Agonia

CURITIBA – 28/07/2000

FLÁVIO atravessava a rua com a maior calma do mundo, o sol estava se pondo e felizmente mais um dia de um exaustivo trabalho havia terminado. Suas costas doíam como nunca, o maldito Sr. Moura o havia feito carregar caixas o dia todo, ele odiava o maldito Sr. Moura e o lugar onde trabalhava. O repugnante mercado Super Rede era o único lugar que o admitira sem nenhuma experiência, e era a escolha mais sensata para um rapaz que além de não passar no vestibular nunca estudou o bastante em sua vida.

O sonho de Flávio na realidade era ser engenheiro. Algo que fazia a pessoa mais intelectual do mundo rir até as costelas doerem; além de detestar a área de exatas, Flávio nem ao menos sabia o que um engenheiro de verdade fazia, escolheu a profissão apenas por que esta poderia lhe proporcionar alegres momentos com o dinheiro.

- Boa tarde Dona Eulite – cumprimentou a velha senhora que passava por ele cheia de sacolas e com ar atarefado.

- Ah, bom dia Flávio, cansado? – disse ela parando e tirando os óculos de lentes grosas e dando uma bela olhada nele, os cabelos grisalhos voando ao vento do entardecer.

- E como.

- Pois é – e ainda acrescentou rindo, deixando à mostra os dentes amarelados pelo abuso de cigarro – é a vida não é?

- Verdade – disse ele recomeçando a caminhar, escutou a risada zombeteira de Eulite atrás dele, lhe dizendo quanto o detestava.

A rua na qual sua casa ficava, estava silenciosa naquele horário. As janelas encontravam-se fechadas no intuito de não permitir que a brisa fria chegasse até os moradores. A escuridão chegava depressa, todas as lâmpadas dos postes de luz já estavam acessas, e algumas das lâmpadas das casas também.

- Como foi o dia?- saudou-o sua mãe, sorridente como sempre. Encontrava-se sentada no sofá, assistindo a sua novela favorita; as unhas sempre bem feitas e os cabelos penteados com capricho, exibia muito menos idade do que aparentava, algumas poucas rugas ao redor dos olhos lhe deixavam com um certo charme.

- Depois eu falo – disse Flávio passando pela sala apressado – vou tomar banho.

- Ah sim, claro querido – disse ela sem desgrudar os olhos da televisão – vou preparar um café para você, assim que a novela acabar.

Sem agradecer. Flávio correu para o banheiro e enfiou-se debaixo do chuveiro, deixando que a água quente lhe fizesse uma agradável massagem. Uma estranha pontada lhe ocorreu de repente, como uma sombra repentina vinda de uma nuvem que encobria o sol, ele levou a mão ao peito como se tentasse segurar o coração entre os dedos, mas do mesmo modo que a pontada havia vindo ela se foi e logo se tornaria nada na memória dele, apenas um pequeno mal estar, e mais nada...

- Me tira uma dúvida – disse o Sr. Moura para Flávio naquela manhã nublada – quando você foi contratado, o horário de ínicio do expediente era esse?

Para o azar de Flávio, neste dia ele havia acordado extremamente atrasado, mas teve tempo de engolir seu café da manhã e já se encontrava correndo freneticamente pelas ruas em direção ao supermercado. Seus pés cansados e doídos, agradeceram quando ele chegou na esquina e visualizou a fachada azul e vermelha do mercado; ainda não estava aberto, o que lhe deixou um pouco aliviado.

Tal alivio passou no momento em que ele atravessava o corredor de bebida rumo a sala de estoque. O maldito Sr. Moura, que organizava refrigerantes em algumas prateleiras, tratou de descontar nele uma noite mal dormida (e com alguma possibilidade alguns dias sem sexo). Flávio só teve tempo de respirar fundo, e preparar-se para um bom tempo parado, escutando as ladainhas daquele homem.

- Perdão... Eu prometo que isso não vai se repetir

- E eu garanto que não – disse Moura, ajeitando a cueca por cima da calça. Era um homem baixo e corpulento, com um horrível bigode de escovinha e orelhas quase tão grandes quanto sua chatice – pois se isso se repetir novamente – demonstrando sua falta de gramática e linguajar adequado – você será demitido... Entendeu? DE-ME-TI-DO

- Sim senhor – disse Flávio, tentando não rir da cara de besta que Moura exibia.

- Agora vá lá para os fundo – disse apontando o dedo gorducho para a porta de plástico no fim do corredor – você vai trazer do caminhão as caixas de eletrodomésticos.

- Sim senhor – disse voltando a caminhar, praguejando e amaldiçoando tudo e todos.

