Vida que escorre
Se não fossem os sussurros tudo estaria bem. Se não fosse a voz afável, se não fossem os soluços, se não fosse aquele par de olhos molhados e escuros, olhar cansado e piedoso. Se não fossem os fatos. Agora já estava feito. Como proceder? Isso ele não sabia, isso não foi explicado. Parecia tão calmo naquele instante. E agora é o silêncio, só o silêncio. De primeira ele se afasta, se recolhe em seu pavor. Rói as unhas, morde a manga da camisa. Nada adianta, tudo parece um sonho, um sonho ruim do qual ele logo vai acordar para poder tomar pílulas de dormir, mas dessa vez sem sonhar. Ele ainda não se deu conta do que havia realmente acontecido. O cômodo é frio e escuro. Um fraco raio de luz invade o cubículo, expondo as paredes manchadas. O silencio crescente e perturbador enche os ouvidos dele. Ele não suporta isso. Nem o silencio, nem o barulho. Ele inspeciona o lugar com os olhos, ninguém em perfeito juízo iria ali, então numa espécie de despertar imediato ele surta. Surta e grita, enquanto se aproxima da evidente forma humana ao chão. Ele a abraça beija e chora. Mantém o peito junto ao da forma, mas não sente nenhum sinal de vida. A forma agora não é nada, é só uma forma, é fria, porém está encharcada com o liquido viscoso e escuro que misteriosamente se mantém quente. O calor do sangue contra o peito é agradável. Quase confortante. Como um abraço de vida, vida quente e molhada. O sangue tem gosto de mar e ferrugem. O sangue é a vida. Vida que agora corre, escorre. Ele espalha a vida por que ela é linda vermelha e quente. Ele quer a vida, está manchado com ela. Há manchas de vida em sua camisa, em suas mãos e em seu rosto. O corpo frio é indefeso. Será fácil livrar-se dele. Alguns minutos para jogar em algum lugar deserto, cortar ou lançar às águas de um rio feroz. Os lábios agora são pálidos e frios. Não relutam. Convidam. Ele a beija enquanto lhe tira os cabelos dos olhos. Beija-a com uma espécie de beijo de boa-noite. Como se põe uma criança para dormir. Estará tudo bem agora, meu anjo, pode dormir. E tem certeza que a forma dormirá bem, pois está vazando vida, logo estará livre dela. Mas as manchas estarão impregnadas em si. Por toda a vida. Isso por que manchar-se com essa vida não é como manchar-se com groselha, essa mancha de vida é para sempre. Ele se levanta, aproxima-se da forma, senta ao seu lado. Olha com carinho e sorri. Deita-se e a abraça. Abraça e aperta a forma vazia e fria. Dorme ao seu lado. No calor da poça de vida.