Acalento da Morte

Esse mundo é cheio de coisas estranhas, algumas mais do que outras, e umas poucas são realmente inconcebíveis. Certa vez me contaram uma história, de algo no mínimo perturbador, e embora eu não tenha acreditado, como você certamente não acreditará, sempre que me lembro dela um calafrio percorre minha espinha. Isso ocorreu em uma cidade interiorana, sem importância, e geralmente essas cidades são como imãs para proliferar histórias medonhas. Narrarei tal como me foi contado.

Certa vez a única psicóloga da pequena cidade foi chamada às pressas pela polícia, ao chegar à praça da cidade ela se deparou com uma cena intrigante, duas viaturas se encontravam de cada lado da praça enquanto os policiais cercavam, com armas em punhos, o que parecia uma babá com um bebe embrulhado no colo. Ela cantava de maneira frenética uma canção de ninar macabra, não vou reproduzi-la aqui, pois não me foi contado detalhes sobre a letra. A mulher vestia um uniforme branco, sujo e amarrotado, tinha os cabelos despenteados e os olhos inchados que sinalizavam muitas noites sem dormir. Caminhava de um lado a outro acalentando a criança embrulhada em seus braços.

– O que está havendo? – perguntou a psicóloga ao sargento.

– Recebemos uma denuncia de que uma mulher louca havia chegado à praça com uma criança nos braços. Ela não é da cidade, ninguém a conhece. Chegou essa madrugada, ao que parece, e segundo testemunhas não parou de cantar essa canção grotesca. Tememos pela segurança da criança.

– Foi bom não terem se aproximado, ela não está normal, vou tentar conversar com ela, talvez possamos resolver isso sem colocar a criança em risco.

Enquanto os policiais mantiveram uma distância segura a psicóloga se aproximou cautelosamente. A mulher estranha não pareceu perceber sua aproximação, estava muito distraída com a criança em seu colo.

– Bom dia! – exclamou a psicóloga enquanto se aproximava.

A mulher estranha olhou rapidamente para ela sem parar de cantar e retribuiu o comprimento com um sorriso forçado. Sua voz era trêmula e em muitas passagens quase sumia como se ela fosse chorar.

– Tem algo de errado com a criança? – Perguntou a psicóloga sentando-se no banco, tentando parecer apenas um dos usuários da praça, que a essa altura havia sido esvaziada.

– Isso não é uma criança é um monstro – a mulher respondeu rapidamente, olhando a psicóloga com lágrimas nos olhos e voltando rapidamente a cantar.

A psicóloga ouviu aquilo com assombro, a criança com certeza corria um risco enorme nas mãos daquela mulher. Ela olhou discretamente para o sargento e tentando manter a postura disse:

– Não devia falar assim do seu filho, é...

Antes que pudesse completar a frase foi atropelada pela mulher que dessa vez falou em um tom agressivo:

– Eu não pari essa criatura!

– Você é a babá dela? – perguntou a psicóloga fazendo sinal para os policiais se aproximarem.

A mulher parou de cantar e começou a chorar, e em meio a choro respondeu tentando firmar a voz.

– Eles me enganaram e me fizeram ficar com ela, faz quatro noites que não durmo para acalentar a criança. – logo ela se deu conta de que havia parado a canção e recomeçou a cantar.

– Isso não é música que se cante para uma criança dormir. – falou a doutora intrigada.

– Só isso que a faz dormir – retrucou a mulher que a essa altura parecia a beira de um ataque de nervos – eles disseram que outras músicas só a deixariam nervosa.

Enquanto as duas conversavam os policias se aproximavam cautelosamente para não serem percebidos. Eles andavam e paravam de acordo com os sinais emitidos pela doutora.

– Quem são “eles”? Os pais da criança? – indagou a psicóloga pedindo discretamente um pouco mais de tempo a sargento.