Estava na metade do corredor, quando a voz irritante de Moura o chamou novamente. Girou os calcanhares, e voltou ao ínicio do corredor, onde o maldito Sr. Moura estava postado, com um sorriso medonho brincando em seus lábios.

- Depois que você terminar de fazer tudo, quero que você ajude o pessoal do carregamento das 13 horas, tudo bem?

- Sim senhor – assentiu Flávio respirando profundamente, quantos eletrodomésticos eram? Realmente daria tempo de descarregar tudo até as 13 horas? – mas eu não sei se consigo descarregar tudo a tempo.

- Ahh, acho que você vai ter que terminar tudo... Se não, DE-ME-TI-DO! Agora vá!

Mal Flávio recomeçara a andar, e a voz estúpida de Moura o chamou de novo. Rezando para que o Sr. Bola de Banha não o mandasse fazer mais nada, ele se virou lentamente.

- Faça tudo certinho – cantarolou o Sr. Bola de Banha, rindo-se satisfeito.

Flávio fez uma força quase sobre-humana para não pular em cima daquele barril de gordura e, soca-lo até os últimos fios de cabelo.

Seu queixo quase caiu no chão quando avistou o carregamento de eletrodomésticos. A sua frente estacionados com as caçambas viradas para a porta de ferro, estavam nada mais nada menos do que três caminhões lotados de geladeiras, televisores e fogões.

Bom, pensou ele com uma certa risada mental mãos à obra, ou aquele imbecil virá aqui me amolar (mais do que já fez).

O suor escorria pela sua testa, seus braços pareciam feito de chumbo (ou algo mais pesado), sentia cada músculo de seu corpo enrijecer e tornar-se tão sólido quanto uma placa de concreto. A dor era aguda, mas mesmo assim suportável. Uma rápida olhada no relógio e Flávio constatou que seu horário de almoça já se fora. O banco no qual estava parecia-lhe tão confortável agora, o prato vazio de comida a sua frente parecia lhe chamar para mais uma repetição.

A comida parece mais saborosa quando estamos com fome, pensou ao levantar-se, ainda podia sentir o cheiro das duas fatias de lasanha que havia acabado de atacar. Terminou de beber seu refrigerante, e um arroto de prazer subiu-lhe pela garganta. O caminho de volta ao trabalho parecia mais longo agora, estava a duas quadras do Supermercado, em uma lanchonete de fundo de quintal chamado “O Prensado”, no balcão jogou uma nota de dez reais e aguardou o troco, saiu dali conferindo-o.

A rua estava apinhada de carros naquele horário, com toda certeza, pessoas que também haviam acabado de almoçar e rumavam para seus trabalhos. Nas calçadas, pessoas atarefadas passavam absortas em seus afazeres, crianças e adolescentes passavam caminhando lentamente rumo a escola do bairro. Flávio caminhou o mais rápido que seus membros doidos lhe permitiam, entrou pela porta dos fundos e preparou-se para recomeçar o serviço pesado daquele dia ensolarado e quente. Do jeito que as coisas andavam, ficaria ali a tarde toda, carregando caixas e mais caixas pesadas. Novamente, a estranha pontada no peito ocorreu-lhe e desta vez foi mais forte do que jamais fora, fazendo Flávio parar a meio caminho da entrada, com uma caixa grande de geladeira empilhada sobre um carrinho de ferro. Alguns segundos de dor e a pontada se fora novamente, o suor escorria-lhe pela testa mias uma vez.

- Hei – gritou uma voz conhecida, nojenta, agourenta e acima de tudo detestável. Vinda do fundo do grande corredor, no qual as milhares de caixas do estoque eram empilhadas – o que você está fazendo parado ai?

Era o Sr. Bola de Banha, tentando caminhar o mais rápido que suas pernas gordas e curtas lhe permitiam, a barriga balançava e gingava à frente dele, os olhos brilhando feito bolas de gûde apontadas ao sol do meio-dia, suava feito um porco.

- Me desculpe – disse Flávio tirando a mão do peito, como se percebesse que aquilo lhe dava um quê de preguiça – eu só estava...

- Não me interessa o que você estava fazendo, rapaz – disse o Sr. Bola de Banha parado sobre a plataforma onde os caminhões encostavam de ré, a fim de permitirem o desembarque das cargas – agora volte ao trabalho, ou eu lhe “demeto” daqui!

Pela segunda vez naquele dia, a pontada forte e fina voltou. Desta vez não mais atacando a área do peito, e sim subindo pelas pernas e penetrando em seu cérebro. A dor foi tão intensa que Flávio caiu de joelhos, apertando o peito com força e respirando e grandes arfadas.

