira cresceu na comunidade, vivendo da caridade dos vizinhos. Sua mãe empregada doméstica, um dia cansada de trabalhar e não ver futuro nisto, tomou juntamente com cerveja, uma lata de formicida, veneno para insetos e descansou desta vida sofrida. Antonio Donizete desde cedo com a falta da mãe, começou a se virar. Fazendo biscates, hora vendendo algo, hora trabalhando em serviço braçal, em troca de um prato de comida. Devido a sua altura acima de um metro e noventa e por ter que carregar todo tipo de mercadorias tornou-se um mulato super forte. Na sua ingenuidade era explorado por todos, até pequenas moças que em troca de algum carinho, exploravam o pobre rapaz. Mas vivendo e aprendendo, breve começou ele a cobrar pequenos favores, pois o assédio a sua pessoa era grande. Sempre tinha alguém comprometido ou não, a fim de cuidar de seu barraco bem como de suas roupas. Começou a ficar exigente, selecionando para sua companhia só mulheres bonitas de corpo e de rosto, cobrando delas todo o serviço caseiro em troca de carinhos. A vida para ele estava muito boa e ninguém conseguia tirar dele um compromisso mais sério. Mas após ganhar a sementinha de presente do pai de santo, as coisas para Donizete tomaram rumo diferente.

Primeiro foi o retorno para casa, passando pelo meio do pessoal do crime, que não davam à mínima, deixando-o passar tranquilamente. Depois tombou um caminhão na pista e Donizete como todos, pegou várias sacolas de gêneros. Todos foram visitados pela policia e devolveram tudo além de levar alguns empurrões, menos ele, passaram pelo seu barraco como se ele não existisse e ele lá dentro dormia como anjo saindo de uma ressaca de caipirinha. Dentro de pouquíssimo tempo o pessoal que presta atenção a tudo, viu que ele era diferente. Passava pela malandragem sem ser molestado, tinha fila de mulheres, casadas, solteiras, todas loucas para ficar com ele, o que era administrado muito bem. A coisa chegou ao ponto de tudo para ele sair de graça. A vendinha não lhe cobrava e até davam sempre alguma coisa de presente. Sua casa (barraco) já tinha luz elétrica, geladeira, e som, tudo de graça. Quando foi pagar o aluguel, sempre cobrado pelo prefeito (chefe do tráfico, da Biqueira), tomou um sonoro tapa nas costas e ouviu: "Você é gente nossa, tem cartão azul esfria." Preocupado foi ao terreiro sendo atendido particularmente. Todos foram dispensados só ficando o caboclo ou nego velho e uma ajudante. Após os cumprimentos a entidade perguntou:

- Algum problema meu filho, não está feliz?

- Estou sim meu pai, só um pouco preocupado, pois todo mundo parece ter medo de mim?

- E todos tem razão, pois você tem incorporado um príncipe Nagô, você não é o príncipe, mas é seu cavalo e ele usa seu corpo. Procure manter o corpo são para que ele não se irrite, o preço a pagar seria muito alto. Quando te dei aquela sementinha, foi a mando dele. Você foi escolhido entre todos porque seus procedimentos agradaram ao príncipe. Você não vai precisar trabalhar e nem pode, o dinheiro virá até você não se preocupe. Todos que ganharem algum dinheiro terão de dar uma pequena parte a você. Não se preocupe que sempre será mais do que você precisa. Tem algumas coisas que você irá ganhar, não jogue fora. Dê um jeito de acomodar, se sua casa for pequena, lhe darão outra. Aproveite o máximo, pois pode durar um dia ou um século não se sabe, se o príncipe se zangar, ele te deixa e o prejuízo é grande.

Naquela tarde o prefeito foi visitá-lo.

- Menino, sonhei que deveria fazer um ato nobre, só não sabia a quem, comecei a pensar e ia beneficiar um parente meu, mas você não sai de minha cabeça, então vou mudar você. De seu barraco você vai passar para minha casa que tem de tudo até TV por satélite. Vou deixar com você minha filha, que é o que eu mais amo no mundo.

Só não me faça arrepender-me, nunca matei ninguém, mas as coisas acontecem, um acidente por exemplo, mas não vamos falar nisso. Quando Donizete viu a moça se encantou não sabia se gostava mais da casa ou da moça, as duas eram lindas. Falou: "Caso com ela", e o prefeito disse:

- Não acredito em casamento, mas você terá todos os direitos e deveres de marido, se algum problema houver a gente conversa.

A casa nada tinha de humilde, com todas as comodidades e luxo; e a moça. Pense numa moça bonita, gostosa, daquelas que chamamos de tesão. Ao se encontrarem houve uma mágica, os dois se enamoraram de maneira louca. A moça simplesmente se prostrou em adoração. Assumidos os compromissos ao prefeito, foram deixados a sós. Não houve diálogo entre os dois, se engalfinharam como duas feras. O dia virou noite, que virou dia.