A mulher não respondeu, estava cada vez mais nervosa, e balançava a criança freneticamente deixando a doutora preocupada. A doutora se levantou e colocou cuidadosamente a mão no ombro da mulher falando num tom bem sereno tentando esconder sua preocupação com a criança:

– Sente-se um pouco, você parece cansada.

A mulher relutou um pouco, fazendo menção de sentar, mas permanecendo em pé repetidas vezes, falando de maneira quase imperceptível, como se falasse para ela mesma:

– Não posso sentar senão vou acabar dormindo, se eu dormir ela vai acordar, e eles disseram que ela não pode acordar...

Mas seu cansaço era tamanho que ela acabou sentando-se sem parar de acalentar e cantar a canção macabra. A doutora manteve uma distância segura enquanto a mulher se sentava, e de braços cruzados repetiu a pergunta que havia feito anteriormente:

– Eles são os pais da criança?

A mulher continuou cantando, durante um breve período, e enfim deu uma pausa e falou:

– Não, eles não eram os pais dela. Essa criatura não tem pais, ela não nasceu de ventre algum.

Enquanto a mulher falava a doutora deu lentamente a volta no banco para tentar ver a criança. A canção de ninar já não a perturbava mais, ela inclusive já havia aprendido a letra.

O sargento observava de longe esperando novo sinal da psicóloga, mas só ouviu um grito estridente e viu a doutora se afastar com a mão na boca e uma expressão de horror estampada no rosto, logo ela começou a vomitar. A mulher se levantou assustada com o grito da doutora e começou a pedir silêncio, e a cantar mais alto a canção de ninar. Quando ela viu os policias correndo em sua direção ela se apressou em fugir, mas logo a frente dela vinham mais dois policias e mais um em cada lateral, todos de armas em punho, cercando-a.

– Me deixem em paz! – ela gritou desesperada – Vão acordar ele!

Ela ajoelhou no chão pressionando a criança contra peito e começou a cantar mais alto a canção de ninar enquanto acalentava o bebê. Enquanto isso a doutora se recompunha sendo amparada pelo sargento.

– O que houve doutora? – perguntou ele curioso com a reação, enquanto isso os policiais tentavam fazer com que a mulher se levantasse com todo cuidado temendo que ela ferisse a criança.

– Essa mulher está completamente louca, a criança... ela... – a psicóloga não conseguiu completar a frase, pois vomitou novamente, sujando o sapato do sargento.

– Sargento de uma olhada aqui – gritou um dos policias assustado com o que via.

O sargento viu o assombro no rosto de seus colegas e se aproximou para ver o bebê, mas antes de chegar perto o bastante a mulher ajeitou a manta tapando a criança.

– Deixe-me ver a criança!

– Não é uma criança, é um monstro. – repetiu a mulher como se estivesse em transe olhando para o nada. Depois fez um sinal de silêncio para ele e começou a cantar a canção novamente.

– Ou a senhora me entrega a criança ou terei de usar a força! – ordenou ele em um tom imperativo e intimidador.

A mulher abaixou a cabeça cantando baixinho e lentamente descobriu a criança, o que o sargento viu fez com que ele afastasse horrorizado. A manta estava coberta de sangue velho e envolvia um feto ressecado. Relutante ele estendeu a mão ordenando:

– Entregue para mim.

– Não pode tirá-lo de mim, você não vai cantar para ele, não vai acalentá-lo e ele vai chorar.

Antes que ela pudesse envolver o feto novamente na manta foi imobilizada pelos outros policias e um deles retirou o feto das mãos dela envolvendo-o na manta e se afastando. A mulher começou a se debater e gritar freneticamente enquanto eles tentavam algemá-la, a histeria da mulher era tanta que chegou a quase quebrar o próprio braço na tentativa de se soltar. Enquanto isso a doutora havia ido ao seu carro e voltava com um sedativo.

– Isso vai acalmá-la um pouco – disse ela aplicando a injeção em um dos braços, já imobilizado da mulher.

