A Sina do Lobo
 
 
            Saltava a olhos vistos aquela veia. Pulsando, na sua têmpora esquerda enquanto ele avançava, faminto e sedento, sobre a multidão que fugia apavorada. De onde teria vindo aquela criatura grotesca? Perguntavam os moradores assustados de Londres, uma cidade febril em meados de 1888. A polícia, aparvalhada, disparava a esmo e atingia mais os civis que a criatura de aspecto monstruoso.
            - Nem todas as balas do mundo podem detê-lo. – Dizia um policial antes que a criatura, mudando bruscamente de direção, o atingisse com sua pata direita pesada arrancado-lhe a cabeça, que voou muitos metros, antes de atingir o vestido de veludo azul de uma dama da alta sociedade, que desmaiou na hora.
            Os disparos sem critério aumentavam as vítimas, em meio ao povaréu que, àquela hora da noite, corria em pânico gerando atropelos, acentuando o número de mortos através do pisoteamento. O caos geria o caos...


            De um repente, o eminente Doutor desperta daquele terrível pesadelo. Seu quarto, parcialmente escuro, tinha como única fonte de claridade a pálida luz do luar que adentrava timidamente pela janela com cortinas semi-abertas. Transpirava acentuadamente, o que lhe causava tremendo desconforto. Dormira de roupa, novamente. Era algo comum naquela época. Aproximou-se da janela e viu que Londres permanecia calma enquanto a madrugada avançava. Sentiu a têmpora direita saltando forte. Correu para diante do espelho. Viu-se acabado, com o rosto chupado e olheiras profundas. Comprimiu a veia e sentiu uma forte dor subindo-lhe pela nuca e se espalhando por toda a cabeça.
            - Tenho que dar um jeito nisso. – Disse a si mesmo. Cambaleando, moveu-se para o fundo do quarto repleto de livros, remédios dispostos sobre estantes inúmeras e mesas por todo o lugar, entre equipamentos de laboratório, alambiques, microscópios e outros apetrechos para suas pesquisas. Buscou um vidro azulado dentro de uma gaveta.
            - Espero que ainda dê tempo. – Disse a si mesmo. Usando de grosseira seringa, aplicando aquele líquido de um marrom escuro, denso, na própria veia. Em seguida, ouviu do fundo da sala um uivo terrível. Olhou para o interior do espelho no canto oposto e viu aquela criatura peluda, metade-homem-metade-lobo, fulminando-lhe com um profundo olhar avermelhado.
            - Você não pode viver. – Gritou para a fera. O monstro bateu no vidro tentando sair até quebrá-lo. Enquanto o líquido penetrava-lhe as veias causado uma dor lancinante, o médico da Rainha rolava pelo assoalho gemendo de uma dor lancinante...

            No dia seguinte estava bem. Saiu para as consultas normalmente, inteiro e refeito, como se nada houvesse acontecido. Era um homem cortês e conhecido em toda a cidade pelos inúmeros préstimos e boa acolhida a todos que o procuravam. No entanto, a cada janela, poça d´agua, ou objeto reluzente que passava, via-se a figura grotesca seguindo-o com um olhar agudo. A noite não tardou a descer sobre a cidade. Voltando para casa e constatando que o líquido chegara ao fim, precisaria, novamente, buscar a fonte que impedia que a fera saísse.
            O ritual seria sempre o mesmo. Sabia de uma mulher que estava grávida e que era prostituta. Sentia-o pelo olfato aguçado que a sua situação levara-o a desenvolver. Não tinha sentimento de culpa. Era uma questão de sobrevivência, dizia. Para salvar uma multidão, que falta fará uma ou outra desqualificada e o fruto impuro do seu ventre? Para disfarçar, retalhava-as de forma a despistar as investigações.
            À medida que fazia novas vítimas, sua fama crescia vindo a ser conhecido como Jack, o Estripador. Sua vaidade apreciou a alcunha, mas era tudo por um bem maior. Sabia que o líquido que preparava com o sangue daqueles fetos deteria a fera. Foi um segredo descoberto na sua viagem à Índia, na mesma passagem em que fora atacado pela criatura que lhe arranhara transmitindo-lhe a sina. Para evitar que um monstro saísse, teve que se transformar em outro e, por isso, talvez a humanidade um dia transmita-lhe o benefício do perdão...