Após este embate levantaram, lancharam como reis repondo as forças, e voltaram para sua interminável lua de mel. Só após quatro ou cinco dias é que deram as caras à população da comunidade. Pareciam um casal de doentes, ela com enormes olheiras, ele com a barba comprida. Mas enquanto a moça definhava, Donizete ficava cada vez mais forte.

Sua fisionomia modificara, perdera aquele ar de inocente, ficou com cara de mau. Virou um gigante, as pessoas que o admiravam e gostavam dele gratuitamente, agora o temiam. O famoso pedágio que assustava tanto, agora era praticado por homens contratados por ele e todos de uma selvageria impar. Seu sogro prefeito, perdeu o cargo para ele e se dava feliz por estar vivo. Nunca mais viu a filha, pois era proibido fazer visitas. Dizem alguns que a viram magra, cadavérica, parecia que não se alimentava, com uma barriguinha de grávida, parecendo que iria abortar de uma hora para outra.

Donizete fazia visitas a várias mulheres casadas, solteiras, enfim, bastava ser mulher e bonita, ele tomava posse como concubinas, e só podiam ser visitadas por ele. Curiosamente todas engravidavam.

Nasceu o primeiro filho com quase seis quilos, forte como um tourinho. Depois do nascimento a mãe que deveria melhorar, piorou. O menino mamava quase que direto, tirando toda vitamina da mãe, tão desnutrida estava que não resistiu e veio a falecer.

A situação foi acontecendo com todas e após o nascimento, vinham a falecer de inanição.

A comunidade era pequena para tanta ganância que Donizete passou a comandar cidades vizinhas, dominando as quadrilhas e o tráfico em todas. Quando era um trabalho grande, ele comandava a quadrilha e operava com requintes de perversidade jamais vistos. Não era comum, mas quando algum de seus comandados era preso, era morto na cela sem jamais delatar seus companheiros ou o chefe. A casa de Donizete virou uma creche com mulheres de pouca idade, treze a quinze anos até mulheres de cinqüenta. Fora o assédio do dono da casa, todas amamentavam os bebês. O terror foi espalhado pela comunidade, todos trabalhavam para o grande chefe. Quando algum morador fugia, era caçado e levado à comunidade onde sofria torturas horríveis que só uma cabeça doentia como de Donizete poderia engendrar. Criou vários aparelhos de tortura que ficavam expostos nas praças, a céu aberto lembrando o castigo no caso de desobediência do grande chefe. Dominou Donizete por vinte e cinco anos, agora mau como poucos, não mais administrava. Seu império era dividido e seu filho mais velho que assumiu tudo, subdividindo com os irmãos. Todos pareciam gêmeos embora a idade variasse, não era possível dizer quem era quem e que idade tinha, mas em maldade um superava o outro. Agora as mulheres que serviam a Donizete passaram a servir seus filhos e nada mudou, todas alguns meses após o parto morriam de inanição. Donizete foi visitado pelo seu pai de Santo que o alertou que o príncipe estava satisfeito por o ter servido e tinha uma proposta. Seria preso e condenado para morrer na cadeia, ou morreria em ação ele deveria escolher.

- Vou pensar.

Fez um jantar e obrigou os filhos a comparecer. Embora fossem rebeldes todos compareceram. Ninguém mais o tratava como pai, ele era carta fora do baralho. Rindo e brincando com todos, disse ter uma surpresa. Foi ao seu aposento e quando voltou trazia uma metralhadora ponto cinqüenta, com enorme fita de balas. Gritou com o filho mais velho:

- Eu os servi por vinte e cinco anos hoje me liberto!

Começou a disparar, todos buscaram suas armas e a sala ou salão nobre, se encheu de fumaça. No final imperava a morte ninguém sobreviveu. Curiosamente na mão esquerda de Donizete quase encravado, estava um crucifixo de prata que ele deixara de usar assim que passou a ter o corpo fechado.

Meses depois um jovem rapaz visitava o centro espírita agradecido pois ultimamente ninguém o prejudicava, estava com muita sorte, com dinheiro e mulher. Seu guia espiritual lhe falou: "Você foi possuído pelo príncipe Nagô, ele gostou de você e estuda seus procedimentos. Você foi eleito seu cavalo e precisa cuidar de seu corpo. A vida para você será muito boa, enquanto ele quiser."

A partir daí a história se repete e temos outra vez o Homem do Corpo Fechado.

Esta é mais uma história

que comporá o livro,

“sonho de todo escritor infante”

e será editado breve, Talvez.

Oripemachado.

Oripê Machado
Enviado por Oripê Machado em 01/11/2011
Reeditado em 13/11/2011
Código do texto: T3310294
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