A obra do pesadelo

Eram 2 horas da manhã quando Augusto olhava para o relógio com espanto, enquanto andava pelas ruas desertas, com passos rápidos e longos. Levantou os olhos com medo de ser surpreendido com qualquer figura à sua frente, exatamente como aconteceria naqueles filmes de terror, e então suspirou profundamente aliviado por ter-se percebido sozinho, e logo após dar-se conta disso tomou um fôlego angustiado por temer que algo, ou alguém, estivesse por perto, à espreita.

Seguia rapidamente, olhando para todos os cantos, com os braços cruzados para tentar-lhe amenizar o frio no peito, naquele instante lamentava muito a falta de um cachecol, sofria arrepios terríveis até a espinha quando o vento lhe rodeava cruelmente o pescoço, e praguejou ao vazio o fato de estar numa cidade minúscula e deveras esquisita para nem mesmo um táxi à procura de um boêmio perdido, pegar-lhe nas ruelas, e roubar-lhe uma fortuna para deixá-lo em casa.

Continuou andando, e pensara depois de 20 minutos se não haveria esquecido o percurso correto do caminho. Ele andara assim como o bigodudo motorista que o levou até o hotel, de pele terrivelmente pálida, olhos azuis acinzentados e olheiras tão negras e profundas que mais pareciam decorrentes de uma insônia de séculos, lhe falara, para seguir do bar até a esquina, dobrar à direita, e apenas seguir direto, até enfim encontrar o hotel com letras vermelhas luminosas “Winter”. Mas parecia que algumas ruas se alargavam, e outras encolhiam, os caminhos mudavam, e ele já não reconhecia porta alguma das casas enquanto ele perambulava trôpego e desconfiado. Pensou por um instante “A bebida é a pior inimiga das condições mecânicas do homem e das suas faculdades mentais. Bebida é para burros! Sou um estúpido bêbado! Nada disso aconteceria se eu tivesse saído de uma cafeteria.”.

Tonto e com ânsia de vômito, decidiu sentar-se no meio fio por um instante, sorriu consigo mesmo, e observou aquele seu estado deprimente. Com as mãos sobre a cabeça, ele falou em voz alta “Que raios há de errado com esta maldita cidade? Nem mesmo um cachorro aparece para abordar-me aqui! Todos sabem que onde há um bêbado, aparece um cachorro!”. Logo depois, pôs as mãos na boca e se silenciou, temendo ouvir o abrir de alguma porta, e receber reclamações de alguém. Mas nada acontecera, e ele pensou “Tudo isso está muito estranho.”. Decidiu voltar ao bar de onde saíra...

Como era de se imaginar, a porta do bar estava fechada. Decidiu bater “Não é o primeiro bêbado que vem incomodar a um dono de bar”. Ninguém aparecera, “Droga, e agora? Não acho o caminho de volta àquele hotel, e não encontro um ser vivo para ajudar-me nesta hora!”. Virou-se para tentar seguir o caminho de volta, outra vez. Até que escutou algo. Olhou para todos os lados com aflição, e perguntou “Alguém está aí? Preciso de ajuda!”.

Escutou passos correrem atrás de si, e uma brisa fria lhe fez arrepiar a espinha. Gritou, “Por favor! Não sou perigoso! Sou um escritor! Tenho um cartão pessoal aqui comigo, posso me identificar!”

“- Identificar?” Perguntou uma voz.

Augusto tremera dos pés à cabeça, sentiu um mal estar, e pensou por um momento ter levitado tamanha a pouca sensibilidade e domínio que tinha sobre o corpo e as emoções naquele momento.

Ele tentou virar-se, e ver quem estava lhe falando. Até que escutou “ - Não!”

“Não? Não posso me virar? Desculpe. O que está acontecendo? Quem é você?” Sentiu um calor próximo, e a cada passo que percebia ser dado, podia sentir o calor mais de perto, e pensou “Que criatura é essa?!”

“- Você é Augusto Camaro. Escreves bem, mas sabes ler bem as circunstâncias? Não percebes a condição da cidade no momento? Nada se move, nada se manifesta. Por enquanto...”

“Sim percebo.”, Augusto não teria achado tudo ainda mais estranho do que antes expressivamente achara, mas com esse indivíduo aproximando-se, e ninguém mais por perto, impossibilitado de encarar seja lá quem for isso que vinha-lhe pelas costas, pensou “Nada posso fazer a não ser me submeter a estranheza dessa situação, mas talvez eu devesse correr, ou gritar.”, mas a voz não lhe saia da garganta, olhou discretamente para à esquerda, e à direita, e os caminhos pareciam abertos demais, como ele despistaria aquele indivíduo? Abaixou a cabeça, e olhou para os próprios pés, conformado.

“- Então já sabes que nada tem de normal aqui.”

“Mas durante o dia, tudo estava perfeitamente normal, aliás, até quase 2 horas da manhã ainda tinham pessoas nas ruas, o bar estava aberto, mas, de repente, começaram a se recolherem, e quando me dei conta, eu estava na rua, absolutamente só.”

Engoliu de súbito a saliva acumulada, que pareceu ser uma pedra a descer pela sua garganta. Quando, percebeu um pulo repentino, com uma velocidade alta, e ao dar-se conta, a criatura falava-lhe próximo ao seu ombro direito, e ele sentia um calor tão intenso que quase instantaneamente pingou-lhe uma gota de suor da testa. Pensou “Minha, nossa! O que é isto atrás de mim?!”

A criatura disse,“-Ah, às 2 horas começam a acontecerem eventos furtivos por aqui.”

