O CORAÇÃO DO MINOTAURO
Não haveria tristeza maior no coração daqueles pais. Nem mesmo se o Mediterrâneo transbordasse sua ira, ou se as trevas de Hades abraçassem o céu dos viventes. O palácio derramava suas lágrimas pela filha do governante, a qual acabara de completar sete dias mergulhada num profundo e inexplicável sono. Uma verdadeira morte em vida, era assim que consideravam a situação da pobre menina. Com o passar do tempo, a possibilidade de reversão no quadro de saúde da jovem parecia cada vez mais improvável. A fé buscava espaço onde a medicina havia falhado, mas até mesmo as rezas começavam a fraquejar diante de tamanha desolação.
No início, o povo permaneceu ao lado dos líderes, pois, naquela cidade, cada filho dos deuses costumava compartilhar dos mesmos sofrimentos vividos pelos governantes. A dor, a agonia, cada pesar era um elemento a ser dividido pela coletividade. Mas, por mais que se queira oferecer solidariedade, quando o corte é sentido na própria carne, a ardência se torna mais crua e viva. Assim, pouco a pouco a opinião pública começou a mudar sua posição, tudo por conta das últimas e controversas ações tomadas pela aristocracia local.
Até então, apenas sete jovens por mês eram lançados à voracidade da criatura que habitava os caminhos incertos, de onde ninguém conseguia escapar. Porém, os conselhos do Oráculo não deixavam dúvidas: para que a chama da vida voltasse a brilhar no peito da menina, muitas outras deveriam ser consumidas pelo Senhor dos Labirintos. Os sacrifícios não deveriam cessar até que o apetite insano da fera estivesse plenamente saciado. Desta forma, o coração da besta, uma vez impulsionado pela energia vital dos sacrificados, estaria pronto para ser arrancado do seu peito e oferecido como a panacéia perfeita para aquela que estava destinada a cruzar o Rio Aqueronte.
Uma onda de horror se espalhou pelas ruas de pedra. Aqueles que puderam pagar com ouro foram poupados da violência, porém, em contrapartida, os mais pobres caíram em desgraça por não terem o que oferecer. A cada dia, uma nova criança era arrancada, sem qualquer compaixão, do seio da família e atirada no fosso maldito, rumo a um horror inimaginável.
A ampulheta de Cronos era implacável. Ainda assim, mesmo com o passar do tempo, os urros oriundos dos subterrâneos continuavam a serem ouvidos. Não havia como negar, o instinto assassino da criatura continuava a clamar por mais carne e sangue. Praticamente todos os jovens das famílias menos favorecidas da cidade já haviam sido lançados a ela, mas a saciedade plena parecia longe de ser atingida. E muitos começavam a achar que talvez jamais fosse obtida.
As opções do governante começavam a rarear. Já não havia qualquer alternativa. Todos os caminhos apontavam para uma única direção, e o pai da enferma não titubeou nem por um segundo em segui-la, mesmo sabendo das conseqüências. Fazendo uso das forças do exército, ele ordenou que os seqüestros passassem a atingir, também, as classes dominantes.
Uma guerra ameaçava surgir, pois o braço armado passou a agir além dos limites da própria localidade. Raptos esporádicos eram praticados em diversos núcleos das cidades vizinhas. O governante pouco se importava, a obsessão o cegava. O que ele mais queria era ver a filha caminhando novamente, mesmo que para isso tivesse de mandar todos os jovens do povo helênico para o sacrifício...
No final do trigésimo dia do período sangrento, um dos muitos grupos de assalto do governante retornava com mais uma pessoa capturada, seria a oferta do dia. O comandante arrastou o prisioneiro até os degraus da Acrópole, onde o líder local aguardava para proferir palavras de conforto para o condenado.
Ao ser retirado o capuz, ficou evidente que, na verdade, se tratava de uma prisioneira. Ela permanecia ajoelhada e com a cabeça baixa, mesmo sob a ordem para que se levantasse. Como o pedido não obteve qualquer resposta, uma mão pesada tratou de erguê-la pelos longos cabelos. Uma vez exposto, o rosto da jovem impressionou não só ao tirano, mas a todos os demais que lá estavam presentes.
Por alguns instantes, o governante hesitou em sua vontade de ferro, tamanha era a beleza da prisioneira. Mas a nuvem que pairara sobre sua mente pelo breve momento não se mostrou suficiente a ponto de fazê-lo mudar de idéia. A dor que corroía seu coração era maior do que tudo. Porém, nem todos os filhos de Zeus dispunham da mesma convicção. E, para um dos soldados, um dos poucos jovens que haviam sobrado diante do massacre, a flecha certeira de Eros, recém cravada em seu peito, era razão mais do que suficiente para que a vida da prisioneira fosse poupada.
Mas o soldado sabia que sua vontade e força nada significavam perante o poder contra o qual planejava se rebelar. Seria preciso usar a inteligência a seu favor. Então, instintivamente solicitou ao comandante que ele próprio fosse o responsável por conduzir a condenada até o inevitável destino. Durante o trajeto, mesmo escoltado por mais dois homens, ele conseguiu sensibilizar a prisioneira com algumas palavras. Ele pediu para que ela resistisse por algumas horas, que se escondesse nos corredores do labirinto, pois ele retornaria e a libertaria.
