A Sombra

Caros parentes e amigos.

A culpa do meu sofrer é a responsável pela minha clausura. Do rompimento com a sociedade e com o mundo. A culpa de tudo é da Sombra. Nessas breves linhas contarei a mais pura verdade de como tudo começou, pois o motivo de tudo terminar é simplesmente, porque não agüento mais o que me assombra desde o início.

Tudo começou em uma linda e morna noite de verão. Eu voltava para casa, depois de uma tradicionalíssima bebedeira com amigos que há tempos não arriscava. Caminhava tranquilamente, pensando em como os dias com meus pais me faziam bem. Lembrando-me do clima festivo das festas acadêmicas e do tom severo do professor de Calculo II, dizendo que teríamos provas no próximo mês.

Foi ai, que ela me apareceu. Além da vegetação, eu pude vê-la pela primeira vez. A maldita, a carrasco da minha breve existência. A Sombra. Ela me seguiria e me assombraria aonde quer que eu fosse, desde então.

- Quem está ai? – gritei.

O silêncio foi minha resposta. Não havia nada, não era um animal, nem uma pessoa, era apenas, uma sombra. Senti que ela me encarava, imediatamente, os cabelos do meu pescoço se arrepiaram. Em onda, todos os pêlos do meu corpo se levantaram saudando o medo.

Resolvi continuar a caminhada, afinal, minha casa não era tão longe. Logo, estaria na segurança dela. Perto de meus pais. Caminhei rapidamente, os pés quase não se distinguiam em passadas que mais parecia o começo de uma corrida, mas que não era um trote. Simplesmente, andava apressado.

Para minha infelicidade, resolvi olhar para trás. Novamente, vi-a, estava parada no mesmo lugar, imóvel, incrustada no desconhecido, mas antes de movimentar a cabeça de volta para frente e me sentir aliviado, notei-lhe um movimento brusco. Ela começava a perseguição.

A maldita parecia ter me dado algum tempo, para que pudesse ter a chance de me caçar. Vi quando ela chegou ao ponto do caminho, onde lhe gritei há alguns metros atrás de mim. Em um lampejo de coragem ou na primeira demonstração de loucura, não sei bem ao certo, resolvi parar e analisá-la.

Virei-me de costas e encarei-a. A massa disforme e escura também me analisava.

Como queria minha velha lanterna, agora. Perguntava-me o porquê de não ter apanhado pilhas nas últimas compras que fiz. Bastaria focar o feixe de luz naquela coisa e desmaterializá-la por completo.

Ouvi um gemido seco ao meu lado. Senti o coração disparar. Um grito seco de pavor escapou da minha boca. Espantado, olhei, rapidamente, para ver o que era. Perdendo-a de vista por um segundo, felizmente, era, apenas, um gato de rua faminto que ganiu ao meu lado.

Mas, ao procurar a Sombra de novo, notei que ela avançava em minha direção. Movia-se calma, silenciosa, mas pesadamente, o que lhe dava um aspecto mais horripilante. Aquilo, me fez rodar nos calcanhares e partir em disparada rumo à porta de minha casa.

O medo da forças. Com medo, fazemos coisas que antes eram impossíveis. Corri como o vento e saltei por sobre a mureta de casa, não tinha tempo para procurar as chaves. Apenas, pensava na chave correta para abrir a porta. Corri em direção à porta e mais uma vez, olhei por cima do ombro e vi que a sombra que me perseguia de perto. Mesmo com seu passo pesado, ela não tardaria a me acompanhar.

Pude ouvir o som de seus passos se aproximando, mas não eram passos comuns o som era de cascos, não tinha dúvidas. Conhecia aquele som muito bem, eram cascos. Cascos vindos do inferno, para me assombrar e assolar a minha existência, até ela, finalmente, findar-se. Mal sabia eu, que aqueles cascos me atormentariam por tanto tempo.

Finalmente, cheguei à porta e rapidamente, destranquei-a, porém, pouco depois a chave caiu. Não me importei com ela. Entrei em casa e tranquei-a novamente com a chave fixa do lado de dentro. Minhas mãos tremiam, não sabia o que era aquela coisa, a Sombra.

Tomei um copo de água na cozinha e rumei para meu quarto. Tirei a roupa suja e sentei-me na cama. Os cachorros do vizinho latiam como loucos, deviam estar vendo a Sombra também, afinal não podia ser o único a ver aquela coisa.

Deitei-me na cama de cueca. Estiquei as costas e ajeitei-me sob as cobertas.

Abri meus olhos uma vez mais e gritei como nunca tinha gritado antes. A Sombra estava bem acima de mim, no teto do meu quarto, ela me perseguira até ali. Meu grito desesperador fez meus pais correram para me socorrer.

Desde esse dia, meu destino foi traçado. Meus pais me levaram em rezadores, psicólogo, médicos e em toda espécie de especialistas possíveis. Até, que finalmente, todos desistiram de mim e meu sofrimento de verdade começou, pois eles resolveram me internar aqui.

Hoje, sou o paciente setenta e dois desse Hospício, conhecido entre as chacotas dos enfermeiros como o “Dassombra”. Até, hoje, ela ainda me persegue. Até hoje, esse cão dos infernos me é fiel. Sempre que o procuro, encontro-a. Ela sempre está em algum lugar: no teto ou sentada em um beliche, em cima da televisão ou lendo o jornal, atentamente olhando para a liberdade do outro lado das vidraças. Vejo que ela, assim como eu, também sente falta do mundo lá fora, confesso que fico feliz, pois não sou o único nessa situação.

Não sei se temos alguma espécie de demônio da guarda, assim como dizem que temos anjo, mas sei que o meu aterroriza-me fielmente, cumprindo sua missão etérea. A Sombra.

Acabo esta carta com esse pensamento. Peço perdão aos que me amam, mas a loucura não me é companheira para tanto. Então, de maneira covarde e silenciosa, resolvo sair placidamente de cena do teatro da vida. A corda amiga já está preparada e são com falsos pesares que escrevo essas últimas linhas, linhas que são as porta vozes de um louco assombrado por um mal que nem mesmo Deus pode livrar-lo. Sedento por liberdade, prefiro a covardia a honra.

A Sombra ainda esta aqui comigo. Ela venceu, veja que ironia, agora, eu posso senti-la sorrindo para mim. Minha Sombra, minha última falsa amiga.

Piedosamente,

Henry Thomas Jr

João Murillo
Enviado por João Murillo em 31/10/2011
Código do texto: T3309306
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