Eu não fiz isso

Me chamo Lara e tenho 35 anos.

Em certa fase da minha vida experimentei um estranho dom, por um curto espaço de tempo, mas o suficiente para mudar minha vida.

Foi uma fase muito difícil.

Vou lhes contar como tudo começou.

Eu tinha vinte e dois anos de idade quando me casei. Era jovem e muito apaixonada e meu marido a pessoa mais especial desse mundo.

Um belo dia viajamos à Araçatuba, para eu conhecer uma tia dele, a qual estava muito doente.

Depois de algumas horas na estrada, resolvi dirigir um pouco para ajudá-lo. Em certo momento estávamos próximo a um cruzamento. Me distraí falando com ele a não me dei conta que avancei sem olhar para os lados e um caminhão bateu violentamente no lado do passageiro. Meu marido morreu na hora.

Meses após tal episódio, eu ainda chorava todas as noites, tanto pela falta dele como pelo peso de culpa.

Dois anos depois, ao passando por uma praça em minha cidade, avistei um garotinho chorando, sozinho, em frente ao ponto-socorro. Me aproximei e perguntei sobre seus pais. Ele me disse que sua mãe estava dentro do pronto-socorro, na sala de emergência. Peguei a mão do garoto e fui até o local que ele me indicou.

O garoto chorava, dizendo para eu falar com sua mãe e lhe pedir desculpas. Fiquei sem entender, mas não poderia deixar aquela criança ali.

Ao entrar na sala, o garoto ficou na porta. Nesse momento me deparei com uma cena aterrorizante: uma senhora chorava copiosamente sobre uma maca, com muito sangue e para minha surpresa, ali estava...o garoto, morto. Ele havia sido atropelado, e sua mãe estava inconsolável.

Saí desesperada e tomada de medo. Eu tinha conversado com um garoto morto e isso não era nada digerível. Não comentei com ninguém tal fato.

Na semana seguinte entrei em um bazar e fui atendida por um homem muito mal humorado. Saí de lá indignada e sem comprar o que precisava.

No outro lado da rua uma moça me chamou pelo nome. Me virei e logo notei que não a conhecia. A bela moça loira, de mais ou menos dezessete anos me pediu para voltar à loja, dizendo que o tal senhor mal humorado era seu pai. Me recusei, argumentando o mal atendimento. Ela insistiu e disse que precisava muito que eu lhe fizesse um favor, dando um recado a seu pai.

Perguntei porque ela mesma não fazia isso e com um olhar muito triste, disse que não podia. Olhei-a com um aspecto de deboche quando outra cena aterrorizante vi. Um homem apressado corria em direção à moça, e quando fui puxá-la pelo braço para o tal homem não trombar com ela, ele simplesmente atravessou-a, como se ninguém estivesse ali. Logo compreendi: ela estava morta.

Com muito medo, perguntei se ela me deixaria em paz caso eu desse tal recado e ela disse que sim, além de ficar muito feliz e em paz com isso.

Voltei à loja e ela me acompanhou, apesar que somente eu a via. Procurei o tal senhor mal humorado e disse que precisava lhe falar uma coisa. Ele não deu bola. Insisti e disse que era um recado da sua filha Claudia. Imediatamente seu semblante mudou. Lágrimas invadiram seu rosto e ele se sentou.

"Senhor, sua filha mandou dizer que precisa partir em paz e o senhor não está deixando. Ela pediu que o senhor retire aquele quadrinho da cômoda e desmonte o quarto dela. Quer também que o senhor fique em paz pois não tem culpa do que aconteceu."

Aquele homem com cara de poucos amigos levantou-se e me deu um abraço, deixando-me toda sem jeito. A moça desapareceu.

Embora tudo isso fosse aterrorizante para mim, senti que precisava ouvir tais "pessoas" e ajudá-las no que fosse preciso.