A garota nada disse, pois nada havia para ser dito. Porém, pela primeira vez em sua vida, parecia que alguém se importava com ela. E, mesmo convicta de que jamais veria o rapaz novamente, ela encarou o abraço frio da escuridão com a confiança renovada...
A menina voou pelas trevas da garganta esculpida nas estranhas da terra. Ela imaginava que seu corpo seria recebido pelo toque rígido das rochas, mas a queda fora amortecida por algo indefinível. A completa ausência de iluminação impossibilitava que as peculiaridades do ambiente fossem decifradas. O único sinal de luz se originava de um ponto muito distante de onde estava. Mesmo temerosa, ela resolveu seguir ruma à fagulha luminosa, a solidão e o medo corroíam os últimos vestígios de sanidade que ainda lhe restavam.
Enquanto caminhava pelos corredores de pedra, um único lamento remoía seus pensamentos: Por que não nascera como as duas irmãs? Ela era diferente, e a fragilidade lhe abraçava sem que conseguisse encontrar as respostas.
É da natureza humana buscar conforto até na mais branda luz, por menor que esta seja, quando tudo ao redor está tomado pelas trevas. No entanto, em contradição a essa afirmação, ela não se sentia acolhida pelas faíscas que estavam cada vez mais próximas. O odor nauseante parecia se propagar com mais intensidade conforme a distância era vencida, o ar tornava-se pesado, quase irrespirável.
A melancolia preenchia o coração da jovem, mas o sentimento rapidamente converteu-se em pavor quando a natureza do brilho se revelou. Eram olhos a encará-la na escuridão, uma visão mórbida e aterradora, o prenúncio da morte.
A menina correu, sabendo que seria perseguida. Os corredores de pedra pareciam se estreitar. O estrondo aumentava, ao passo que os urros se aproximavam cada vez mais. Se não fosse uma fresta entre duas paredes, ela teria sido alcançada. Mas tudo indicava que seria apenas uma questão de tempo, pois a fera tentava se esgueirar pela abertura. Ela buscava refúgio no fundo do vão, enquanto as garras da criatura riscavam o ar bem próximas do seu ventre, somente um milagre poderia salvá-la.
Ela fechava os olhos tentando fugir da realidade, mas o desespero insistia em erguer suas pálpebras. Então, ela viu. A expressão da criatura não apresentava mais os sinais evidentes da histeria, ela revelava outra verdade, os traços traduziam dor.
A ponta de uma lâmina surgiu do abdômen do ser, era o soldado que retornava para resgatá-la. A fera recuou, enquanto quebrava o corpo da espada. Seu olhar acendia as trevas, enquanto os chifres rasgavam a carne humana.
A menina gritou ao ver o corpo do seu salvador ser erguido e sacudido no ar. O sangue espirrava em todas as direções. O medo que tomara o lugar da melancolia em seu peito, perdia seu espaço para um sentimento mais intenso, algo que ela nunca sentira antes: ódio.
A besta reservou o corpo do soldado, ela estava mais interessada na presa encurralada. A garota sentia um torpor tomar conta do seu corpo, algo diferente acontecia, mas ela não sabia exatamente o que era.
Decidido, o monstro derrubou as paredes com os braços, enfim receberia o prêmio que buscava. Mas seu olhar aceso perdeu o brilho ao deparar-se com a menina. Indefeso, ele nada pôde fazer...
Na sede do governo, um mensageiro dizia aos líderes que um dos condenados retornava do labirinto com o coração da fera. A menina doente repousava no centro do salão, enquanto todos os membros da oligarquia se preparavam para receber o suposto herói.
Um indivíduo franzino, coberto dos pés à cabeça, era escoltado por um guarda. O governante ordenou que o coração fosse entregue, no que fora prontamente atendido. Enquanto o recipiente era desembrulhado, a surpresa tomava conta de todos os presentes no salão.
Para total estarrecimento dos que assistiam à cena, e para desespero do governante, a oferta que repousava no interior do invólucro não era o coração da fera, pelo menos não do jeito que esperavam encontrá-lo. Apesar de o objeto em questão ostentar os contornos precisos do desejado órgão vital, o presente respondia pela natureza crua e fria de uma pedra, inacreditavelmente esculpida, mas ainda assim, uma simples pedra.
Antes de qualquer reação por parte das indignadas testemunhas do seu ato desafiador, o estranho retirou as vestes que lhe cobriam, manifestando muito mais do que sua identidade. A revelação traria a vingança em forma de morte.
Os cabelos da menina estavam vivos. E todos aqueles que foram tocados por seu olhar encontraram o próprio fim numa paralisia eterna.
Lentamente, ela caminhou na direção da filha do líder. O sono profundo impedia que seus olhos encarassem a morte. Mas ela não ficaria sem o motivo dos inúmeros sacrifícios.
Os lábios da enferma foram delicadamente separados pelas mãos escamosas da renascida do labirinto. Suavemente, o coração de pedra da criatura foi posicionado no diminuto vão da boca entreaberta. Com um pouco de pressão, o remédio rasgaria a garganta da amaldiçoada e percorreria um lento e nocivo caminho, até encontrar a morada definitiva no estômago morto da menina.