O Sr. Bola de Banha ficou ali parado, olhando para rapaz com a cara de tonto que sempre fazia quando via que o bicho iria pegar. Alguns segundos depois, o rosto de idiota dera lugar a uma expressão zombeteira e até digamos fanática (psicótica), um leve e ao mesmo tempo profundo sorriso brincou em seus lábios, se aquele matuto estava pensando que poderia engana-lo estava muito errado, em seus quase quarenta anos de profissão nunca havia deixado alguém faze-lo de bobo (apesar de que nesse tempo todo ele sempre fora o bobo) e essa não seria a primeira (última) vez.

- Levante dai moleque – falou rispidamente, o rapaz insistia em ficar ali, parado feito um pedaço de troço de cavalo que havia sido deixado no meio da rua – levante... Levante ou eu vou “demeti-lo”.

Flávio esperou a dor passar. Fora de longe o pior momento de sua vida (ganhava disparado do dia no qual metera o pé em uma garrafa quebrada e o caco atravessa-lhe o pé). A dor passou e ele pode respirar profundamente, sentindo um alivio quase insano ao ver que não passara de um mero mal estar repentino, talvez provocado pela lasanha que comera ainda há pouco. Parado encima da plataforma estava o (maldito) Sr. Banha, rindo como se tivesse acabado de ganhar na loteria.

- Vou não me ouviu – e o sorriso tornou-se uma expressa de profunda raiva – levante-se e volte ao trabalho...

Deus, pensou Flávio sentindo um imenso cansaço será que esse homem não vai me deixar em paz nem um segundo sequer? Parece que ele sente prazer em tornar cada minuto da minha vida um inferno!

Flávio olhou de relance para o Sr. Banha, sentindo o calor da raiva perpassar-lhe todo seu corpo, um animal voraz sedutor chamado (confusão) raiva acordou (finalmente) em sua cabeça. Por mais que fosse demetido como a própria orca assassina na sua frente não cansava de faze-lo lembrar, está fora a gota dágua (que inclusive demorara tempo demais para encher o copo tão raso da impaciência de Flávio). Ele tinha que fazer alguma coisa, tinha que mostrar aquele Barril de Banha que não era assim que as coisas no mundo funcionavam, ou pelo menos não era assim que sua mãe o havia lhe ensinado. “No mundo, manda quem pode. E obedece quem tem juízo” veio-lhe a mente o estranho provérbio ditado inúmeras vezes pelo seu falecido pai (que Deus o tenha).

Mas será que o Sr. Orca Assassina tinha o poder de mandar (rebaixar) as pessoas daquela maneira, tratando-as como se fossem nada? È óbvio que não, ninguém tem esse direito, murmurou uma fraca voz dentro de sua cabeça, ao que gostaria de completar uma velha amiga sua (Amanda, louca por política e tudo mais que cercava está área, fora uma das únicas amigas de Flávio que realmente tinha algo na cabeça) Isso se chama, ABUSOD E PODER!

- Você não está me ouvindo, rapaz? – falava Moura curvado sobre a plataforma, numa estranha caricatura de um rei soberano de ditador – volte, ao trabalho agora!

- Vá se ferrar velho maldito! – as palavras vieram á sua boca tão rápidas que pareciam terem sido pronunciadas por outra pessoa.

- O que foi que você disse? – Moura agora mostrava em seu rosto suado um misto de espanto, perplexidade e alegria.

- O que você escutou – disse pondo-se de pé, a dor dos músculos se fora, e em seu lugar tomou conta uma tremenda coragem – seu filho da puta!

Agora o estardalhaço começara a produzir efeito, e espectadores começaram a chegar, tornando aquilo cada vez mais parecido com um circo. Aos poucos o círculo formado por funcionários e clientes se tornava mais cheio.

- Como você se trave – disse Moura em tome de indignação.

- Ora, vá se foder velho idiota - gritou Flávio, e risinhos ecoaram pelo lugar. Ao que parecia, alguns dos funcionários concordavam plenamente com a atitude do colega, porém jamais tiveram tamanha coragem (burrice) para cometer tal ato – como você, um mero “supervisorzinho” se atreve a tratar todos como escravos seus?

- Eu jamais fiz isso – disse a Orca levando uma das mãos ao peito, parecendo levemente um injustiçado, vítima do acaso, do sistema que falhara – tenho minha dignidade.

- Você tem é uma bosta no lugar de coração. Agora preste a atenção seu gordo velho e metido a besta – Flávio não percebeu, mas estava caminhando na direção de Moura com o dedo apontado para ele - eu tenho quase um terço da sua idade, e o dobro do seu tamanho, e se você ousar me ofender ou rebaixar mais uma vez... Eu juro por Deus que amasso sua cara, entendeu?

O silêncio foi total, Flávio quase podia sentir o que todos pensavam naquele momento (quebre ele, arrebente ele, acabe com a raça dele e faça-o pagar). Moura parecia um cão encurralado pela carrocinha, frágil, indefeso e totalmente sem vantagem, baixou os olhos e começou a contemplar seus sapatos que brilhavam a luz fraca do sol.