Augusto tentou virar um pouco os olhos, e a sua visão periférica alcançou uma parte do rosto daquilo que estava tão perto. Ele tinha olhos cor de fogo, e flamejavam, e contornando-lhe as pupilas até onde acabasse os olhos uma cor negra tão profunda e homogênea preenchia o espaço, além de um rosto tão rosado e cheio de cicatrizes salientes, parecia estar em carne viva, e lábios alaranjados. “Como pode? Isto não é um ser humano! E não pode ser imaginação minha...” Mas ele sentia, que por mais absurdo que esta sensação parecesse, ele conhecia aquela criatura de alguma forma...

“- Fitaste-me. Eu percebi. E sei que me conheces, assim como te conheço. Não terias coragem de encarar os meus olhos agora, te prometo, eles queimariam o teu coração com o sentimento mais intenso que tens no momento, então, morreria de dor e de medo. Não queres isto, queres? Jamais eu soube de alguém que queira sofrer, e muito menos morrer. Mas se quiseres, vira-te agora, e encaro-te. E verás, então, que o sol é o astro mais frio, e insignificante, a qual os seres humanos tiveram conhecimento da existência.”

Naquele instante, Augusto pensou ter sucumbido, mas não, infelizmente, ou felizmente, estava vivo e teria que enfrentar o ser que lhe falava com tanto domínio, e propriedade, além de destilar mistério e horrores em cada frase retórica que lhe proferia.

“Escuta. O que queres de mim?”

“- Desafiar-te.” Sussurrou o ser de olhos flamejantes, saltou além da altura de Augusto, e parou em extrema exatidão, à sua frente.

Augusto esquivou o olhar, abaixou a cabeça, e com os poucos segundos que percorreu pelo o corpo inteiro da criatura, percebeu que ela, ereta, era quase duas vezes a sua estatura, mas se inclinava de uma maneira a ponto de suas mãos quase tocarem o chão.

“A mim?” Disse, e logo depois pensou como ele poderia vencer qualquer desafio sobre aquele ser que parecia ser dotado de habilidades surreais.

“- Ora, sim! E não me venha com pouco entendimento sobre as minhas palavras. Não tenho paciência com o que quer que seja, e muito menos com intelecto medíocre, se não puderes responder-me à altura em relação a qualquer coisa que eu te fale, como podes me ganhar neste desafio? Recomponha-te e pensa direito, organiza as tuas idéias, e analisa as tuas palavras. Porque tu mal sabes o que estar em jogo aqui! É o único bem que algum ser humano por mais nobre que seja jamais poderia abrir mão! É a tua vida! Se não puderes defender-te, ceifo-a agora, poupo-me da diversão, para cumprir a tradição a qual fui resignado! Não tenho piedade, mas tenho lealdade para com os compromissos que faço, se os por acaso faço, com aqueles que encontro! Eu poderia ter-te visto passar pelas ruas a esta hora, e não ter tido misericórdia! Neste momento, tudo o que é vivo e anda por esses ladrilhos me pertencem! Fiz um acordo com um ancestral líder deste lugar, ele era um bruxo muito competente, mas os feitiços dele, e os meus poderes, foram eternos deliberantes, até que um dia selamos por mágica, que qualquer ser que tivesse vida e andasse por estas ruas após às 2 horas da madrugada, até à alvorada, pertenceria a mim, e eu jamais poderia, então, incomodar qualquer morador à sua porta, há um feitiço que me impede de entrar nestas casas, mas se qualquer um sair, não há mais proteção que os esconda ou ampare.” Assim berrou com fúria e desprezo a criatura, inquieta e pondo-se esticada de pé, movendo os braços, e alongando o enorme pescoço, aproximando a cabeça até Augusto.

Camaro ouviu palavra por palavra, e cada uma surpreendia-lhe e assustava-lhe tanto que ele parecia levar golpes que doíam e tiravam o seu fôlego, mas decidiu, para o seu próprio bem e sobrevivência, ignorar o medo e defrontar-se com qualquer proposta ou ataque que poderia lhe acontecer.

“Eu o escutei, senhor. E espero tão somente o vosso desafio”, disse Augusto.

“-Então é agora... Darei a ti um enigma, se não desvendares o que é, saberás ao menos o teu fim, que é a morte.”

“Estou pronto para ouvi-lo.”

“- Eis que tu tens que adivinhar o que eu sou. Sabes me descrever fisicamente, mas não sabes o que eu represento. Estou ao teu lado nos despautérios, sorrio da tua sobriedade, e brinco com as tuas pretensões, faço-te andar com os pés descalços sobre a insensatez e quando percebes que está no caminho errado, tu já estás com os pés dotados de feridas, e então quando tentas percorrer o caminho certo, eu roubo o teu chão. Dizes-me quem eu sou, e deixo-te voltar a ser quem tu és, poupando a tua vida.”

Augusto, imediatamente percebera de quem a criatura se tratava, lembrou dos seus dedos de pontas escuras com a tinta da caneta ao escrever o nome dela. Sim! Era ele mesmo que a havia criado, e ela estava agora ali, à sua frente! Ele lamentou ter tido uma mente tão obscura naquele dia infeliz, para fazer uma obra tão surpreendentemente aterrorizante. E ciente de que diria a resposta certa para sair daquele pesadelo tão tangível, porém ainda apavorado por estar frente a frente com aquele ser, ele disse “És a Loucura.”

E o ser se consumiu como em uma explosão, formando uma bola de fogo que lhe abraçou o corpo, e ele fechou os olhos, esperando que o pior pudesse acontecer. Até que os abriu, e ali ele estava, liberto da morte que a criatura lhe ameaçara. E preso a uma camisa de força.

Camila Trideli
Enviado por Camila Trideli em 20/10/2011
Reeditado em 20/10/2011
Código do texto: T3288462