Naquela mesma noite, um sábado fui dormir. Por volta das três da manhã tocaram a campainha. Assustada e sozinha relutei em levantar, mas a pessoa insistia em tocar. Levantei-me para olhar do canto da janela, agora sim, assustada de verdade. Nesse momento ouvi uma voz dizendo para que eu não temesse e abrisse a porta. Normal, se a voz que fizera tal pedido não fosse a do meu marido, morto há anos.

Comecei a chorar sem parar e abri a porta. Era ele, de pé, elegante como sempre. Aproximou-se de mim e, me abraçou e beijou. Eu chorava nos seus braços e lhe pedia perdão por ter causado sua morte.

Ele, com toda a sua gentileza me consolou, dizendo que a culpa não foi minha e que aquilo estava certo para acontecer daquela forma. Disse que não sentiu nada e só não estava melhor porque precisava que eu ficasse em tranquila e o deixasse partir.

Ficamos conversando por horas até o momento que ele disse não poder mais ficar. Tentei segurar seu braço mas minhas mãos simplesmente o atravessavam, como se ele fosse feito de fumaça.

Comecei a compreender tudo e disse que ele poderia ir agora, que eu estava em paz e aquele peso de culpa já não existia mais.

Enxerguei nele, apesar de estar cada vez mais transparente um olhar de felicidade, de satisfação. Mandou-me um beijo e desapareceu diante dos meus olhos.

Para não ser diferente, caí novamente em lágrimas e não consegui mais dormir. Antes de desaparecer, ele disse que eu ainda estava com algo a resolver e devia fazer isso logo. Lembrei-me do garotinho na praça.

Na manhã de domingo saí de casa e voltei àquela praça, em frente ao pronto-socorro. Lá estava o tal garotinho, no mesmo lugar, muito triste.

Chamei-o discretamente e ele veio ao meu encontro. Perguntei onde era sua casa e ele me mostrou.

Ao chegar, chamei por sua mãe e uma senhora muito humilde me atendeu. Disse que precisava lhe falar à respeito do filho. Ela, em lágrimas disse que ele havia morrido. Então falei que era sobre isso mesmo, e que ele estava bem ali, embora ela não o visse.

Chorando, tal senhora disse que era mentira. Então o garoto me deu as palavras, dizendo que tinha ficado muito feliz por ela ter dado ao seu amiguinho o álbum de figurinhas.

A tal senhora chorou ainda mais intensamente e eu não me contive também. Me convidou para entrar em sua humilde casa.

Lá dentro me contou como o garoto morreu. Disse que saíra para trabalhar e não trancara a porta. Por isso o garoto saiu para a rua e foi atropelado. Por isso se sentia culpada.

Então ele me pediu para dizer que ela tinha trancado a porta sim, mas ele pulou a janela e foi para a rua. Então ela se lembrou que ao voltar pra casa a porta realmente estava trancada.

O garoto pediu para que sua mãe ficasse em paz porque ela não tinha culpa alguma. Ele quem havia desobedecido, mas que estava bem e que a amava muito.

Confesso que cada palavra que eu dizia a ela era como um punhal que me atravessava o peito. Ficamos as duas chorando muito até que fui embora e nunca mais voltei ali.

Desse dia em diante nunca mais ouvi vozes ou coisas do tipo. Percebo que minha missão foi cumprida, além de ter deixado o amor da minha vida poder seguir seu destino na outra vida. Hoje superei a perda dele, apesar de ainda ter muita saudade e guardá-lo no meu coração. Nunca mais me envolvi com ninguém, pois há tempo para tudo nessa vida.

A vida é assim mesmo. Vemos partir as pessoas que amamos e isso irá acontecer, independente da nossa vontade e os sentimentos de culpa servem apenas para emperrar o ciclo natural da vida.

Beijo a todos.

Lara

Paulo Farias
Enviado por Paulo Farias em 29/10/2011
Código do texto: T3304441
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