- Perguntei se você não entendeu?! – gritou Flávio, fazendo todos se sobressaltarem, inclusive Moura que parecia ter acabado de borrar suas calças.

- Entendi – murmurou Moura, quase tão baixo que poucos puderam ouvi-lo.

- O que você disse, eu não ouvi.

- Entendi, entendi e entendi!

- Ótimo, assim está melhor – disse Flávio exibindo um sorriso satisfatório, ele sabia que moura não ia deixar tão barato assim, fora desacatado na frente de todos.

Com toda certeza ele seria despedido naquele mesmo dia, como um exemplo a todos que tentassem opor-se as idéias daquele homenzinho desprezível.

Foi um milagre Flávio ter saído do mercado ainda empregado, milagre maior ainda foi o fato de ele ainda estar vivo. Moura estava com tanta raiva e amargura que Flávio tinha certeza, se pudesse tinha o matado naquela mesma tarde.

Agora enquanto caminhava lentamente pelas ruas vazias, sentia que o aconteceu há algumas horas atrás fora um sonho, ou pior um pesadelo. Como foi possível ele, um rapaz jovem e (burro) tranqüilo, estourar com alguém assim tão repentinamente? De onde ele tirara tamanha força de vontade e coragem? Cada vez que seu cérebro tentava encontrar uma resposta, parecia que a pessoa que discutira com Moura não tinha sido ele, e sim um conhecido, um amigo ou talvez um estranho, mas nunca, nunca ele.

Uma fraca e persistente dor de cabeça começava a se anunciar. O céu enegrecido anunciava a vinda de uma tempestade que não tardaria a chegar.

Ele sentia as pernas e as costas reclamarem cada vez mais alto; a dor nos músculos começava a se tornar cada vez mais real. Flávio sentiu um imenso alívio ao entrar pela porta de sua casa, o cheiro de café fresco invadiu suas narinas.

- Boa tarde, querido – saudou sua mãe sentada na mesa da cozinha, a sua frente uma caneca que fumegava lentamente e mais adiante uma forma de bolo de chocolate.

- Boa tarde... Hum, que cheiro maravilhoso, você fez café?

- Sim... Venha, vamos tomar café juntos...

- Ah, deixa eu ver – disse pensativo, no momento o que ele mais queria era uma enxurrada de água quente – tá bom!

Conversaram sobre muitos assuntos, sempre atento, Flávio contou-lhe seu dia de trabalho, é claro, esquecendo do fato de ter passado mal e de ter discutido com o supervisor. Como sempre, sua mãe mostrou-se surpresa com cada fato que lhe era narrado, levantando as sobrancelhas e sorrindo amavelmente para seu único filho.

Flávio sentia falta daquilo. Sentia falta dos dias nos quais chegava da escola e sua única companheira estava o esperando, ficavam horas a fio conversando sobre os mais variados assuntos; e depois iam passar horas assistindo televisão. Eram dias bons, era uma época boa.

Mas então o fantasma do envelhecimento começou a se aproximar, sorrateiramente. Aos poucos as conversas foram se encurtando, as noites em frente à TV tornaram-se meras lembranças, dando lugar a festas e boates regadas com muita bebida. E Flávio tinha certeza, sua mãe ainda permanecia acordada, noite após noite à espera de uma conversa noturna, ou uma diversão caseira com seu “velho” filho. Ele tornara-se adulto agora, não tinha mais tempo para sua velha mãe.

A não ser pelo dia de hoje, quando tudo se tornara tão pequeno diante dela, sua única amiga, sua única companheira.

- Bom – disse ele por fim, levantando-se – acho que é hora do meu banho...

- Certo, querido – disse ela fazendo o mesmo e começando a lavar a louça.

Mal a água caíra no chão, e o mal estar que o abatera ainda há pouco voltara. Desta vez mais forte do que qualquer um outro.

Ele sentiu que sua cabeça parecia estar afundando cada vez mais em um mar de dor e confusão, o peito ardia como se uma labareda tivesse sido acessa sobre ele, os olhos pareceram girar fora das órbitas por alguns instantes. O ar não conseguia atingir seus alvéolos, e aos poucos ele for perdendo a consciência.

A dor era tamanha que, Flávio sentia como se coração estivesse sendo arrancado por mãos invisíveis. A respiração foi ficando cada vez mais branda, até logo se tornar apenas um rufar fraco e tenso. Suas pernas fraquejaram por alguns instantes, o mundo rodava a sua volta. A pernas fraquejaram, e então, como se um tapete invisível fosse lhe puxado ele caiu; a cabeça batera com uma força estrondosa no chão, o sangue começou a escorrer misturado a água que descia em direção ao ralo em rodopios suaves.