Quando o sedativo fez efeito os policias algemaram-na com facilidade enquanto ela balbuciava “não” repetidas vezes.

– O que foi isso doutora?– falou o sargento ainda meio atordoado – É muita loucura, nunca vi nada tão hediondo nessa cidade.

– Essa mulher precisa de tratamento sargento. – retrucou a doutora ainda atordoada.

Uma hora após o ocorrido na praça estavam todos na delegacia, a mulher estava detida em uma cela e a criança em uma sala nos fundos da delegacia, aguardavam a chegada de um perito para exames.

A doutora se encontrava dentro da cela com a mulher ainda meio atordoada pelo sedativo tentando obter algumas respostas e nem percebeu o horror que estava por vir. Enquanto o sargento fazia contatos tentando obter informações sobre a estranha mulher que não portava nenhum tipo de identificação ouviu um barulho oco vindo da sala ao fundo da sua, algo havia caído no chão.

Levantando-se ele foi até a sala conferir e viu o embrulho que envolvia o feto no chão, Da manta vazava sangue fresco e se mexia vagarosamente. Pensando se tratar de algum rato que havia atacado o feto ele correu para ver, mas antes de se aproximar a manta se abriu e lá estava a criatura mais horrenda que ele já vira. Olhando para ele o horrendo feto ressecado se virava como um recém nascido, e em uma destreza espantosa se colocou de quatro e engatinhou em sua direção. Escorado na parede o sargento levou a mão à cintura, mas a arma estava em sua mesa, quando ele se virou para correr, a criatura começou a chorar emitindo um som horrível que fez o sargento cair e tremer no chão como se tivesse tido um ataque epiléptico.

Os dois soldados que se encontravam na delegacia correram para ver o motivo do barulho e também tombaram diante do mais puro horror. Enquanto os corpos se agonizavam no chão a criatura engatinhava sabendo direitinho aonde ir.

No bloco de celas a doutora ouviu o que parecia um choro de criança longe, enquanto examinava a mulher detida.

– Ele acordou. – balbuciou a mulher.

– O que você disse? – indagou a doutora.

A mulher permaneceu calada e o choro ficou mais alto, e parecia vir do corredor adjacente ao bloco das celas, assustando a psicóloga e o soldado que fazia sua segurança junto à detenta.

– Fique aqui doutora, vou ver o que está acontecendo. – disse o soldado.

Quando o guarda entrou no corredor pode-se ouvir o choro mais alto, fazendo-o gritar antes de cair no chão. As pernas da doutora fraquejaram ao tenebroso levando-a ao chão. Desesperada ela balançou a mulher sedada.

– Acorde, me diga o que esta havendo.

A mulher abriu os olhos levemente e contemplou a criatura engatinhando pelo corredor em direção à sua cela, depois olhou para a doutora apavorada pressionando o corpo contra a cama onde estava deitada.

– Cante... cante para ela. – sussurrou a mulher no ouvido da psicóloga.

O corpo da doutora começava a tremer diante do choro da criança, mas antes de sucumbir ela começou a cantar a canção outrora entoada pela estranha mulher. Rapidamente o feto parou de chorar, e em sua face medonha emitiu o que parecia um sorriso, macabro e inquietante. A criatura engatinhou em direção a ela e começou a subir em seu colo, imóvel a doutora só conseguia cantar com grande dificuldade, seus olhos vertiam lágrimas e seu corpo todo tremia enquanto o objeto de seu pavor se aninhava em seus braços e começava a dormir. Quando o feto ficou imóvel, a psicóloga se levantou vagarosamente sob o olhar da mulher que parecia satisfeita, estendeu a criança para entregá-la, mas a mulher a fitou sonolenta:

– Ela aceitou você, é sua função acalentá-la agora, você deve mantê-la adormecida, devo descansar agora.

A mulher fechou seus olhos enquanto a doutora começou a cantar, se afastando das celas e levando a criatura para longe da cidade.