A escuridão finalmente o engolira. Logo, tudo se silenciou e Flávio não conseguia sentir dor alguma...

Era uma questão de minutos, até que sua mãe se desse conta do ocorrido e arrombasse a porta do banheiro. E finalmente, ela encontraria seu filho, estatelado no chão, lavado por uma onda de suor, dor e sangue. Ela gritaria, gritaria como jamais gritou em sua vida, tanto que acordaria os vizinhos. Vizinhos que estariam ao lado dela, dias depois no velório de seu único filho...

***

Ele acordou.

Os olhos demorando alguns segundos até se abrirem completamente. Deus como está quente, pensou antes de se levantar e bater com a cabeça em algo maciço situado a poucos centímetros de sua cabeça. Estava escuro, tanto que a ele pareceu que ainda não havia aberto os olhos completamente. O ar era rarefeito, e quase tão quente que chegava a doer-lhe as narinas em cada expiração. Logo começara a suar.

Onde diabo estou?

Sua última recordação era a de uma dor intensa, e então uma queda no chão do banheiro e nada mais...

Cada músculo de seu corpo doía, como se tivesse ficado em uma posição incomoda por horas a fio. E o que era aquela maldita escuridão incessante! Ele tentou levantar mais uma vez, mas novamente batera com a cabeça em algo. Tateou a sua volta em busca de algum interruptor ou algo parecido, mas só encontrou a mesma coisa maciça que o machucara duas vezes na testa.

Por Deus, onde estou?

O pânico começou a tomar conta de seu ser. Ele sabia a resposta, sabia tão perfeitamente que a palavra parecia flutuar diante de seus olhos. Mas não podia ser verdade, aquilo não podia estar acontecendo. Não com ele.

Flávio permaneceu quieto por alguns instantes, pensando no ocorrido. Lembrava-se perfeitamente da conversa que tivera com sua mãe, e da terrível dor (e Deus, que dor!) que teve no banheiro. Sua mão tentou chegar até seu rosto, a fim de massagear a têmpora, mas sentiu que estava (preso) com os movimentos meio limitados.

Onde estou?

Passaram-se alguns segundos, até ele voltar a raciocinar. O que de tão grave pode ter ocorrido? Que maldito ligar era aquele? Tais respostas foram respondidas por uma fraca voz no fundo de sua cabeça, uma voz rouca e baixa, como um agouro de morte.

Você morreu Flávio, esta “mortinho da Silva” e, mesmo que você queira negar esse lugar onde você está é um...

Ele a afastou. O ar começava a ficar cada vez mais fraco e quente, a respiração difícil.

Por mil diabos, aquele lugar não era sua cama. Pouco a pouco as alternativas foram sendo eliminadas, até restarem apenas duas, as duas mais pavorosas, e com certeza as mais plausíveis. Ou ele havia morrido, e se isso fosse verdade ele tinha sorte de não ter conseguido se suicidar quando tinha quinze anos, ou ele havia sido enterrado vivo. Como se um animal feroz o tivesse picado, ele começou a se debater no (caixão) local onde estava, gritando assustado e acima de tudo horrorizado.

Ele parou de se debater, não porque achasse que de nada adiantaria, mas sim porque entendeu que a verdade era uma foice afiada, que penetrava em nossas mentes, tão fria e abruptamente que chegava a horrorizar. Flávio finalmente entendeu o que havia ocorrido; ele tinha caído no chão do banheiro, com um ataque ou coisa do tipo, e por engano havia sido velado e enterrado. Um engano brutal, frio e cruel.

E agora, a metros de distância da atmosfera, do ar, da civilização e acima de tudo, de sua mãe. Uma onde de terror e assombro correu por todo seu corpo. Havia deixado sua mãe sozinha no mundo, o que seria dela agora? Sozinha, sem pai, mãe ou qualquer outro tipo de parente, estava jogada as traças, fadada a permanecer sozinha até que a morte chegasse e finalmente a levasse embora do mundo cruel em que vivia.

Flávio sentia a necessidade de ar fresco tornar-se cada vez mais forte, era uma questão de minutos (talvez horas) até que o ar do caixão acabasse e ele morresse ali, sozinho. Como seria bom se ele pudesse respirar por uma última vez o ar fresco de Curitiba, o ar tão doce e frio da noite (ou talvez do dia). Era necessário tomar uma atitude, ele não podia ficar ali deitado naquele leito de morte, esperando a mesma vir realmente busca-lo; teria que pensar em algo e começar a agir logo. Antes que fosse tarde demais.

Mas o que uma pessoa que fosse enterrada viva poderia fazer?

Talvez, pensou ele com o pouco de consciência que lhe restava talvez, seja fácil quebrar o caixão, e cavar até a superfície...

Certo, pelo menos um plano de ataque ele traçara, e isto com certeza era meio caminho andado. Mas ainda havia uma boa parte a ser percorrida, e este, era um caminho ladeado de pedras pontiagudas. A primeira delas era; como quebrar um caixão de madeira tendo movimentos muito limitados? Se pelo menos ele pudesse mover os braços com alguma facilidade, era um rapaz jovem e forte, e com certeza com uma série de golpes ele poderia quebrar aquela caixa maldita, sabia em que situação financeira deixara sua mãe, e esta com certeza não tinha muito dinheiro para lhe comprar um caixão fino; o que consecutivamente resultava em uma madeira de qualidade inferior, algo que lhe provocou uma alta risada interna.

Quase podia ver seu “plano de ataque” escorrer pelo ralo. Agora encontrava-se ali, deitado como um semi-morto, sem nenhuma expectativa de salvamento. Não custa nada tentar, poderia ao menos tentar quebrar o caixão de qualidade inferior com alguns pequenos murros dados a uma curta distância. O espaço que seus braços e mãos tinham para se mover era (calculava ele) menor do que trinta centímetros, portanto teria que usar o máximo de força que seus músculos dolorosos lhe permitissem; deu um pequeno impulso (se é que poderia chamar aquilo de impulso) e começou a esmurrar a tampa do caixão, com cada vez mais força.

Alguns poucos muros depois, suas mãos latejavam e ele sentia-se exausto. Acabou, esse é o fim, não há outra maneira... Esse é o fim da linha, caminhei muito devagar pelos trilhos e finalmente o trem me pegou.

Sentia-se extremamente burro e idiota, como pode achar que dando socos na tampa ela se abriria?

Agora, certo de que questão de minutos estaria morto, ele finalmente começara a recordar-se de sua vida. Sentindo culpa por ter agido de modo tão errado durante toda sua curta jornada na Terra.

Se ele tivesse se dedicado mais aos estudos, talvez não estivesse ali agora, talvez teria passado no vestibular e se tornando um grande engenheiro, e assim, dado muito orgulho a sua triste mãe. Mas, ao que parecia, as conversas calorosas, as inúmeras festas e total falta de vontade de sua parte culminaram em uma vida ladeada de fracassos pessoais.

Um filete de lágrima correu de seu olho direito, indo de encontro ao fundo acolchoado do caixão.

Eu mereço tudo isso, talvez até mais do que está acontecendo.

A vida era cruel e maligna, ele sabia. Sentia uma tremenda culpa por ter provocado tanta aflição as pessoas que ama; as noites nas quais sua mãe nem ao menos sabia onde estava seu único filho pareciam agora tomar conta de todo seu ser, sua alma estava sendo consumida pouco a pouco, pelo vampiro invisível da morte.

Ele quase podia sentir o hálito fétido e putrefato da morte, ela estava ali, deitada ao seu lado (junto com ele, de alguma forma) a espreita. Sentindo cada suspiro, cada arquejar, cada fraqueza e acima de tudo cada pensamento; Flávio escutava a risada enfadonha da morte, rindo de um pobre rapaz que havia fraquejado, e finalmente fora pego pela locomotiva da vida.

O ar agora começava a ficar cada vez mais rarefeito. Ele se via obrigado, a cada vez mais respirar lenta e fracamente; de modo que não gastasse toda a sua reserva de ar tão rapidamente, estava poupando (mas para que?).

Oh meu Deus, então é isso?

Sentiu-se como envolto em um negro manto, que lhe sufocava e pouco a pouco sugava-lhe a alma. Mais uma vez, a morte ao seu lado riu.

O fim estava chegando.

AAaarr...AAaarrr...AARR!

Sua cabeça doía e ardia, como se estivesse sendo açoitada por um chicote de lava. Ele podia sentir a sua razão escapando-lhe pelos ouvidos, estava começando a perder o sentidos.

Uma imagem se formou em sua cabeça, instantaneamente. Um rosto, um belo rosto de garota, os cabelos loiros caindo pelos ombros, os olhos tão verdes que pareciam dois enormes rubis, a pela macia e doce como um pêssego. Seu nome era Lídia, foi sua primeira namorada, na verdade foi sua primeira em tudo. Tinha sido uma paixão (talvez amor) os dois haviam namorado por quase quatro anos, e quase todos os dias faziam promessas (juras de amor) um ao outros.

- Jure que você vai se casar comigo – dizia ela.

- Eu juro.

Uma dessas promessas havia sido esquecida, algo que jamais deveria ter acontecido.

Sentados em um banco de praça, de cujo qual ele não lembrava o nome e nem a localização. Os dois conversaram durante longas horas. Mesmo depois de tanto tempo, ele ainda podia sentir o doce cheiro de seu perfume, e o leve toque de seus cabelos macios. Então, após um beijo, ela finalmente dissera as palavras mágicas:

- Flávio – disse ela olhando o nos olhos, fazendo o parecer extasiado com a tamanha beleza daquele verde estarrecedor – jure, que se um dia nos separarmos... Vamos nos reencontrar, e vivermos felizes para sempre?

- É claro que sim – disse ele cheio de paixão, beijando-a.

- Então vamos fazer um pacto – disse ela com urgência na voz e no olhar.

Ele concordou, e ela então tirou do bolso um alfinete e, com este furaram os dedos. Depois que uma pequena gota vermelha se formou, ele uniram os dedos e juraram jamais se separar.

Dias depois, ela se fora.

Foi o dia mais triste de toda sua vida, chorando muito, ele prometeu que, quando ficasse mais velho, iria trabalhar e então reencontra-la.

Infelizmente, ele envelheceu, e perdeu todo o crédito no amor. Pior do que isso, ele simplesmente se esqueceu da promessa que fizera há alguns poucos anos atrás (o que fez ele pensar sobre como a memória dos jovens, era, de certo modo, ligeiramente mais vaga do que dos idosos). Com o tempo, o rosto de Lígia se tornara difuso e irreconhecível, fora arquivado em uma prateleira escura, e distante em sua memória, e assim a pasta grossa e vermelha intitulado “LÍGIA” mofou e encheu-se de poeira.

Somente agora, a poucos passos da morte, esta pasta fora novamente aberta. Com uma estranha sensação “dejá-vú” seu dedo indicador começou a arder (do mesmo modo que ardera no dia em que fez o juramente com sangue). Ele chorou mais algumas lágrimas, sentido raiva de si mesmo. Aonde poderia estar Lígia agora? Será que ela também havia esquecido do Juramento de Sangue?

AAARRRRRR...

A necessidade de ar começava a se tornar mais urgente agora.

Seu corpo começara a ficar dormente... A cabeça já não mais doía... A imagem de Lígia não parava de dançar em sua mente...

Promessas não cumpridas, metas não alcançadas, todas, pareciam agora voltar para assombra-lo e num único coro enunciavam:

A merda do seu tempo finalmente acabou... Prepare-se para sentir o gosto agridoce da morte.

Unindo todas as suas últimas forças, ele deixou uma mensagem, gravada na tampa do caixão feito de madeira vagabunda, escreveu duas palavras com a unha comprida do dedão (a qual ele planejava cortar nessa mesma noite)

Ele fechou os olhos, o ar agora estava tão fraco que Flávio quase não o sentia em seus pulmões.

O último suspiro fora dado.

Ele deixou uma última lágrima correr livre pelos olhos.

“Jure, que se um dia nos separarmos... Vamos nos reencontrar, e vivermos felizes para sempre” dizia o rosto difuso de Lígia.

A escuridão finalmente o tomou e, rindo mais uma vez, a morte deitada ao seu lado teve certeza, de que ganhara mais uma alma para atormentar...

CURITIBA-02/12/2005

Ela olhou para a placa na frente do cemitério, JARDIM DA SAUDADE dizia em letras bem desenhadas. Era verdade, aquele lugar era um verdadeiro jardim, ali jaziam as mais belas sementes que Deus podia ter criado, e com toda certeza era um Jardim da Saudade, onde as pessoas plantavam seus entes queridos, e vinham de tempos em tempos, na esperança de que a Semente Morta crescesse mais uma vez, e assim aliviasse a dor que abatia seus pobres corações.

Ela caminhou por entre as milhares de lápides.

Quando finalmente chegou a lápide de mármore branca, com a foto de seu falecido filho, foi abordada por um rapaz alto, moreno de olhos castanhos, usando um macacão com o emblema e nome do cemitério.

- Dona Eva? – perguntou ele curioso.

- Sim – respondeu ela, levando as mãos ao cachecol, o vento dava mais um forte assopro, fazendo seus cabelos arrepiarem – sou eu, porque?

- O diretor deseja falar com a senhora - disse ele movendo-se na direção do prédio de dois andares que era a Diretoria do cemitério, e também o local onde eram realizados os velórios (mesmo local onde velara seu filho).

Ela o seguiu. Foi uma viagem curta, e silenciosa. Eva sentia seus pés fraquejarem quando passou pela sala número quinze, pois fora ali que seu filho estava a quase seis anos atrás, deitado sobre um caixão de madeira vagabunda (que neste momento deveria estar as migalhas) usando um terno velho e com a aprecia mais angelical possível (pelo menos era assim que ela se lembrava dele) um dia do qual ela desejava esquecer.

No segundo andar, no fim do corredor o homem de macacão bateu na porta branca com uma placa de plástico com letras vermelhas (DIREÇÃO). A porta se abriu, e eles entraram por ela, invadindo uma sala atulhada de papéis, à frente dela uma mesa de mármore acomodava um homem alto de olhos cor de mel, cabelos grisalhos e um pouco calvo, suava óculos de lentes grossas e aparentava ter pouco mais de quarenta anos.

Eva estava no meio de uma divagação sobre, o que fazia um homem bonito como aquele vir trabalhar em um lugar como aquele (talvez ele estivesse no fundo do poço, ou talvez...) quando foi interrompida pelo Homem Calvo.

- Sente-se, por favor – disse apontando uma cadeira de plástico à frente da mesa.

- Se o senhor não se importa – ela disse, num tom displicente – gostaria que fosse breve, pois tenho muitas coisas a fazer, e ainda desejo visitar meu filho...

- Não demorarei – disse ele, interrompendo-a, pelo visto o dia de hoje havia sido (estava sendo) exaustivo – mas receio, que a notícia que tenho não seja lá muito boa...

Ela se remexeu na cadeira, incômoda.

- como é de praxe – disse ele desabotoando um botão do paletó, e sentando-se mais confortavelmente em sua cadeira – depois de cinco anos, aqui no cemitério, temos o hábito de... Digamos, trocar os caixões, para evitar a contaminação do solo... Se é que a senhora me entende?

- Receio que sim, e também receio que não li esta parte do contrato com a devida atenção – era óbvio para ela, ele aproveitavam-se das nossas fraquezas para meter-nos a faca e roubar de nós o que nos há de mais precioso.

- Bem... Então, como eu estava lhe dizendo; quando removemos o corpo de seu finado filho do caixão, algo de muito peculiar nos ocorreu.

O coração de Eva disparou.

- É algo muito incômodo – advertiu o Diretor – tenho que lhe dizer antes, pois é... Chocante para uma senhora da sua idade, portanto se a senhora não quiser saber, o direito é todo...

- É claro que quero saber.

- Entenda nosso lado, por favor, nós devemos tomar todo o cuidado com...

- Por favor, senhor Diretor, será que podemos ir direto ao assunto, sem rodeios?

- Certo – disse ele se levantando e caminhando até uma prateleira no fundo da sala, ele abriu-a a retirou de seu interior um pacote transparente – perdoe-me mais uma vez, mas a senhora tem certeza de que quer ver isto?

- É claro que sim – disse ela começando a ficar nervosa – mostre-me logo.

Ele se aproximou dela, e entregou-lhe um pacote de plástico transparente, em seu interior um pedaço de madeira já meio apodrecido.

- Este, é um pedaço da tampa do caixão de seu filho – disse ele rapidamente.

- Sim, e o que há de mais nisso – disse ela começando a transpirar, o coração batia cada vez mais rápido, o que havia de errado em uma tampa de caixão?

- Por favor, vire-o – disse o homem nervoso, indicando pedaço de madeira – e dê uma olhada no outro lado.

Ela virou cuidadosamente o pedaço de madeira velha, com cuidado, pois estava esfarelava com facilidade. Por alguns instantes Eva nada viu. Mas então, o brilho da luz penetrou nas veias da madeira, deixando uma mensagem aparecer, seus olhos arregalaram-se... Ela não podia acreditar naquilo, e muito menos no que a mensagem significava (os dois sentidos da mensagem).

Eva gritou o mais alto que pode.

Não podia acreditar que seu filho havia feito aquilo, e acima de tudo que de ele estava vivo quando o enterraram...

Aquilo era forte de mais. Seu coração deu uma última batida forte e então parou.

Sou uma assassina, pensou antes de escorregar e cair no chão.

Eva morreu antes do pedaço de madeira cair no chão, por sorte ele se partiu em milhares de pedaços. Mas as palavras, oh Deus, as palavras, assombrariam para sempre a cabeça do Diretor do cemitério.

Para sempre ele as ouviria sussurrar em seus ouvidos, como um lobo uivando noite adentro, ou mesmo como um rapaz jovem e forte, que fora enterrado vivo por engano pela mãe, gritando dentro de seu caixão a metros abaixo da terra... E seu único modo de comunicar-se com ela, teria sido entalhar na tampa de seu caixão duas miseras palavras.

Palavras que agora, jamais sairiam da cabeça daquele homem bonito de quarenta e cinco anos... Palavras que ecoariam sempre dentro de seu ser, gritando esganiçado as mesmas coisas entalhadas na tampa do caixão... ME PERDOE

CURITIBA, PARANÁ

21/09/2006

R L Urbanski
Enviado por R L Urbanski em 30/10/2011
Código do texto: T3306099